Educação tradicional trata o cinema apenas como um meio a serviço de outras disciplinas, e não um fim em si mesmo
– por Larissa Lopes – Jornal da USP/Ciências Humanas
Ir ao cinema, ler um livro, ouvir música são sempre vistos como opções para se distanciar do estresse do dia-a-dia. Poucos associam, no entanto, o consumo dessas artes a algo além do puro entretenimento. Uma tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação (FE) da USP pelo filósofo Daniel Marcolino Claudino de Sousa demonstra como o potencial de uma delas, em particular, não é aproveitado em sala de aula. Para o autor de O cinema na escola: aspectos para uma (des)educação, por estar associado ao lazer, o audiovisual perde credibilidade diante de outros materiais de ensino mais pragmáticos.
O problema, afirma Sousa, é que a educação tradicional ainda é baseada em valores iluministas – e por isso não contempla propósitos mais amplos para a arte. “Uma pena que a escola atribua a possibilidade de produção da autonomia dos estudantes quase exclusivamente à razão, entendendo que só através dela eles se tornarão cidadãos conscientes e críticos. E o cinema? O cinema não é a razão, o cinema é uma coisa outra”, analisa.
“O cinema deve entrar na escola para enriquecer – e não para simplificar – o aprendizado.”
O cinema é uma forma de expressão mais complexa do que se pensa e, segundo o pesquisador, ele deve entrar na escola para enriquecer – e não para simplificar – o aprendizado. “Como um todo, o audiovisual é a articulação entre palavras e imagens em movimento, com seus ruídos e silêncios”.
Hoje vai ter filme
Como a educação tradicional não valoriza as particularidades do audiovisual, há uma lacuna na formação de professores sobre a utilização desse tipo de mídia na sala de aula. Dessa forma, o cinema geralmente não é explorado por suas especificidades, assumindo papel de ‘prêmio’ ou complemento no processo de aprendizado, e, às vezes, se torna sinônimo de desleixo do professor.
Nas escolas, é comum que os filmes sejam usados somente depois que todo o conteúdo teórico é passado, como se fossem um prêmio pelo esforço do estudo e não tivessem em si o potencial de ensinar, apenas de entreter. “Para a maioria, o cinema tem que servir a esse fim de facilitar ‘a dureza’ do trabalho da educação formal”, comenta o pesquisador.
Poucas pessoas têm conhecimento sobre cinema e, por isso, não conseguem explorá-lo de forma adequada, o que deixa a experiência na escola empobrecida. Com essa mentalidade, o uso de filmes em sala é um tabu entre professores e alunos. O professor que leva filmes para trabalhar em classe corre o risco até mesmo de ser taxado de desmotivado e preguiçoso, “aquele que não quer dar aula”.
Para lidar com esse estereótipo, alguns passos foram dados incentivando o uso do cinema na educação. A lei 13.006, de 27/6/2014, criada pelo senador Cristovam Buarque, por exemplo, obriga a exibição de produções audiovisuais brasileiras como atividade complementar de duas horas em escolas de educação básica.
Além disso, entre 2008 e 2015, conjuntos de DVDs acompanhados de materiais pedagógicos foram distribuídos para professores do ensino médio no estado de São Paulo. Trata-se do projeto O Cinema Vai à Escola, objeto de análise de Sousa que foi suspenso pela Secretaria da Educação do Estado alegando-se falta de verba.
“É uma introdução interessante para o professor que nunca desconfiou que poderia estudar cinema”, considera o filósofo, que reconhece a importância da materialidade e do suporte pedagógico para o professor leigo.
Ainda sim, Sousa não deixa de reparar que o filme sempre entra na sala de aula a serviço de uma disciplina, nunca é discutido por si só, por sua produção, por seu contexto.
“É uma cultura de utilização do cinema que o coloca como ilustração, bem diferente do que se faz com a literatura, a história ou a geografia”, explica. “É como se o cinema não fosse um fim em si mesmo, apenas um meio que sirva às outras disciplinas para garantir, facilitar, complementar e oferecer prazer ao processo de ensino-aprendizado”.
Necessidade de se deseducar
Além do filme servir como complemento a uma determinada matéria, frequentemente ele ainda passa pelo processo de “tradução”, quando um educador pede aos alunos para fazerem um resumo ou um comentário sobre o que aprenderam com a projeção do filme.
Essa prática de “oficialização do aprendizado” serve para comprovar que as horas que os alunos passaram assistindo ao filme não foram desperdiçadas. Mais uma vez, a ideia de que o cinema é apenas lazer volta a assombrar as aulas. “Além do mais, essa ‘tradução’ é perigosa quando se fala de cinema. Diversos autores afirmam que a imagem é intraduzível e a palavra é um suporte que trai o audiovisual”.
Segundo o pesquisador, a oficialidade da ciência da pedagogia é mais um sintoma das características iluministas que a escola incorporou. Na visão tradicional de aprendizado, os alunos desenvolvem um pensamento crítico essencialmente ao absorver conceitos teóricos, e as outras fontes de aprendizado são secundárias.
Diante disso, Sousa conclui que há uma necessidade de dar espaço a diferentes interpretações, a diferentes formas de aprender e de se expressar e a se deseducar. “Deseducar é bombardear essa oficialidade. Ver de outra forma. Reaprender ou mesmo desaprender a ver. Ver de maneira menos pragmática”.
Através do cinema, é possível trabalhar elementos que transcendem questões conceituais e atingem a vivência em sociedade. “O cinema, assim como outras artes, é um suporte de interpretação da realidade e de constituição da imagem de um povo, de sua cultura, de sua expressão”, diz Sousa.
Nesse sentido, entra em pauta a diversificação de produções cinematográficas, que possibilita uma produção cultural e intelectual multifacetada e pode vir a fomentar o estudo em universidades e escolas.
“Um movimento como o Cinema Novo e o Cinema Marginal são fundamentais para o pensamento brasileiro. Eles constituem um movimento de vanguarda, de propositura de resistência a um tipo de cinema que se repete”, analisa.
Mais informações: e-mail [email protected], com Daniel de Sousa
Fonte: Jornal da USP