De “NÃO FOSSE ISSO E ERA MENOS NÃO FOSSE TANTO E ERA QUASE”
eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
não discuto
com o destino
o que pintar
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
a vida varia
o que valia menos
passa a valer mais
quando desvaria
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos /não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa
presença
olhar
lembrança calor
meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos /não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase
rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos
nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos /não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
ascensão apogeu e queda da vida paixão
…………………………………e morte
do poeta enquanto ser que chora enquanto
chove lá fora e alguém canta
a última esperança de chegar
à estação da luz e pegar o primeiro trem
para muito além das serras que azulam no
…………………………………horizonte
e o separam da aurora da sua vida
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos /não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista
queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
— cala a boca
e pro relógio
— abaixo os ponteiros
– Paulo Leminski, do livro “Não fosse isso e era menos /não fosse tanto e era quase”. 1980.
§
De “POLONAISES”
um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores
– Paulo Leminski, do livro “Polonaises”. 1980.
§
oração de Pajé
que eu seja erva raio
no coração de meus amigos
árvore força
na beira do riacho
pedra na fonte
estrela
na borda
do abismo
– Paulo Leminski, do livro “Polonaises”. 1980.
§
dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de glauber
ter sempre uma cabeça cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
– Paulo Leminski, do livro “Polonaises”. 1980.
§
De “CAPRICHOS E RELAXOS”
aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar
o mar
não parou
pra ser olhado
foi mar
pra tudo quanto é lado
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
as flores
são mesmo
umas ingratas
a gente as colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
bom dia, poetas velhos
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto de versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
contranarciso
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
desmontando o frevo
desmontando
o brinquedo
eu descobri
que o frevo
tem muito a ver
com certo
jeito mestiço de ser
um jeito misto
de querer
isto e aquilo
sem nunca estar tranquilo
com aquilo
nem com isto
de ser meio
e meio ser
sem deixar
de ser inteiro
e nem por isso
desistir
de ser completo
mistério
eu quero
ser o janeiro
a chegar
em fevereiro
fazendo o frevo
que eu quero
chegar na frente
em primeiro
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
existe um planeta
existe um planeta
perdido numa dobra
do sistema solar
aí é fácil confundir
sorrir com chorar
difícil é distinguir
esse planeta de sonhar
– Paulo Leminski, mo livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
este poema me olha
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo
seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza
faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja
– Paulo Leminski, do livro “Caprichos e relaxos”. 1983.
§
De “DISTRAÍDO VENCEREMOS”
além alma
(UMA GRAMA DEPOIS)
Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
arte do chá
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
bem no fundo
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo, a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
diversonagens suspersas
meu verso, temo, vem do berço.
não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
pra que sirvo senão pra isto,
pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície
onde o verbo vem ser mais?
não sirvo pra observar.
verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.
onde estará meu verso?
em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
ler pelo não
Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
m, de memória
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
o que quer dizer
para Haroldo de Campos translator maximus
o que quer dizer, diz.
não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
o que quer dizer, diz.
só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
– Paulo Leminski, dno livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
pergunte ao pó
cresce a vida
cresce o tempo
cresce tudo
e vira sempre
esse momento
cresce o ponto
bem no meio
do amor seu centro
assim como
o que a gente sente
e não diz
cresce dentro
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
§
Plena pausa
……Lugar onde se faz
o que já foi feito,
……branco da página,
soma de todos os textos,
……foi-se o tempo
quando, escrevendo,
……era preciso
uma folha isenta.
……Nenhuma página
jamais foi limpa.
……Mesmo a mais Saara,
ártica,significa.
……Nunca houve isso,
uma página em branco.
……No fundo, todos gritam,
pálidas de tanto.
– Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.
De “LA VIE EN CLOSE”
estrelas fixas
aqui sentiram centenas
as penas que lhes convêm,
Sentindo cena por cena,
alguém lembrou de um poema
que lhe lembrava de alguém.
rimas mil girem vertigens,
sinto medos de existir.
estes versos existirem,
já não preciso sentir.
– Paulo Leminski, do livro “La vie en close”. 1991.
§
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
– Paulo Leminski, do livro “La vie en close”. 1991.
§
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra
– Paulo Leminski, no livro “La vie en close”. 1991.
§
alguém parado
é sempre suspeito
de trazer como eu trago
um susto preso no peito,
um prazo, um prazer, um estrago,
um de qualquer jeito,
sujeito a ser tragado
pelo primeiro que passar
parar dá azar.
– Paulo Leminski, no livro “La vie en close”. 1991.
§
faça os gestos certos,
o destino vai ser teu aliado,
ouço uma voz dizendo
do fundo do passado.
Hoje não faço nada direito,
que é preciso muito peito
pra fazer tudo de qualquer jeito.
Ai do acaso,
se não ficar do meu lado.
– Paulo Leminski, do livro “La vie en close”. 1991.
§
De “O EX-ESTRANHO”
no instante do entanto
Diga minha poesia
E esqueça-me se for capaz
Siga e depois me diga
Quem ganhou aquela briga
Entre o quanto e o tanto faz
– Paulo Leminski, no livro “O ex-estranho”. 1996.
§
Invernáculo
Esta língua não é minha,
Qualquer um percebe.
……Quando o sentido caminha,
A palavra permanece.
……Quem sabe mal digo mentiras,
Vai ver que só minto verdades.
……Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
……Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
……uma canção longíngua,
a voz, além, nem palavra.
……O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
……eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
……Já disse de nós.
Já disse de mim.
……Já disse do mundo.
Já disse agora,
……Eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
……eu já disse muito.
……Tenho a impressão
que já disse tudo.
……E tudo já foi tão de repente.
– Paulo Leminski, no livro “O ex-estranho”. 1996.
§
……desastre de uma idéia
só o durante dura
……aquilo que o dia adianta adia
……estranhas formas assume a vida
quando eu como tudo que me convida
……e coisas alguma me sacia
……formas estranhas assume a fome
quando o dia é desordem,
……e meu sonho dorme
……fome da china fome da índia
fome que ainda não tomou cor
……essa fúria que quer
……………………………….seja lá o que flor
– Paulo Leminski, no livro “O ex-estranho”. 1996.
§
Rimo e rimos
……Passarinho parnasiano,
nunca rimo tanto como faz.
……Rimo logo ando com quando,
mirando menos com mais.
……Rimo, rimo, miras, rimos,
como se todos rimássemos,
……como se todos nós ríssemos,
se amar fosse fácil.
……Perguntaram por que rimo tanto,
responder que rima é coisa rara.
……O raro, rarefeitamente, pára,
como pára, sem raiva,qualquer canto.
……Rimar é parar, parar para ver e escutar
Remexer lá no fundo do búzio
……aquele murmúrio inconcluso,
Pompéia, idéia, Vesúvio,
……o mar que só fala do mar.
……Vida, coisa para ser dita,
como é dita este fado que me mata.
……Mal o digo e já meu dito se conflita
com toda a cisma que, maldita, me maltrata.
– Paulo Leminski, no livro “O ex-estranho”. 1996.
§
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