quarta-feira, dezembro 18, 2024

Poesia, DNA, hemisférios cerebrais, xamanismo e cura

A linguagem que utilizamos no cotidiano é predominantemente linear, analítica, conceitual e utilitária. O idioma é utilizado de modo quase que exclusivamente exo-referente sem a atenção para sua materialidade e para outros modos possíveis de comunicação e expressão. A linguagem poética, por outro lado, é muitas vezes definida como autorreferente ou metalinguística.

Neurologicamente, as funções da linguagem verbal analítica estão situadas numa pequena região do córtex cerebral do hemisfério esquerdo. O hemisfério cerebral direito processa informações de modo holístico, sintético e em termos sensoriais, ou seja, som (prosódia, ritmo e melodia), cor, textura, etc. Trabalha através de imagens. O estado ideal de aprendizado, criatividade e saúde mental ocorre quando os dois hemisférios trabalham em sincronia.

Nossa educação e cultura baseiam-se principalmente nos modos perceptivos do hemisfério esquerdo. Na leitura convencional (prosa), utilizamos predominantemente nossa capacidade racional e analítica. Para a leitura de poesia, precisamos incluir em maior grau as funções do hemisfério direito e perceber a sonoridade das palavras, perceber as imagens que evocam. É por esse motivo que a poesia é pouco lida e muitas vezes mal lida, pois a poesia é feita de palavras – que normalmente processamos com nossa parte racional verbal analítica – porém a palavra na poesia é mais do que conceito – é sua materialidade (som, forma) e o seu significado é maleável, contextual, figurativo e imagético. Portanto, ou lemos poesia parcialmente, ou lemos com os dois hemisférios do cérebro (que é com o corpo todo).

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DNA – Ilustração: Webspark

A linguagem poética é a contrapartida, no uso do idioma, da linguagem da vida, tanto da vida enquanto ecossistema, quanto da vida enquanto código – DNA – que é uma linguagem autorreferente espirálica que se reproduz. É uma linguagem que gira em torno de si mesma, como a linguagem poética. Verso significa volta. É uma linguagem que se volta para si para revelar e co-criar com o outro sem se impor…, portanto, ainda que os temas de ecologia ou DNA não apareçam explícitos numa obra poética, suas formas estruturais se assemelham e, mesmo que de modo subconsciente, os leitores/ouvintes sensibilizam-se para a VIDA.

Em Biologia, um dos elementos apontados como estando presentes no que é vivo é a autopoiesis – autocriação, autogeração… não é interessante que a palavra poiesis apareça aí? Poiesis é poesia, é a raiz etimológica que vem do grego e significa fazer, criar, gerar… Uma das características da vida, talvez a central, é a autopoiesis… esta característica se deve talvez à própria forma do DNA, que é uma linguagem sofisticadíssima, que gira em torno de si mesma, sendo, como a poesia, uma linguagem autorreferente… Código genético, código poético… Gênese tem também um significado similar a poiesis… gerar, criar…

Portanto, a linguagem poética, nesse sentido amplo, é uma linguagem primordial. É a linguagem do cosmos.

O escritor e poeta norte-americano Ezra Pound escreveu que uma das importantes funções da literatura está no cuidado com a linguagem, numa espécie de higiene do idioma, higiene necessária e benéfica para toda a nação, e também escreveu que a paz surge da comunicação.

Melhorar a comunicação é melhorar as relações. Existem campanhas para que as pessoas respeitem o meio ambiente e os outros, mas não nos educamos em respeito. Respeitar (re spectare) significa “tornar a ver”. Ver e, em seguida, ver novamente, conscientizar-se da presença do outro – isso é respeitar. Se nem mesmo enxergamos algo, não é possível haver respeito.

A poesia é um instrumento de aguçamento da visão. Ela pode nos ajudar a ver as coisas, a ver o mundo – a natureza, as pessoas. Quando vemos, percebemos uma presença, podemos cultivar a capacidade de ver beleza. E quando vemos algo belo, não pensamos em ferir ou jogar lixo em cima. Ver é essencial para o respeito. Reconhecer a beleza é essencial para o respeito. A arte pode nos ajudar muito mais nisso do que qualquer ideologia política, religião, filosofia ou ética. A Arte nos ajuda a enxergar a beleza, a vida, e, a partir disso, respeitar é natural. A Arte pode nos aperfeiçoar como seres humanos, como percebedores. A arte nos ajuda a sentir. E, quando sentimos, respeitamos.

A função do poeta, daquele que trabalha a linguagem no seu nível mais essencial e explora suas vastas possibilidades de comunicação e expressão, é e pode ser muito mais abrangente do que tem sido reconhecida:

“Em qualquer civilização viva e florescente, sobretudo nas culturas arcaicas, a poesia desempenha um papel vital que é social e liturgia ao mesmo tempo (…) A verdadeira designação do poeta arcaico é Vates, inspirado por Deus, em transe. Estas qualificações implicam ao mesmo tempo que ele possui um conhecimento extra-ordinário. Ele é um sábio, sha’ir, como lhe chamavam os árabes (…) Todos os poetas gregos arcaicos revelam vestígios de seu progenitor comum. Sua função é eminentemente social; falam como educadores e guias do povo; São os líderes da nação, cujo lugar mais tarde foi usurpado pelos sofistas. ” (HUIZINGA, 2004, pp 134-135).

O estudo etimológico nos revela que, quanto mais voltamos à raiz de um vocábulo, encontramos algo concreto e uma imagem. Por exemplo, a palavra “pergunta”, que hoje para nós é um conceito abstrato, surge através da analogia com um objeto e uma ação concreta. Perguntar provém do latim “percontáre”. O prefixo “per” indica movimento para os lados e “contus” era um bastão utilizado por barqueiros para ir tocando o fundo do rio e evitar o encalhe. Trata-se do mesmo bastão que também foi e é utilizado por cegos para “tatear” o ambiente e guiar-se em suas trajetórias. Daí sacamos o significado de perguntar – sondar o fundo, o desconhecido, o que não vemos ou sabemos, para nos movimentarmos. Perguntar é buscar conhecer o que ainda não está ao nosso alcance, é sondar o desconhecido…

Não há como negar que trazer uma imagem atrelada a um conceito o enriquece e amplia – e é isso que faz a poesia. No parágrafo anterior, ilustramos a formação de um novo conceito através da analogia de função – a função de sondar com o bastão o ambiente físico é análoga à função de sondar com questões o ambiente informacional conceitual. Os exemplos são inúmeros. Idiomas como o chinês demonstram, com mais clareza, esse processo de analogia dentro do idioma, que é vital e inerente à linguagem.

Este é o processo básico da criação poética. Vemos, portanto, que o nascimento e o desenvolvimento de um idioma obedecem aos mesmos princípios que regem a criação poética. Realçar a etimologia e se comunicar de maneira figurativa revitalizam o idioma e a cultura:

“Os conceitos, prisioneiros das palavras, são sempre inadequados em relação à torrente da vida; portanto é apenas a palavra-imagem, a palavra figurativa, que é capaz de dar expressão às coisas e, ao mesmo tempo, banhá-las com a luminosidade das idéias: idéias e coisas são unidas na imagem. Mas, enquanto a linguagem vulgar, que em si mesma é um instrumento prático e útil, está constantemente gastando as imagens contidas pelas palavras, e adquirindo uma existência superficial própria (que só aparentemente é lógica), a poesia continua cultivando as qualidades figurativas, ou seja, portadoras de imagens, de maneira deliberada(…) Na cultura arcaica, a linguagem dos poetas é o mais eficaz dos meios de expressão, desempenhando uma função muito mais ampla e vital do que a mera satisfação das aspirações literárias.” (HUIZINGA, 2004, pp 149)
Nas culturas ditas arcaicas, a função do poeta assemelha-se, quando não se sobrepõe ou mescla, à do xamã, curador e porta-voz poético das diversas camadas da psique coletiva e além:

“A ‘fala-pensamento’, um complexo conjunto de fórmulas poéticas articulados pelos xamãs em seus rituais e conversas noturnas, constitui o núcleo duro dessa ‘tradução xamanística’ (…) É através dela que um xamã, aprendiz ou avançado, pode conhecer efetivamente os cantos-mito e os cantos de cura (…) Tal ‘fala-pensamento’ possui diversas semelhanças com a conhecida ‘linguagem torcida’ (tsai yoshtoyoshto) yaminawa estudada por Townsley (1993: 460), empregada ‘para examinar as coisas com cuidado – para vê-las com clareza’ (ibidem), como explicava um xamã ao autor.

Válida, sobretudo, por indicar o caráter necessário do emprego metafórico da linguagem no xamanismo, uma vez que ele oferece ao xamã o conhecimento sobre o surgimento (wenía) ou a formação (shovia) de todos os entes do cosmos – conhecimento, aliás, cujos elos de transmissão estão ameaçados nos dias de hoje. É por desconhecerem tal emprego da linguagem, por exemplo, que os jovens adoecem: adoecem porque ‘não têm pensamento’ (china yama); não conhecem as entidades existentes em sua completude e estão, portanto, permanentemente sujeitos às ameaças do campo sociocósmico. ” CESARINO, 2012.

O trecho citado acima e especialmente as partes em negrito e sublinhadas ilustram muito bem um dos aspectos centrais deste artigo – a linguagem poética como agente de cura e educação, como aspecto crucial de coesão individual e comunitária.

De fato, o xamã/pajé pode ser visto como protopoeta, e sua função dentro da comunidade pode ser encarada de modo similar.

O poeta se aproxima da figura do pajé, do xamã, que cura através de uma linguagem especial – cantada e poética, que revela novos horizontes e modelos perceptivos e comportamentais. Uma das funções do pajé é comunicar-se com as forças da natureza e intermediar a comunicação com a tribo. A linguagem é o elemento indispensável de sua função, uma linguagem bem específica – a linguagem do cântico, a linguagem metafórica e simbólica, que é exatamente a linguagem da poesia. As “belas palavras”, como as chamam os guaranis; a “fala-pensamento”, como dizem os marubo; a linguagem torcida (que gira em torno de si mesma), como dizem os yaminawa…

A tendência da nossa cultura é analítica e linear, que levou a uma fragmentação do conhecimento. Conseguimos pesquisar o detalhe do detalhe, mas perdemos as conexões e a totalidade. Perder a percepção da conexão e interdependência de tudo é o que está nos levando à crise nos mais diversos aspectos: sociais, ecológicos, educacionais, políticos, etc.
Como ter realmente consciência ecológica – ou seja, consciência da conexão e interdependência de toda a vida, se não utilizamos de maneira adequada a linguagem da arte, que é a linguagem que revela as conexões, a linguagem da síntese, a linguagem que unifica?

A poesia é a linguagem de retorno. É a linguagem da integração neural; da unificação do intelecto com o sentimento e a imaginação, com as linguagens trans-pessoais. Linguagem musical por ressonância. Consciência ecológica através da ecologia da linguagem.

A linguagem poética tem a propriedade de conectar as funções dos dois hemisférios cerebrais, enriquecendo a vida e a percepção de quem está em contato com ela. Tem a capacidade de ajudar na integração de camadas diferentes da psique, já que se utiliza de símbolos e metáforas, a linguagem natural do inconsciente. Ao fazer isso, o poeta recupera uma função que foi se perdendo ao longo do tempo – a função de curador-educador da comunidade. A poesia tem um efeito similar ao dos cânticos e mitos dos povos orais indígenas. Hoje, estamos buscando resgatar e integrar essas culturas, mas, para que possamos realmente entender essas outras culturas, temos que entrar em contato e entender a linguagem mítico-poética que é a linguagem base de suas comunidades, e em essência, trans-cultural.

No Japão, o haicai – que foi explorado bastante no início do modernismo, principalmente no que diz respeito à forma – concisão, síntese e imagem – em seu exercício original estava indissoluvelmente ligado à meditação. “O haiku transforma-se e converte-se na anotação rápida – verdadeira recriação – de um momento privilegiado: exclamação poética, caligrafia, pintura e meditação, tudo junto. O haiku de Bashô é um exercício espiritual. ” (PAZ, 2003)

No oriente, em sociedades tribais, e em algumas vertentes da poesia ocidental, a criação poética envolve silêncio, contemplação da natureza, atenção direcionada às imagens interiores, dança, música, etc.

Enfim, O exercício poético é uma das técnicas arcaicas do êxtase, um dos preciosos métodos atemporais e transculturais de conhecimento e expansão da consciência.

– Pedro Ivo, excerto do livro “Reversão da Perversão”. 2014.


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