domingo, novembro 17, 2024

Por que a capoeira é a “arte-mãe” da cultura brasileira e da identidade nacional

por Henrique Mann (músico, historiógrafo e mestre em artes marciais)*
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A capoeira ajudou a moldar o samba e até o futebol do país, defende pesquisador, que chama atenção também para as “dívidas não pagas” para com os povos responsáveis por trazer essa linguagem ao Brasil

A pergunta que não quer calar é: quando será reconhecido o valor basilar da capoeira para a construção da identidade musical brasileira?

Duas das principais referências que o mundo tem do Brasil são a música e o futebol. Embora pouco se diga, a capoeira está na raiz de ambas. Esse caldeirão cultural fervilhante de ginga e sons espalha-se por todo o planeta, é visível nas ruas, nos shows, nos estádios, mas, mesmo no nosso país, não é completamente compreendido. É uma história complexa, perdida nos escaninhos da tortuosa memória brasileira que por séculos tentou sonegar a devida importância de suas origens básicas africanas ou indígenas, e os reflexos desse conflito identitário permanecem até os dias atuais.
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A partir de 1532, milhões de africanos foram arrancados de suas nações e trazidos para o Brasil, dando início ao maior processo de migração forçada da história. Ao longo dos séculos, os escravizados deixaram impressas suas marcas na cultura brasileira. Uma das mais importantes e influentes dessas raízes foi a capoeira.

A origem da palavra é do tupi: ka’a (“mato”) e pûera (“que foi”). Embora seja controvertida a razão da utilização do termo, a tese mais aceita é de que a vegetação derrubada ao redor das fazendas favorecia a fuga dos escravos, pois, se tentassem fugir pela mata fechada, ficariam embrenhados no cipoal. Seja como for, as primeiras referências a uma forma de luta própria dos escravos remontam ao Quilombo de Palmares e vieram dos soldados portugueses (“Dragões”) que relataram, por volta de 1690, ser necessário “mais de um Dragão” para capturar um negro desarmado, pois estes defendiam-se com uma “estranha técnica de esquivas e pontapés”. Por isso o Quilombo de Palmares é apontado como um dos prováveis berços da capoeira, o que é questionável (há sérios estudos que apontam para Sergipe como matriz); mas sabe-se, com certeza, de sua origem no antigo ritual N’Golo, ou “Dança das Zebras”, praticada na África Austral, atual território de Angola, onde os jovens formavam rodas e disputavam um misto de luta e dança com base na observação das disputas das zebras machos pelas fêmeas, com coices e cabeçadas.

As primeiras imagens que se têm, porém, são completamente reveladoras. Em 1824, o inglês August Earle pintou Negros Lutando e, em 1835, o germânico Johann Moritz Rugendas registrou a cena definitiva no quadro Roda de Capoeira, no qual veem-se claramente os rudimentos da técnica da luta e o uso de instrumentos musicais acompanhados de palmas.

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Roda de Capoeira, de Johann Moritz Rugendas (1835)

As rodas de capoeira eram praticadas com música não apenas por sua origem na antiga dança das zebras. Os donos de escravos permitiam que dançassem para evitar que ficassem deprimidos (banzo), e ali eles aproveitavam para treinar luta. Dentre os toques mais antigos de berimbau há um, por exemplo, chamado “cavalaria” que avisava da aproximação do feitor e outros vigilantes – nesse momento, as mulheres abriam suas saias como asas para impedir a visão do que ocorria e os capoeiristas passavam a dançarinos. Puxavam as mulheres para o centro da roda e seguiam em danças de umbigadas, escapando dos castigos por serem flagrados praticando técnicas de combate.

Foi provavelmente dessas rodas que nasceu o chamado “samba do Recôncavo baiano”. Das percussões e cantorias que acompanhavam a capoeira consolidou-se o principal tronco musical brasileiro, do qual derivaram o samba e o coco. Aliás, a música de capoeira, que os brancos incluíam no que chamavam genericamente de “batuques”, antecede o chorinho em 50 anos e o samba em quase um século.

Não à toa, Vinícius de Moraes cantava que “o samba nasceu lá na Bahia, e se hoje ele é branco na poesia, é negro demais no coração”. Foi ao ter contato com esse universo que ele e o violonista Baden Powell criaram a célebre série dos “afro-sambas”. Mas, muito antes, essa cultura já havia sido transposta para os morros do Rio de Janeiro, em um movimento conhecido como Pequena África. No início do século 19, era prática corrente encontros musicais nas casas das “tias” baianas Yalorixás. A mais conhecida foi Hilária de Almeida, a Tia Ciata, até hoje uma referência sobre o surgimento do maxixe, logo samba. Na casa dela gerou-se o primeiro samba registrado em disco, Pelo Telefone (1917), com autoria assumida por Ernesto dos Santos (Donga), sobre o que ainda restam controvérsias – cogita-se que tenha sido obra coletiva e de “roda”.

Ao largo desse debate autoral, fica evidente a matriz transposta da Bahia para a Pequena África no Rio de Janeiro e da Grande África para o Brasil ao longo de séculos.

Verdades não reconhecidas

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Cândido da Fonseca Galvão (Dom Obá II)

Na Guerra do Paraguai (1864-1870), o Império Brasileiro constituiu a Companhia de Zuavos da Bahia, pelotões formados por negros dentre os quais destacou-se Cândido da Fonseca Galvão (Dom Obá II), natural de Lençóis da Bahia e descendente de reis africanos. Esses foram decisivos na guerra por seu destemor e capacidade de combate, especialmente na Batalha de Tuiuti e na Retomada de Uruguaiana (RS). Eram quase todos capoeiras. Foram elogiados pelo Conde d’Eu (Gastão de Orleans) como a “mais linda tropa do Brasil”, pelo “capricho com suas indumentárias”. Receberam a promessa de liberdade e equiparação aos demais soldados ao final da guerra.

Foram traídos. A tropa foi desmobilizada e desarmada. Grande parte deles morreu à míngua. Dom Obá ainda obteve algum reconhecimento recebendo posto “honorário” de oficial. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde era amado pelos pretos, foi recebido por Dom Pedro II, teve ação destacada como abolicionista, mas era tratado pela “boa sociedade” (branca) como personagem caricato, “amalucado” e “extravagante”, um “excêntrico contador de histórias legendárias” de “nobres africanos” e “pretos heróis de guerra”, feitos risíveis e inverossímeis aos olhos da Corte. Na República, foi cassado seu título militar. Antes disso, ao final da guerra, vários Zuavos foram presos por prática de “capoeiragem”, considerados “vagabundos”, marginalizados. Só uma vez foram homenageados com o nome de uma rua em Salvador, ao lado do Fórum, mas depois aquele nome foi substituído pelo atual, Rua Tinguí.

Não encontrei nenhuma outra homenagem oficial à Companhia de Zuavos. Mas, ao policial Miguel Nunes Vidigal, sim, ainda que às avessas. Ele dá nome ao atual bairro do Vidigal, no Rio de Janeiro. Notabilizou-se por torturar e assassinar praticantes de candomblé e capoeira. Era um exímio capoeirista, porém, a mando do Império, sua função era exterminar os representantes da “arte-mãe”. Os mestres por ele capturados, antes de serem assassinados, sofriam longas sessões de tortura chamadas Ceia dos Camarões, nas quais açoitava e despejava óleo fervente sobre suas vítimas.

Já na República, a capoeira foi criminalizada a 11 de outubro de 1890 (Decreto 847) e assim permaneceu até 1937. Em 2014, foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, mas ainda prossegue submersa na falta de reconhecimento de sua ancestralidade para a cultura brasileira. Neste ínterim, viveram e morreram muitos lutadores, guerreiros e criadores, como Besouro, Pastinha e Bimba.

Os mestres prosseguidores dessa construção histórica, digna dos mais profundos estudos, têm agora melhores condições de trabalho no Exterior do que no Brasil. Mas o que tange mais fortemente a este artigo é a música. E a pergunta que não quer calar é: quando será reconhecido o valor basilar da capoeira para a construção da identidade musical brasileira? Isso apenas para citar esta parte, porque, sobre os Zuavos, que morreram pelo Brasil na Guerra do Paraguai, ou os negros, que morrem sob açoite para a construção da nação, já ultrapassa qualquer marco civilizatório possível.

Sinto-me à vontade para falar sobre esses temas porque a prática de música e de artes marciais estão presentes na minha vida desde sempre. Comecei no judô e no boxe ainda na adolescência, mas, em 1978, conheci o mestre Monsueto (Ananílson de Souza), professor de karatê e mestre de capoeira. Passei a praticar com ele e, em 1981, fundamos em sociedade a Academia Okinawa, em Santa Catarina. Assim mergulhei no universo da capoeira e tive acesso a grandes mestres da “arte-mãe”. Mas eu era, já, um músico profissional. Percebia claramente o quanto eram bons os percussionistas e cantores capoeiristas. O Mestre Monsueto, cujo apelido vinha justamente de ter voz semelhante à do famoso cantor homônimo, era ótimo na percussão, um dos mais completos músicos de capoeira que conheci. Tornou-se meu parceiro não só no mundo das lutas, mas também tocava comigo em shows. Através dele conheci outro gigante da capoeira: o mestre Nino Alves.

Exímio executante do gênero, cantor e instrumentista, Mestre Nino é autor de um CD seminal chamado Tchê Capoeira. Isso é fundamental para o entendimento de tudo o que aqui foi dito, desde o início. O Mestre Monsueto, já falecido, era carioca, negro, e orgulhava-se muitíssimo disso. Era também faixa preta de um dos estilos mais complexos do karatê: o Goju Ryu, no qual foi graduado pelo Grão Mestre japonês Akira Tanigushi. Já o Mestre Nino, mais jovem do que Monsueto, é um “homem branco”, gaúcho, oriundo do judô e professor de Full Contact, mas extremamente ligado à cultura africana inclusive pela música, o samba e manifestações culturais diversas. Tornou-se tricampeão brasileiro dos pesos pesados de capoeira. Em 1983, fundou a Barravento no Rio Grande do Sul, uma “linhagem” e “escola” da capoeira mais voltada para o combate e para a luta do que para a parte acrobática, criada em 1973 pelos mestres Bogado e Paulão, no Rio de Janeiro. Da mesma escola vem o Mestre Torpedo, fundador da Barravento no Espírito Santo.

Minha construção como praticante de capoeira iniciou-se com o Mestre Monsueto e concluiu-se com os mestres Torpedo e Nino Alves. Assim, aprendi o significado de tudo isso para a cultura do Brasil. Hoje sou mestre em Kickboxing (faixa preta 4º Dan), graduado em várias outras artes marciais, mas meu cordel amarelo-azul da Capoeira Barravento me é muitíssimo precioso. Ele sopra sons aos meus ouvidos. É dele que emana uma das vertentes mais fortes do meu conhecimento musical e a razão principal de orgulhar-me de ser brasileiro, músico e artista marcial.

E aqui devo destacar: a capoeira é a única forma de luta do mundo regida por compassos musicais! Assim descobri minha própria identidade. Entendi que, mesmo tendo pele clara, sendo sulista, praticante de artes marciais orientais ou americanas, sou genuinamente brasileiro, que tenho raízes culturais africanas e sinto imenso orgulho delas!

Se hoje sou músico profissional e mestre em artes marciais, devo muitíssimo aos povos arrancados da África desde 1532. E é por isso que não sou branco, nem preto, nem sulista e nem nordestino; sou o retrato do meu país, policultural e multiétnico. Por maiores dificuldades pelas quais possa passar meu povo ao longo dos séculos, serei sempre e acima de tudo brasileiro. Como disse o poeta e compositor Vinícius de Moraes, chamado também de o “branco mais negro do Brasil”:

– Quem é homem de bem não trai. (…) Capoeira que é bom não cai, mas se um dia ele cai, cai bem!

:: Mestre Nino

Fonte: *Originalmente publicado em Zero Hora.


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