Gilberto Gil, com uns 30 anos de idade, já havia realizado Roda, Louvação, Procissão e Cálice (esta em parceria com Chico Buarque). Também já tinha sentido o tempo desconvencê-lo sobre a relevância de suas músicas de protesto, exaltadas e aclamadas à época por qualquer que fosse a plateia para a qual se apresentasse, quando fora convidado a cantar na Escola Politécnica da USP, em 1973, meses após o assassinato do universitário Alexandre Vannucchi, como forma de elevar os ânimos e as esperanças daqueles estudantes de vozes embargadas pelo jugo da ditadura militar.
Dia 26 de maio. O músico vai iniciando o descarrego com alguns sambas, divertindo o público paulistano, talvez, pelo arrastado das letras francas em sua simplicidade e leveza. O riso está largo e os jovens, ainda entesados por ouvir o Gil de Domingo no Parque, vão se atentando para quem estava ali se apresentando, enquanto Expresso 2222 era encerrada como um mantra condutor entre o público e a mente do artista.
Tudo tem dois lados, “essa é a chamada dialética”.
Pelos astros, tudo certo. Geminiano: palavroso aspirante à introspecção, ao mesmo tempo, passando para o lado de fora de si para falar que gosta de sua música.
Ao acessar aquela juventude esclarecida e sedenta pelas canções que gritavam revolução, Gil orienta que a felicidade vem depois, como quem entendeu que se precisa transcender essa realidade provisória para entrar em contato com sentimentos mais fundamentais. Ainda, aponta falhas colocações em muitas das músicas que todos ali desejavam ouvir, atribuindo estas falhas à uma ânsia por servir aos propósitos do tempo em que as músicas foram feitas. E sobre a censura que pairava sobre toda criação naquele momento, resta que “Se você não pode dizer a verdade, não diga. É isso que eu acho.”
Essa compreensão penitenciosa de seu trabalho, poderia não ser bem o que as pessoas esperavam apreciar naquela tarde de sábado. Mas revela um artista que se assume como um desaguadouro e que alerta para a necessidade de exercício de reflexão sobre esses símbolos, que são perecíveis, pois são frutos da criatividade humana.
Me pergunto se teria saído decepcionada ao fim da apresentação. Eu, que sou um pouco mais jovem do que o Gil era naquela época, assim, não tendo vivido as angústias que afligiam aquele público, mas amofinada por outras, e questiono a nossa carência frequente de um porta-voz ou coisa que valha, destes que nos iluminam com palavras, e no entanto, parecem nunca preencher nossos vazios mais urgentes. Talvez seja um bom caminho avaliar o que estamos perdendo enquanto adiamos a emancipação de nossas mentes e caminhos.
“Dessa esquina pelo menos posso perceber
O duplo sentido de tudo
…
Dessa esquina pelo menos posso ver como é
E não me incomodar”
Com Duplo Sentido, música nova, Gil patenteava aquele enredo, indicando: eu não estou mais nesta, não sou mais aquele lugar.
Vale dizer que é deste show o desabafo, ao som dos primeiros acordes de Iansã, composta com Caetano:
“Um dia eu ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo, se Deus quiser. Não vou mais ter necessidade de falar nada, de ficar pensando em termos dos contrários de tudo, pra tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é. Que eu não estou querendo ser o dono da verdade. Que eu não estou querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós e de mais alguém, que é o tempo o verdadeiro grande alquimista, aquele que realmente transforma tudo.
Um pequenino grão de areia, é o que eu sou. Só, que o grão de areia já conseguiu, sendo tão grande ou maior do que eu, ser bem pequenininho, e não precisar se mostrar mais. Fica lá, trabalha em silêncio (mais mineiro, eu sou mais baiano, ainda).”
* Mayra Muniz, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Designer e ilustradora.
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