‘Piano’, álbum instrumental do pianista e compositor Leandro Braga, lançado pela Biscoito Fino. Todos os 12 temas são fruto do “Diário Musical” que Leandro Braga se impôs durante todo o ano de 2021, no qual compôs uma música para piano solo por dia, todos os dias daquele ano.
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Por Hugo Sukman
Diz a História, mas que de tão absurdo parece lenda (lenda na definição de Aldir Blanc, o de “relembrar o que não aconteceu”): um dia a Censura da ditadura militar quis proibir “Zanzibar”, de Edu Lobo. Só havia um problema: tratava-se de um tema instrumental, sem letra. Proibir, então, o quê? O título de óbvia inspiração africana? Não duvido. A sofisticada estrutura harmônica, a melodia, a beleza? Pode ser, ditaduras não suportam a arte. O sentimento do mundo, como diria Drummond, no sentimento do artista?
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Se a Censura voltasse – e olha que faltou pouco, muito pouco mesmo para isso nos últimos quatro anos – ia querer proibir todas as 12 faixas de “Piano”, o novo álbum de Leandro Braga, embora todas as músicas sejam instrumentais, compostas para piano solo, cheias de melodia, harmonia, invenções rítmicas, beleza. E todo sentimento do mundo contido no sentimento do compositor e pianista. E “sentimento do mundo” aí deve ser lido não apenas como imagem poética, mas como algo palpável nas músicas, já que elas foram de fato compostas a partir do sentimento do artista no momento em que as compunha: todos os 12 temas são fruto do “Diário Musical” que Leandro Braga se impôs durante todo o ano de 2021, no qual compôs uma música para piano solo por dia, todos os dias daquele ano. Das 365 músicas finalmente compostas ao piano, 12 estão aqui, vivas como o sentimento vivo do dia em que foram feitas, gravadas posteriormente pelo próprio Leandro no magnífico piano Steinway de cauda do estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio.
De óbvia inspiração africana, ou seja, de alto potencial subversivo, há pelo menos duas: “Atotô, meu pai” e “Luiza Mahin”. A primeira, uma espécie de afro-samba-funk, é dedicada ao violonista, cantor e compositor Cláudio Jorge, no candomblé um filho de Obaluayê, o orixá de proteção e luta, e na música autor de temas vibrantes e suingados como esse. Como todo afro-samba, “Atotô meu pai” tem uma primeira parte modal, no caso uma capoeira-funk, que evolui para uma segunda parte tonal, um samba bem melódico, ambas as partes executadas com técnica apurada por Leandro, mais celebrado como arranjador da MPB (como em sua longa parceria com Ney Matogrosso), mas igualmente grande compositor e pianista.
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“Luiza Mahin”, tema também vigoroso, é fruto de uma das muitas suítes que nasceram durante o Diário Musical de 2021, no caso a suíte “Guerreiras negras”. Como a personagem que homenageia – a figura histórica, quase mitológica, da africana escravizada que lidera insurreições na Bahia do século XIX como a Revolta dos Malês e a Sabinada e seria mãe do abolicionista Luiz Gama – a música “Luiza Mahin” tem insuspeita origem africana em seu compasso composto, um 12/8 típico de certas regiões da África, que resulta num tema agitado, instigante, épico.
Outra suíte que nasceu do Diário Musical – e não menos negra nem menos guerreira – é a dedicada a Marielle Franco, composta por 12 temas, dos quais somente dois estão aqui. “A força de Marielle” é um tema vigoroso e épico, como “Luiza Mahin”, unindo no espírito musical as duas guerreiras de séculos distintos. Já “Um afago para Marielle”, como indica o título, é mais intimista, melódico, um tema quase impressionista e bem “pianístico”.
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A política inspirou boa parte das composições. No caso de “O Brasil é maior” foi a indignação política, ou o mesmo o desespero de em 2021 não ver luz no fim do pesadelo político que se vivia no Brasil que, no entanto, resultou na música mais propriamente festiva de todo o álbum, uma festa enfatizando que “O Brasil é maior” do que aquele momento de trevas. “Alma palestina”, em seu compasso 11/8, irregular como a vida, também é uma festa, inspirada nas comemorações árabes nas quais as pessoas dançam abraçadas, ombro a ombro, apesar da violência e das adversidades.
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Já “Padre Júlio” (dedicada ao Padre Júlio Lancelotti) é mais lenta, paciente, repetitiva – e linda – como o trabalho, a dor, a resistência constantes e diários do religioso com o povo das ruas que atende, apoia e conforta. “Valsa dos desaparecidos”, dedicada aos mortos pelas ditaduras militares do continente, vai no mesmo movimento intimista, quase um réquiem, melancólico e belo.
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Nem tudo, no entanto, é épico. Como os dias que correm num ano inteiro de inspiração, há momentos de leveza, quase de música pela música. É o caso de “Pro Spok”, um irrequieto frevo em compasso ternário, coisa nada usual no gênero, segundo Leandro feito assim porque dedicado ao maestro Spok, “um músico também não usual”, que conduz em Pernambuco a sua inovadora Spok Frevo Orquestra. É o mesmo espírito, só que em outro gênero, de “Quase valsa”, em tudo uma valsa brasileira que só não é valsa porque não foi composta em compasso ternário (emprestado ao estranho frevo).
Ainda nesse espírito inventivo e musical, se “Arminda” é um choro lento e saudoso da avó contadora de histórias que homenageia, “Guete menina” também habita o universo do choro, mas musicalmente remete a uma daquelas danças de salão antigas que tanto alimentaram o choro moderno. Em compasso irregular, alegre e cheia de surpresas e pequenas traquinagens harmônicas e melódicas, é dedicada à produtora paulista Guete Oliveira, bem no contexto íntimo de um disco sobre um diário musical, que reflete a vida no seu dia-a-dia.
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A vida, aliás coisa insuportável para qualquer projeto autoritário como aquele vigente no momento em que estas músicas foram compostas. O resultado, entre o histórico e o pessoal, são fragmentos de beleza de um pesadelo do qual se acordou, trilha sonora da vida de um pianista e de seu país.
DISCO ‘PIANO’ • Leandro Braga • Selo Biscoito Fino • 2023
Música/ compositor
1. O Brasil é maior (Leandro Braga)
2. A força de Marielle (Leandro Braga)
3. Quase valsa (Leandro Braga)
4. Alma palestina (Leandro Braga)
5. Um afago para Marielle (Leandro Braga)
6. Padre Júlio (Leandro Braga)
7. Atotô, meu pai (Leandro Braga)
8. Guete menina (Leandro Braga)
9. Luiza Mahin (Leandro Braga)
10. Valsa dos desaparecidos (Leandro Braga)
11. Arminda (Leandro Braga)
12. Pro Spok (Leandro Braga)
– ficha técnica –
Piano: Leandro Braga | Gravado do estúdio Biscoito Fino | Engenheiro de gravação: Lucas Ariel | Engenheiro de mixagem e masterização: Alexandre Hang | Produção musical: Leandro Braga | Fotos: Arthur Rangel | Arte/ capa: Nena Oliveira | Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino | Formato: CD Digital | Ano: 2023 | Lançamento: 10 de agosto | #* Ouça o álbum: Spotify | Deezer | Youtube.
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> Leandro Braga na rede: Instagram | Youtube | Facebook | Linktree.
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Série: Discografia da Música Brasileira / MPB / Música instrumental.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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