A perfeição seria o tédio, e desse, sim, eu poderia morrer, para bocejar até o final dos tempos contemplando a ordem celeste: anjos rechonchudos naquela disciplina, ninguém dando um escorregão, ninguém botando a língua pra São Pedro, nem o próprio solta um palavrãozinho ao bater o pé em uma nuvem mais escura, o raio lhe chamuscando o calcanhar?
Eu quando criança morria de medo dessa ordem impenetrável na qual não haveria lugar para mim.
Porque somos imperfeitos, podemos melhorar. Podemos aprender formas melhores de convívio e de amor. Podemos até mesmo superar adições, que são a servidão do corpo e da alma.
Outro dia conheci um grupo de homens e mulheres, dos mais variados níveis culturais e sociais, que fizeram da imperfeição a sua razão de vitória. Das pedras que tiveram e têm de quebrar construíram seu caminho, alguns até seu castelo. Gente que se livrou — ou ainda luta para se libertar — da adição química, qualquer que seja, não importa se álcool ou outra droga.
Reúnem-se em grupos nos quais se exerce a humildade, a sinceridade, o respeito, e a fé em algo melhor: senti-me privilegiada podendo estar com eles, mais para aprender do que falar.
Nós, que não vivemos o drama da adição química, como somos ignorantes, preconceituosos, rápidos em condenar e superficiais no compreender. Com isso disfarçamos nossos próprios medos, em lugar de os enfrentar como fazem esses anônimos guerreiros.
Fingimos ser superiores, batendo grandes papos sobre dinheiro, futebol, sacanagem, política, ninguém levando porrada — como diria Fernando, o Pessoa. Não estamos nem aí.
Botamos tapa-olhos para não enxergar o que se passa, vestimos máscaras para que a verdade não nos cuspa na cara, e nos defendemos do rumor que nos ameaça, botando fones de ouvido enquanto caminhamos na esteira para ficarmos em forma.
Mas temos medo e solidão; como país, presenciamos escândalos nunca antes vistos, temos nossa confiança duramente abalada. A violência é cotidiana, o narcotráfico nos ameaça, mais pessoas foram assassinadas por aqui do que nas guerras ao redor do mundo nos últimos anos. Andamos encolhidos dentro de casa.Estão cada vez mais altos os muros do medo e do silêncio.
Não acho que antes fosse o paraíso, mas nunca vi tão escrachada corrupção e tão aberta impunidade.
A gente se lamenta, dá palpites e entrevistas, organiza seminários. Resultado? Parece que nenhum. Melhor não saber a quem a situação interessa, nem por que sugestões e explicações insólitas aparecem e desaparecem das páginas de jornal e telas de televisão.
Quando nada se pode fazer, optamos pela resignação. Mas sou da tribo (não tão pequena) dos que não se conformam. Não acredito em revolução, a não ser pessoal. Em algumas coisas sou antipaticamente individualista. Não sou boazinha, e quem julga meus livros bonzinhos está lendo com os óculos da sua própria burrice. Mas acho que quando o complicado não resolve pode-se tentar o mais simples. Às vezes ser simples é original.
Cada vez que, seja por trágica dependência, seja por aquilo que minha velha mãe chamava “fazer-se de interessante”, um de nós consome uma droga qualquer (mesmo o cigarrinho de maconha dividido com a turma) está botando no cano de uma arma a bala — perdida ou não — que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador. Nosso filho, quem sabe.
É uma afirmação dura? É. A vida pode ser muito dura, e, pior que isso, cada um de nós é responsável.
Num jantar, há muitos anos, um conhecido desabafou, com grande culpa, que costumava fazer-se de pai amigão fumando maconha com os filhos quando adolescentes, para estar mais próximo deles. Um dos meninos sofreu gravíssimos problemas de adição pelo resto da vida.
O pai era culpado? Não creio. Nas tragédias familiares só há vítimas, embora alguns devam ser mais responsáveis do que outros. A vida não é tão simples, nem eu sou, de longe, moralista. Mas a gente brinca demais à beira do abismo.Voltando ao começo deste artigo: os que me chamaram para falar, ouvir e aprender, renovaram minha convicção de que na questão da violência ligada ao narcotráfico, portanto ao uso de drogas, sermos os eternos queixosos que não fazem nada é outra forma de violência — perigosa porque sutil.
É colaborar com os que vão nos atingir no coração: diretamente com uma bala, ou com a morte praticamente anunciada de alguém que amamos.
— Lya Luft, no livro “Em outras palavras”. Rio de Janeiro: Record, 2011
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