Vou começar como faço sempre, dizendo o seguinte: as aulas fáceis não têm o menor interesse; os livros fáceis não têm o menor interesse; as conferências fáceis são uma chantagem em relação aos que se dispuseram a escutá-las. Estou dizendo isto com o temor de que para certos dos presentes algo do que vou dizer possivelmente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitando-lhes a tolerância, mas também a atenção.
O tema que me foi encomendando é “Por Uma Geografia Cidadã”. Tomei a liberdade de atribuir-lhe um subtítulo e esta conferência vai se chamar “Por Uma Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Existência”. Esta conferência vai se processar em quatro tempos ou pontos. Primeiro ponto: Por Uma Geografia Cidadã – por que uma Geografia Cidadã? Em outras palavras, para que trabalhamos intelectualmente hoje? Pela necessidade da volta ao Homem. Segundo ponto: Geografias e Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal. Já falamos nisto em outro lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geografia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espaço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o valorativo e não sobre o adjetivo. Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de cotidiano que os geógrafos frequentemente incorporam a partir da Sociologia, quando é possível fazê-lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Geografia, o que nos deveria permitir enriquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Epistemologia da Existência. Em outras palavras, trata-se da reconstrução do método através da vida, isto é, do Homem vivendo.
Por uma Geografia cidadã _ Por que uma Geografia cidadã?
Como primeira observação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste país, todos não são igualmente cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e havendo os que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam privilégios e não direitos.
Duas questões aqui se colocam do ponto de vista da nossa disciplina: a primeira é como ajudar a construir a cidadania através da Geografia e a segunda é como construir a Geografia através da ideia de cidadania, tarefas inseparáveis. O que seria esta geografia do cidadão? Seria uma geografia engajada? Cabe conversar um pouco sobre essa palavra. Quando utilizamos a expressão “geografia engajada”, estaremos falando de uma geografia engajada a priori, decidida a encetar a tarefa da crítica, mesmo antes de concluir a tarefa da análise. Mas isto pode ser apenas uma geografia com um discurso vazio e vadio, incapaz de oferecer aqueles instrumentos analíticos de que necessitamos para enfrentar a dura tarefa de interpretar a realidade social.
A análise tem que ser pertinente. Análise pertinente significa que o analista sabe claramente o que está fazendo. Aliás, a dificuldade da participação da Geografia nas interdisciplinaridades vem do fato de que raramente uma certa geografia sabe o que está fazendo. Se os próprios geógrafos não são capazes de oferecer às outras disciplinas uma visão clara da sua pertinência, todo debate se torna impossível. O debate só é possível quando o que fala ou escreve oferece claramente o sistema que preside a indagação feita à realidade. Ora, esta geografia do cidadão, como a geografia taut court, necessita de uma análise fundada nessa noção de pertinência.
Poderia também fazer uma outra pergunta: será que a geografia do cidadão se opõe à geografia dos experts? Creio que sim. E aí perguntaria, em adição, se pode haver um expert generalista? Pode ser que haja. O problema com o expert, pessoa geralmente externa às coletividades às quais vem estudar, é a sua freqüente incapacidade em participar do cotidiano e em perceber, sem partis pris, o funcionamento político das coletividades. Na medida em que, a partir do cotidiano, o lugar hoje se impõe como dado central das pesquisas em ciências sociais, daí vem a fragilidade da geografia dos experts.
Não esqueçamos esta verdade cristalina: o valor do homem depende do lugar onde está. Nossa dificuldade em relação às outras ciências sociais é exatamente esta, porque o lugar é praticamente desconhecido de disciplinas sociais, como a economia, a sociologia e outras. É que a noção de espaço praticamente escapa a estas disciplinas. O lugar deve ser considerado como um conjunto de objetos e, ao mesmo tempo, o receptáculo de um feixe de determinações, não apenas de algumas, como na economia (determinações econômicas); ou na sociologia (determinações sociais); ou na antropologia (determinações culturais); ou nas ciências políticas (determinações políticas); mas de todas as determinações. Então, a geografia do cidadão começa por recusar o economicismo triunfante, que faz do economista não um especialista da sociedade, mas um servo da técnica, um trabalhador em benefício da administração dos negócios aos quais as técnicas se aplicam, como se fossem absolutas, sem necessidade de relativizá-las.
A geografia do cidadão sugere, também, o abandono do sociologismo simplório. De uma maneira geral, os sociólogos não oferecem metáforas espaciais, lemos que agradecer-lhes, já que as metáforas chamam a atenção para aspectos das questões e os põem em relevo. Só que as metáforas não constituem sistema e, por conseguinte, não ajudam na produção de conceitos e nem de teorias, fora das respectivas disciplinas.
Geografia e geografias, espaços adjetivados e espaço banal
As diversas geografias, isto é, a geografia dos transportes, a geografia do comércio. a geografia da população, a geografia da indústria, etc … são parcialidades que levam em conta aspectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar
para a análise, fazê-lo, também, para síntese, o que é um grande risco. Estas espacializações singulares, como os transportes que fluem numa área, ou como o comércio, alteram o significado de uma região. Não é o espaço que se estuda assim, mas sim fragmentos dele. Quando me refiro à realização da economia, da sociedade, da cultura, da politica, o que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço econômico, o espaço cultural, o espaço político, o espaço social, mas o que quero entender e preciso entender, é o espaço banal. O espaço banal é o espaço de todos os alcances, de todas as determinações; o espaço banal é o espaço de todos os homens, não importam as suas diferenças; o espaço banal é o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. O espaço desta cidade de Passo Fundo, onde todas as pessoas – não importa a sua riqueza, a sua origem – participam, onde todas as instituições presentes participam da vida, assim como todas as empresas presentes, a isto se chama o espaço banal. E é este espaço banal que é o espaço da Geografia, diferente, pois, dos espaços adjetivados. E existe este espaço banal? Posso significá-lo através de um discurso como um dado objetivo?
O que é essencial, a partir desse espaço banal, é encontrar a forma de analisá-lo, isto é, de chegar à produção dos conceitos que permitam dividi-lo em pedaços, autorizando uma correta tarefa de análise. Diante de um sociólogo, de um economista, de um cientista político, de um químico, etc … , podemos dizer que a Geografia estuda o espaço, mas a nós mesmos é insuficiente dizer isto. Porque dizer isso, entre geógrafos, significa, de alguma maneira, erigir uma tautologia em regra de trabalho, o que leva a nada. Isto é, tal esforço, puramente tautológico, deve ser substituído por um esforço analítico. Isto é, temos de encontrar os elementos suscetíveis de permitir que, diante do que estou chamando de espaço, possamos entendê-lo e, eventualmente, construir o discurso político da sua intervenção. E aí vem de novo a questão que me preocupa há alguns anos: o que interessa à Geografia, é menos a geografia e mais o espaço. Enquanto os geógrafos discutem entre eles, sobre a geo” grafia, não estão andando para lugar nenhum. O debate que permite avançar é a discussão sobre o espaço, discussão que permite descobrir quais são as subdivisões pertinentes do objeto que nos interessa.
o cotidiano
Gostaria de sugerir, para começar esta discussão do cotidiano que, por gentileza, os senhores admitissem comigo que há possibilidade de trabalhar três dimensões do homem: a dimensão da corporeidade, a dimensão da individualidade e a dimensão da socialidade. A corporeidade ou corporalidade trata da realidade do corpo do homem; realidade que avulta e se impõe, mais do que antes, com a globalização.
A outra dimensão é a dimensão da individualidade. Enquanto a corporalidade ou
corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade, há dimensões que não são objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os graus diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciência do outro, consciência de nós. Todas estas formas de consciência têm que ver com a individualidade e lhe constituem gamas diferentes, tendo também que ver com a transindividualidade, isto é, com as relações entre indivíduos; relações que são uma parte das condições de produção da socialidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluído pelo espaço.
Há uma relação entre corporeidade, individualidade e socialidade. Essa relação vai também definir a cidadania. Neste país, por exemplo, a cidadania dos negros é afetada pela corporeidade. O fato de ser visto como negro já é suficiente paia infernizar o portador desse corpo. Por conseguinte, a diferenciação entre “cidadanias”, dentro de uma mesma sociedade, é relacionada com a corporeidade. É evidente que há individualidades fortes, permitindo uma tomada de consciência mais ampla. É, desse modo, que há uma produção, dentro do homem, do princípio de liberdade. Isto não tem nada que ver com a cidadania, nem com o corpo do homem.
Creio que estas três dimensões ajudam o estudo do cotidiano do ponto de vista espacial Devemos ver, daqui há pouco, que o fato de estar juntos dentro de uma área contínua tem reflexos na maneira como a espacialidade se dá, como a individualidade evolui e como a corporeidade é sentida. Outras dimensões do cotidiano são, todavia. centradas numa compleição geográfica de cotidiano. O cotidiano supõe o passado como herança. O cotidiano supõe o futuro como projeto. O presente é esta estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja definição depende das definições de passado e de futuro: desta existência do passado, da qual não nos podemos libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas esperanças, exatamente porque ainda não existe. É que a base do fato é que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de corporeidade, individualidade, socialidade e espacialidade.
O cotidiano também nos põe diante de outras categorias, como a da materialidade e a da imaterialidade. O cotidiano são os dois, ele não é dado apenas pela materialidade que nos cerca. A imaterialidade também é um constrangimento às vezes mais forte de que a materialidade: essa ideia de tecnosfera e de psicosfera que andamos tentando difundir, de um lado esta esfera técnica que envolve o homem no fim do século, e, de outro, a esfera das paixões, das crenças, dos desejos, tão objetiva em nossa vida quanto objetiva é a esfera da materialidade.
Mas o cotidiano também sugere um outro par de dimensões: de um lado as normas e, de outro lado, a espontaneidade. O mundo de hoje é o mundo de normas. A propaganda do neo-liberalismo fala de desregulação, mas nunca o mundo foi tão regulado, tão normado: normas públicas, normas das empresas que se impõem por sobre ou que orientam as normas do poder público; normas formais, normas informais, normas sempre. Tudo ou quase tudo é feito a partir de normas, o que já é indicativo da tendência ao empobrecimento simbólico que estamos vivendo: esta proliferação e esta hegemonia da norma. Mas, felizmente, o cotidiano também nos apresenta possibilidades para a espontaneidade. E tanto a norma como a espontaneidade têm que ver com o espaço, com a forma como o espaço se constitui.
Ainda há outro par de dimensões. De um lado, os pragmatismos indicando, sugerindo, propondo, exigindo comportamentos verticais. E, do outro lado, a originalidade, a inventividade: essa oposição entre a rotina e o novo, entre a repetição do passado e a produção do futuro. Também por aí pode-se e deve-se estudar a questão do cotidiano, opondo, de um lado, a preocupação com o resultado que leva ao utilitarismo, à competitividade, ao egoísmo, e, de outro lado, à generosidade, à busca dos valores, ao projeto, à comunhão.
Esses pares de variáveis nos ajudam a enfrentar urna outra questão. O espaço,
considerado primeiro como tendo duas dimensões, depois como tendo três, depois
conforme Einstein, como tendo quatro dimensões, tem também uma quinta dimensão que é o cotidiano. O espaço tem esta quinta dimensão. Mas, sobretudo, o cotidiano tem como dimensão essencial no mundo de hoje a dimensão espacial. A dimensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano do mundo de hoje.
Como trabalhar a dimensão espacial do cotidiano e o cotidiano como quinta dimensão do espaço? Tudo isto tem que ver com a questão da cidadania, com a questão do espaço do cidadão, com a questão do espaço banal. O cotidiano é marcado, sobretudo nas cidades, com aquilo que Sartre chamou de efeito de residência. Esse cotidiano é delimitado pelo espaço contínuo e não por um espaço de pontos, ou de fluxos. É no espaço contínuo, onde todos os tipos de homens, todos os tipos de empresas, todos os tipos de instituições trabalham juntos, funcionam juntos e juntos estruturam a vida da comunidade e o espaço ao mesmo tempo. É o que estou chamando de horizontalidade e se completa com as verticalidades formadas por pontos discretos povoados por agentes hegemônicos desinteressados da vizinhança, despreocupados da co-presença. Este espaço contínuo, que é quadro de ação e que é limite à ação; esse espaço contínuo é o quadro de um funcionamento harmônico de tantos desiguais – ainda que não seja um funcionamento harmonioso. Se os agentes são tão diversos, e as empresas e as instituições tão desiguais, se o seu trabalho não é harmonioso – mas apenas harmônico -, o que comanda este
trabalho harmônico não é somente o mercado, é também {l território. Não fora o
território, da forma como está organizado, o mercado não poderia sozinho exercer esse papel de forçar a “harmonia funcional” – não a harmonia teleológica – de todos estes atores.
Dir-se-ia, em resumo, que, em tais circunstâncias, assistimos a um conflito na cooperação e a uma cooperação no conflito. É a isso que nós presenciamos no espaço geográfico, sobretudo no espaço urbano. Esta cooperação no conflito e este conflito na cooperação levam à negociação permanente, explícita ou implícita, mas negociação sempre. Negociação onde uns perdem sempre; negociação onde outros ganham sempre; negociação em que alguns ganham às vezes; negociação em que alguns perdem às vezes; mas negociação sempre, que tem a ver com a maneira como o espaço se dá.
Por quê? Cada homem, cada empresa, cada instituição se define em relação com o que pode usar de um espaço dado. As instituições, as empresas, os homens não encontram no mesmo espaço três respostas iguais aos seus desígnios e é isto que faz a diferença entre as pessoas. Esta diferença em relação ao espaço criando esta cooperação no conflito e este conflito na cooperação, porque numa cidade estamos condenados a viver juntos. A cidade produz um destino coletivo que vem do fato exatamente desta cooperação no conflito e deste conflito na cooperação. É curioso que o papel privilegiado do ponto de vista do presente é dado aos atares hegemônicos, mas do ponto de vista do futuro o papel privilegiado ê dado aos atares não hegemônicos. São os pobres, são os migrantes, as minorias que são mais capazes de ver, porque mais capazes de sentir. Por conseguinte, é um equívoco imaginar que o futuro é portado pelos mais fortes. São os mais fracos, no espaço, que têm a força de portar o futuro.
Uma forma de enfrentar a questão é a partir do fenômeno de rede, que entrou em moda na Geografia, uma moda que pode ser devastadora se nós rapidamente não antepusermos às metáforas os conceitos. A rede é global, mas também é local. Ela é global, porque no mundo onde a produção se internacionalizou de forma extrema, no mundo onde a própria técnica se unicisou, no mundo onde a informação é mundializada, tudo isto sendo possível a partir das redes. Mas a rede também é local, porque em cada lugar há troços destas redes globais. O trabalho de cada um de nós se realiza sobre os pedaços localizados das redes globais, que são a condição e o limite do trabalho e do capital no mundo de hoje. Só que cada lugar exerce, ao mesmo tempo, um trabalho local e um trabalho global. Cada lugar exerce, ao mesmo tempo. estas duas formas de trabalho. Localmente, é aquilo a que Marx chamou de trabalho direto, quer dizer, a forma técnica do trabalho: a pequena agricultura, a pequena produção do pequeno industrial, a produção de serviços urbanos, que são formas diretas de produzir condicionadas pelos traços locais das redes globais, enquanto as redes globais presidem a cooperação e a divisão do trabalho, presidem a definição do valor universal dos capitais e dos trabalhos. Isto é, no lugar, através da rede e de sua utilização cotidiana o homem descobre outra vez que são dois: aquele que exerce o trabalho local, material, direto, que ele localmente sente e sofre todos os dias, e aquele outro homem que é objeto de urna divisão do trabalho, vítima de uma cooperação que afinal descobrira um dia, ainda que não a entenda completamente. É este o cotidiano dos homens neste fim de século, neste período de globalização, frente às redes que são globais e são locais.
Ora, cuidem que estou falando da maneira como o espaço se organiza, como os subespaços se articulam, e como cada espaço é constitucionalmente. E a qualidade dita ativa do espaço inclui a sua capacidade de relação. Por conseguinte o que estamos propondo é a construção de conceitos que se encaixam uns nos outros. E quando é assim a teoria está feita. Creio que essa pode ser uma forma de enfrentar geograficamente a questão do cotidiano.
Os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles que não têm a possibilidade de exercer plenamente a modernidade, colocam-se mais facilmente com a possibilidade de perceber as situações, ainda que confusamente, e devem ser ajudados pelos que sistematizam o conhecimento relativo ao mundo de hoje. E este conhecimento, já vimos, necessita da categoria “espaço geográfico” para ser corretamente sistematizado. Daí o papel do geógrafo neste fim de século. O papel do geógrafo também se estende à produção do político. O cotidiano é um produtor do fenômeno político na medida em que mostra como as diferenças se estabelecem aconselhando a tomada de posições. É o caso dos agricultores, que se reúnem para defender interesses territoriais.
Tal comportamento é a priori economicista, mas para ter eficácia, deve ser, em seguida, um comportamento político. É essa produção do político mediatizada pelo espacial que permite, a partir das metamorfoses do setorial em geral, do particularismo em generalismo, as negociações explícitas e implícitas que permitem avançar, primeiro na construção de um ente explicativo e, segundo, na construção de um projeto.
Uma Epistemologia da existência
E aí chega a questão da epistemologia da existência, forma, talvez, de enfrentar a questão sob um outro prisma. Seja qual for o momento da história, o mundo se define como um conjunto de possibilidades. Isto é que é o mundo. O mundo do tempo de Colombo ou de Cabral era formado por um conjunto de possibilidades diferentes do mundo de Voltaire ou de nosso mundo. Isto é o mundo: um conjunto de possibilidades. Estas possibilidades que estão por aí boiando sobre nossas cabeças; que formam um universo e que são, um dia ou outro, colhidas por atares que as realizam, transformando-as em fatos sociais, econômicos
e, certamente, num dia ou noutro, em fatos geográficos.
A totalidade do mundo é formada dessas variáveis que jamais estão em todas as partes e, em nenhum momento, dão-se de maneira total. E é isto que faz a diferença entre os homens, que também são a sede destas possibilidades realizadas, e é isto que faz a diferença entre os lugares, que são a sede destas diferentes possibilidades realizadas. Cada homem realiza um feixe de possibilidades, dadas num momento. Cada lugar realiza um feixe de possibilidades, presentes num dado momento. A totalidade das possibilidades existentes somente se dá de forma parcial, nunca de forma total, e é por isso que não há o espaço total. E se dá como função, como função do todo, sobretudo nesta fase da globalização. O lugar é uma funcionalização do mundo; o espaço é uma funcionalização do mundo, através de suas formas materiais e de suas formas não materiais E é por isso, também, que através do espaço nós podemos abraçar de uma só vez o ser e o existir. Aliás, é considerando o espaço como uma funcionalização do mundo que ficamos autorizados a fazer o caminho entre o ser e o existir.
A sociedade global dos sociólogos existe através do espaço geográfico. É o espaço geográfico que transforma em existência a sociedade global, este ser que é um todo, mas um todo em potência. O existir, ser em ato, oferece esta ideia de epistemologia da existência, porque existindo estão todos. Existem todas as empresas, existem todas as instituições, e todos os homens juntos existem, não importam as suas diferenças. E os geógrafos não devem escolher entre empresas, e instituições e muito menos entre pessoas. Todos constituem este espaço banal que é o centro de nosso trabalho e por intermédio do qual nós mostramos nosso interesse pelo Mundo e pelo Homem.
* Milton Santos, foi Professor titular de Geografia Humana na Universidade de São São Paulo Texto redigido a partir da gravação da conferência de abertura do XVI Encontro Estadual de Professores de Geografia. Conferência publicada originalmente no “Boletim Gaúcho de Geografia” (UFRGS), Porto Alegre, nº 21 p.7-192, agosto 1996.