‘Que tal um samba? – (Ao Vivo)’, álbum duplo de Chico Buarque

Em “Que tal um samba” (ao vivo), Chico Buarque relê o país ao propor novos diálogos dentro da própria obra. Registro do show chegou nas plataformas digitais, e será editado em CD duplo e DVD, pela Biscoito Fino. Artista convidada Mônica Salmaso
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Em 2022, Que tal um samba? fazia um convite hedonista no meio da travessia de horrores. Chico Buarque propunha um samba para o desconjuro da maré de fascismo e pandemia, ou de pura “demência”, e nos fazia pensar em sua trajetória renovadora nesse gênero musical. Outra vez, Chico condensava a história do samba e a volta por cima da história, prevista por ele entre pavores e prazeres, como se desafiasse o país a evoluir junto com a sua linha melódica. Nas imagens do banho coletivo de sal grosso, os jogos poéticos buarqueanos absorviam a língua das ruas, com rimas engenhosas, e punham a negritude e a cultura popular como obstáculos à “força bruta”.

O que temos com o DVD e o CD duplo e digital Que Tal um Samba? (Ao Vivo), gravados pela Biscoito Fino no Vivo Rio em 3 e 4 de fevereiro de 2023, disponíveis a partir de 24 de novembro, é a resposta de Chico Buarque a essa travessia de “inferno e maravilhas”, recorrendo ao seu cancioneiro de voo universal, uma janela ampla para o mundo. No roteiro de 31 faixas, o compositor reúne músicas sem rugas do tempo e de significados novos quando espelhadas umas nas outras, acentuando o desenho de sua arte inclinada a inumeráveis jogos de armar. Todas as canções de longa idade ganham expressão inédita em sua releitura dinâmica. Para mover a história, Chico dispõe de canções de dimensão social e individual, política e romântica, dentro de uma poética transformadora da lírica brasileira. Essa mestria se confirmou ainda outro dia com Tua cantiga, seu lundu com Cristovão Bastos, uma aliança de forma ancestral e linguagem moderna.

Chico Buarque – foto © Leo Aversa.

O show Que Tal um Samba? reflete seu tempo histórico numa poética atemporal e reafirma o impulso de Chico Buarque em redimir os humilhados e as belezas de uma civilização ameaçada. Não há desconversa. As tensões surgem com Todos Juntos, sua versão para a peça infantil Os Saltimbancos (Sergio Bardotti e Luis Bacalov), Passaredo (com Francis Hime), Sinhá (com João Bosco), Assentamento, Bancarrota blues (com Edu Lobo), O Meu Guri, As Caravanas, Deus lhe Pague e Que tal um samba?. Nessas canções, encaixadas em pontos exatos, sobrevoamos o medo ambiental, a crueldade fundadora do Brasil, o esculacho na população negra, o ressentimento dos injuriados e a maternidade trágica das periferias. Mas aflora a reação aos desconcertos. E a brisa de Bom Tempo.

Algumas canções causam estranheza por remeterem menos ao passado em que foram compostas do que à inquietação com o futuro. Mar e Lua, o retrato dramático de um amor lésbico, do álbum Vida (1980), renasce nova em folha num período de cerco e repressão a casais homoafetivos. Pouco a pouco, Chico reitera as ideias e imagens de Sinhá e As Caravanas, das mais fortes canções da música brasileira contemporânea, lançadas nos discos de 2011 e 2017. Ele não esquece, porém, a trilha amorosa e o próprio fato de sua obra ser uma razão do nosso encanto pelo mundo, bem como um parâmetro de beleza e verdade na língua portuguesa. Assim, não sem espanto, chegamos à virtuosidade de Noite dos MascaradosSem FantasiaJoão e MariaBiscateChoro BandidoSob MedidaBastidoresImaginaSamba do Grande AmorBeatriz e Injuriado.
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Na turnê, ao dividir o palco com Mônica SalmasoChico estreitou o diálogo da cantora paulista com a sua obra, manifestado em álbuns como Voadeira (1999) e Noites de Gala, Samba na Rua (2007), este último totalmente dedicado ao repertório buarqueano, com uma regravação modelar de Beatriz. Um ano antes, no álbum Carioca (2006), Chico convidara Salmaso a participar da faixa Imagina, uma de suas parcerias com Tom Jobim. Desde 1975, o ano do disco e show com Maria Bethânia, o compositor não dividia um projeto com uma intérprete.

A presença de Salmaso estimulou as expressões teatrais de Chico, mais solto nos duos e solos, e ergueu uma ponte entre a alma carioca do compositor e a musicalidade dos paulistas. Em mais de um plano, o show festeja o canto feminino, pois ainda homenageia Gal Costa (1945-2022), evocada em Mil Perdões, e Miúcha (1937-2018), com Maninha, o mergulho ficcional do cantor na infância com a irmã, além de tudo sua cúmplice nos primeiros estudos do violão da bossa nova.
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Chico entra em cena no momento em que Salmaso canta Paratodos, uma tirada de chapéu à sua genealogia musical e um evoé aos mestres do futuro. Sem alarde, Paratodos marca outro vínculo, o de Chico com o maestro Luiz Cláudio Ramos, tradutor discreto e profundo de sua cabeça musical, continuando um diálogo iniciado há 50 anos, na gravação de Bárbara para o disco Calabar (1973), que teve arranjos de Edu Lobo. Adiante, Ramos ajudou a conceber as harmonias do show de Chico & Bethânia e fez o arranjo para orquestra de Mulheres de Atenas, em Meus Caros Amigos (1976). No Chico Buarque de 1989, ele elaborou a maioria dos arranjos, mas só a partir de Paratodos (1993) assumiu a direção musical dos discos e shows. Sua colaboração ressalta as afinidades harmônicas com Chico e o entendimento de seu processo criativo.

Esse período de felicidade musical, sob a regência de Luiz Cláudio Ramos (arranjos, guitarra e violão), inclui a banda formada por João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo, violão e bandolim), Jurim Moreira (bateria), Chico Batera (percussão), Bia Paes Leme (teclado e voz) e Marcelo Bernardes (sopros).
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Na cenografia de Daniela Thomas, 25 imagens de fotógrafos brasileiros – Araquém AlcântaraSebastião SalgadoThereza EugêniaCristiano Mascaro, entre outros – traduzem a imaginação dos temas buarqueanos. A escuta contemporânea de música, quase sempre sem atender à ordem ou integridade de um álbum nos aplicativos de celulares, não apaga a importância de discutir o pensamento de um show. E o registro em vídeo ajuda a prolongar a experiência de um espetáculo musical em sua complexidade.

Em 1968, num texto publicado no fervor dos festivais, Chico afirmou que “a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação”. No pós-bossa nova, como brilhante discípulo de Tom Jobim, ele encontrou no samba um chão fertilizado para seu sopro moderno. Aos 79 anos, pode operar a renovação mobilizando seu próprio repertório, um continente a ser revirado. Dois álbuns anteriores ressoam no cd ao vivo. De Francisco (1987), saíram As minhas meninasBancarrota Blues e O velho Francisco. E de Paratodos vieram Choro bandido (com Edu Lobo), BiscateFuturos amantes, além da faixa-título do disco. Nesses pontos de sua discografia, apesar das diferenças evidentes na sonoridade, emergem a revisão crítica da tradição e o autorretrato real ou imaginário do artista no tempo.
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Do coração de uma obra que revisa a si mesma, seu olhar se expande para o mundo. Que tal um samba? foi ao mar, ao batuque, ao futebol, à pele escura da Beleza pura, de Caetano Veloso, e desmantelou a “força bruta” antes purgada em Cálice. Na apresentação ao vivo, Chico incorpora citações do Samba da Benção, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, e do Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi, situando o gênero na vanguarda da alegria saneadora. Sua consciência histórica assume lugar na filiação ao samba.
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Que Tal um Samba? (Ao Vivo) resultou de uma intervenção crítica na música e na história. Em seu arco de cores, o canto de Chico Buarque preserva a suavidade na expressão de violências e explora as inflexões da fala. Impossível não lembrar sua canção Tempo e Artista, em que “o velho cantor, subindo ao palco/ apenas abre a voz, e o tempo canta”. Nesse show, o tempo cantou uma vez mais por Chico e desatou muitos nós na garganta.
Texto de Claudio Leal, Jornalista (novembro de 2023)

Capa do álbum ‘Que tal um samba? – (Ao Vivo)’ • Chico Buarque / convidada Mônica Salmaso • Selo Biscoito Fino • 2023

DISCO ‘QUE TAL UM SAMBA? – (AO VIVO)’ • Chico Buarque / convidada Mônica Salmaso • Selo Biscoito Fino • 2023
Canções / compositores
DISCO I
1. Todos juntos (Luis Enríquez Bacalov e Sergio Bardotti / vrs. Chico Buarque) | Interprete: Mônica Salmaso
2. Mar e lua (Chico Buarque) | Interprete: Mônica Salmaso
3. Passaredo (Francis Hime e Chico Buarque) | Interprete: Mônica Salmaso
4. Bom tempo (Chico Buarque) | Interprete: Mônica Salmaso
5. Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque) | Interprete: Mônica Salmaso
6. Paratodos (Chico Buarque) | Interpretes: Mônica Salmaso e Chico Buarque
7. O Velho Francisco (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
8. Sinhá (João Bosco e Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
9. Sem fantasia (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
10. Biscate (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
11. Imagina (Tom Jobim e Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
12. Choro bandido (Edu Lobo e Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
13. Sob medida (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
14. Bastidores (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
15. Mil perdões (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
DISCO II
1. Samba do grande amor (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
2. Injuriado (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
3. Tipo um baião (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
4. As minhas meninas (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
5. Uma canção desnaturada (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque e Mônica Salmaso
6. Morro Dois Irmãos (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
7. Futuros amantes (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
8. Assentamento (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
9. Bancarrota blues (Edu Lobo e Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
10. Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
11. Meu guri (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
12. As caravanas (Chico Buarque) | Interprete: Chico Buarque
Citação: “Deus lhe Pague” (Chico Buarque)
13. Que tal um samba? (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
Citação: “Samba da benção” (Baden Powell e Vinicius de Moraes) / “O Samba da minha terra” (Dorival Caymmi) — | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
14. Maninha (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
15. Noite dos mascarados (Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
16. João e Maria (Sivuca e Chico Buarque) | Interpretes: Chico Buarque e Mônica Salmaso
– ficha técnica –
Chico Buarque (voz e violão) | Mônica Salmaso (voz / convidada) | Luiz Cláudio Ramos (guitarra e violão) | João Rebouças (piano e cavaquinho) | Jorge Helder (baixo, violão e bandolim) | Jurim Moreira (bateria) | Chico Batera (percussão e vibrafone) | Bia Paes Leme (teclados e vocais) | Marcelo Bernardes (sax, clarinete e flautas) | Coro/vocais: Mônica Salmaso e Bia Paes Leme | Direção musical, arranjos e regência: Luiz Cláudio Ramos | Mixagem e masterização: Lucas Ariel, no estúdio Biscoito Fino (RJ) | Fotos: Leo Aversa | Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação – Biscoito Fino | Gravado ao vivo no Vivo Rio nos dias 3 e 4 de fevereiro de 2023 || Equipe do showCenário: Daniela Thomas | Desenho de luz: Maneco Quinderé | Figurinos: Cao Albuquerque | Cenógrafos assistentes: Emilia Merhy e Samuel Antero | Assistentes de figurino: Mariana Correia e Marta Zollinger | Operação de luz: Thomas Hieatt | Operação de monitor: Rogério Gazzaneo | Operação de PA: José Carlos Iannacconi | Operação de vídeo: Marcio Vilas Boas / André Marcondes | Roadie: Vadinho Prado | Técnico de som: Wallace Carvalho da Silva | Administração: Dadá Maia | Secretária executiva: Márcia Leitão | Assistente secretária executiva: Graça Brilhante | Direção de comunicação & marketing: Mario Canivello | Assessoria de imprensa: Alan Diniz | Produção (Mônica Salmaso): Carla Assis | Produção executiva: Ricardo Tenente Clementino | Produção artística: Marola Edições Musicais | Uma produção: Vinicius França || Selo: Biscoito Fino | Formato: CD digital – físico / DVD | Ano: 2023 | Lançamento: 24 de novembro | #* Ouça o álbum completo: clique aqui

Assista ao clipe de “Meu Guri”

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Mônica Salmaso e Chico Buarque – foto © Leo Aversa  (Jurim Moreira – na bateria).

MAIS SOBRE O DISCO
ESSINGER, Silvio. Chico Buarque faz travessia poética por seu repertório mais aguerrido. In: O Globo, 24.11.2023. Disponível no link. (acessado em 25.11.2023)
ZEITEL, Gustavo. Chico Buarque capta a identidade brasileira em ‘Que Tal um Samba?’. In: Folha de S. Paulo, Ilustrada, 24 de novembro 2023. Disponível no link. (acessado em 25.11.2023)

>> Chico Buarque (oficial) na rede: Site | Instagram | Facebook.
>> Mônica Salmaso na rede: Site | Instagram | Youtube | Facebook | Linktree..
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Série: Discografia da Música Brasileira / MPB / Canção / Álbum.
Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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