“Tudo muda; tudo ama; tudo quer tudo combater: Só quem medita neste lema alcançará o saber”
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41º Beijo de Amor
A Alternativa das Coisas Humanas
Pós noite/pez/ardor/gelo/som/mar/sol/sal/gris/raíz/trom/praga/fogo/ e horror,
Vêm dia/blau/frio/flux/psiu/cais/sul/sede/cãs/flor/fim/dom/água/ e canção.
Pós cris/breu/ruir/medo/guerra/ais/cruz/luto/ira/mal/pena/ruim/vaia/ ou dor,
Já sol/alba/fruir/suor/paz/rir/graal/gala/amor/bem/dó/bom/loa/ estão.
Qual lua/grou/rio/um/mar/pó/val/voz/pá/pé/cão/mó/rã/ com calor
Atrás de luz/voar/foz/par/nau/ar/flor/tom/chão/lã/mão/grão/rio/ irão,
Tal nó/mãe/mau/nau/meu/réu/vir/rei/clã/frei/juiz/sem/Deus/ e valor
Pedem mão/pai/pau/vau/teu/lei/lar/ás/grei/sé/fás/mais/fé/ e ação.
Quem vai/fiel/são/ter/ir/lá/com/cal/três/sim/sus/ar/céu/ amar
Buscam em/cruel/pus/ser/vir/cá/sem/pez/mil/não/sub/chão/rés/ em vão.
Nem têm cem/prol/tez/nu/vez/mor/bom/léu/jus/rir/voz/lis/mel/ lugar
Onde só/dor/giz/véu/viés/pior/vil/lio/caos/guai/pio/noz/ fel/ são.
Tudo muda; tudo ama; tudo quer tudo combater:
Só quem medita neste lema alcançará o saber
1671
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Der XLI. Liebes-kuss
Der Wechsel menschlicher Sachen
Auf Nacht/ Dunst/ Schlacht/ Frost/ Wind/ See/ Hitz/
Süd/ Ost/ West/ Nord/ Sonn/ Feur/und Plagen
Folgt Tag/ Glantz/ Blutt/ Schnee/ Still/ Land/ Blitz/
Wärmd/ Hitz/ Lust/ Kält/ Licht/ Brand/ und Noth.
Auf Leid/ Pein/ Schmach/ Angst/ Krieg/ Ach/ Kreutz/
Streit/ Hohn/ Schmertz/ Qual/ Tükk/ Schimpf / als Spott
Will Freud/ Zier/ Ehr/ Trost/ Sieg/ Rath/ Nutz/
Fried/ Lohn/ Schertz/ Ruh/ Glükk/ Glimpf / stets tagen.
Der Mond/ Glunst/ Rauch/ Gems/ Fisch/ Gold/ Perl/
Baum/ Flamm/ Storch/ Frosch/ Lamm/ Ochs/ und Magen
Libt Schein/ Stroh/ Dampf/ Berg/ Flutt/ Glutt/ Schaum/
Frucht/ Asch/ Dach/ Teich/ Feld/ Wisz/ und Brod
Der Schütz/ Mensch/ Fleisz/ Müh/ Kunst/ Spil/ Schiff/
Mund/ Printz/ Rach/ Sorg/ Geitz/ Treu/ und Gott
Suchts Ziel/ Schlaff/ Preisz/ Lob/ Gunst/ Zank/ Port/
Kusz/ Thron/ Mord/ Sarg/ Geld/ Hold/ Danksagen.
Was Gut/ stark/ schwer/ recht/ lang/ grosz/ weisz/
eins/ ja/ Lufft/ Feur/ hoch/ veit/ genennt
Pflegt Bösz/ schwach/ leicht/ krum/ breit/ klein/ schwartz/
drei/ Nein/ Erd/ Flutt/ tiff/ nah/ zumeiden
Auch Mutt/ lib/ klug/ Witz/ Geist/ Seel/ Freund/
Lust/ Zir/ Ruhm/ Frid/ Schertz/ Lob/ musz scheiden
Wo Furcht/ Hasz/ Trug/ Wein/ Fleisch/ Leib/ Feind/
Weh/ Schmach/ Angst/ Streit/ Schmertz/ Hohn/ schon rennt.
Alles wechselt; alles libet; alles scheinet was zu hassen:
Wer aus diesem nach wird denken/ musz di Menschen Weisheit fassen.
1671
– Quirinus Kuhlmann, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
Quirinossalmo 62 (II)
É justo que me escure o escuro
Porque à essência do ser assim convém.
Ó raro cristal puro!
Já escorre o que corria além.
E todo um mar num rio se contém.
Se é mais escuro, é ainda mais claro:
Quanto mais negro, mais alva a semente.
O olho celeste há de julgar o
Que a nenhum homem se consente.
Brilha ainda mais, quando menos patente.
Ah, noite! Noite que se dia,
Ah, dia, mente que a noite alimenta!
Ah, luz que Caim adia!
Luz que à legião de Abel alenta!
Saúdo a tua insurreição cinzenta.
Ó maravilha pressentida,
Que pelo cerne da árvore se enrama!
Doas um novo Éden à vida,
Vê só meu ser, como se inflama!
Escuta como em mim tudo te chama!
Ó indizível anilar!
Claro rubi! Além- âmbar alvura!
Que o eterno à terra faz chegar
E em paraíso a transfigura,
Que enria o rio e em toda flor perdura.
Ó quadriterra! Ó resplendor!
O mais escuro é como um meio-dia!
Carbúnculo de amor!
O mundo é já céu-alegria!
A terra luz como só um sol faria!
De quem és o sinal secreto?
Que força estranha forja-te a figura?
Como no caos achas o reto?
Que número és? Que marca obscura?
Tu és, não eu! És natureza e és cura!
A coroa está pronta,
Que é uma em toda a parte e vale mil.
O que era oculto já desponta;
Aurora altiva, áureo buril;
Toda arte diante dela é pobre e vil.
Olha os lírios e as rosas
Por seis dias colhidos, dia a dia;
Carícias amorosas
Coroam-nos, por sua agonia,
E o meu desejo ao teu, uno, se alia.
Um jesuélico fulgor
À alta coroa flecha-nos certeiro.
O orgulho já se vai depôr
Sob teu desprezo sobranceiro.
Um outro está contigo, filho e herdeiro.
1686
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Kühlpsalm 62. (II)
Recht dunkelt mich das Dunkel,
Weil Wesenheit so heimlichst anbeginnt!
O seltner Glückskarfunkel!
Es strömt, was äußerlich verrinnt,
Und wird ein Meer, was kaum ein Bächlein gründt.
Je dunkler, je mehr lichter:
Je schwärzer alls, je weißer weißt sein Sam.
Ein himmlisch Aug ist Richter:
Kein Irdscher lebt, der was vernahm;
Es gläntzt je mehr, je finster es ankam.
Ach Nacht! Und Nacht, die taget!
O Tag, der Nacht vernünftiger Vernunft!
Ach Licht, das Kaine plaget
Und helle strahlt der Abelzunft!
Ich freue mich ob deiner finstern Kunft.
O längst erwart`tes Wunder,
Das durch den Kern des ganzen Baums auswächst!
Du fängst neu Edens Zunder,
Ei, Lieber, sieh, mein Herze lechzt!
Es ist genug! Hör, was es innig ächzt!
O unaussprechlichst Blauen!
O lichtste Röt! O übergelbes Weiß!
Es bringt, was ewigst, schauen,
Beerdt die Erd als Paradeis;
Entflucht den Fluch, durchsegnet jeden Reis.
O Erdvier! Welches Strahlen!
Der Finsterst ist als vor die lichtste Sonn.
Kristallisiertes Prahlen!
Die Welt bewonnt di Himmelswonn:
Sie quillt zurück, als wäre sie der Bronn.
Welch wesentliches Bildnis?
Erscheinst du so, geheimste Kraftfigur?
Wie richtigst, was doch Wildnis?
O was vor Zahl? Ach welche Spur?
Du bist, nicht Ich! Dein ist Natur und Kur!
Die Kron ist ausgefüllet,
Die Tausend sind auch überall ersetzt:
Geschehen, was umhüllet;
Sehr hoher Röt, höchst ausgeätzt,
Daß alle Kunst an ihr sich ausgewetzt.
Die Lilien und Rosen
Sind durch sechs Tag gebrochen spat und früh:
Sie kränzen mit Liebkosen
Nun dich und mich aus deiner Müh.
Dein Will ist mein, mein Will ist dein, vollzieh.
Im jesuelschen Schimmer
Pfeiln wir zugleich zur jesuelschen Kron:
Der Stolz ist durch dich nimmer!
Er liegt zu Fuß im höchsten Hohn.
Ein ander ist mit dir der Erb und Sohn.
1686
– Quirinus Kuhlmann, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
POESIA EM CHAMAS
O crítico e tradutor escreve sobre o alemão Quirinus Kuhlmann, que, torturado e queimado vivo em 1689, é hoje considerado uma das figuras mais originais do barroco alemão e precursor da poesia digital.
– por Augusto da Campos (*)
Estranhíssimo é o percurso do poeta barroco alemão Quirinus Kuhlmann, que nasceu em 25 de fevereiro de 1651 em Breslau (Silésia), filho de um artesão, de família protestante. Autor precoce de epigramas e epitáfios (1666), aos 20 anos publicou “Himmlische Libesküsse” (Beijos de Amor Celestes), conjunto de 50 sonetos, entre os quais o 41º, “Der Wechsel menschicher Sachen” (A Alternância das Coisas Humanas), notável exemplo de arte combinatória derivado das teorias do teólogo catalão Ramon Lull (1233-1316) e do jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-1680). Mais tarde vieram as duas séries de “Kühlpsalter” (1684-1686), 150 salmos que resumem a sua experiência de poeta visionário e extático.
Afirma uma antiga biografia que, caindo doente aos 19 anos, Kuhlmann teve uma visão terrível no terceiro dia de sua enfermidade, quando todos acreditavam que iria morrer. Ele se viu então cercado de todos os demônios do inferno, em pleno meio-dia. A essa visão sucedeu-se a de Deus, cercado por seus santos, com Jesus Cristo no meio. O jovem Kuhlmann sobreviveu e passou a sentir “coisas inenarráveis” e a ver-se para sempre acompanhado de um círculo de luz do seu lado esquerdo. Deixou a sua cidade para estudar jurisprudência na Universidade de Jena, curso que não chegou a completar. Viajando para Leide, por volta de 1673, recebeu grande influência doutrinária do místico Jakob Böhme (1575-1624), vindo a tornar-se, ele mesmo, o fundador e o pregador ambulante de uma seita messiânica que denominava “jesuélica”, o que o levou a Londres, Paris, Amsterdã, Genebra e outras cidades, sempre perseguido pela fama de herético e agitador.
Em suas andanças proselitistas, chegou a tentar converter, sem êxito, o sultão da Turquia. Por fim, na Rússia, denunciado ao czar como herege pelo patriarca da Igreja Ortodoxa, foi preso, torturado e, por não renegar suas crenças, condenado à morte e queimado vivo em 4 de outubro de 1689, em Moscou. Kuhlmann é hoje considerado uma das figuras mais originais do barroco literário alemão.
Comentando o soneto 41 da sua coletânea “Beijos de Amor Celestes”, esclarece o próprio Kuhlmann que o texto propicia milhares de outras combinações, todas elas contidas embrionariamente em seus 12 primeiros versos. Se permutarmos as 13 palavras centrais, deixando intactos, em suas posições, os primeiros e os últimos vocábulos de cada verso, são possíveis até 6.227.020.800 combinações. O escriba mais zeloso -afirma ele- que se dispusesse a colocar no papel mil desses versos por dia, teria trabalho para mais de um século. Diz ele ainda textualmente: “Nesse poema estão condensadas todas as sentenças da logo-reto-eto-filo-ritmo-geo-acústico-astro-médico-fisio-jurídico-grafologia e, quanto mais for ele sondado, mais coisas se encontrarão aí”.
É ele um precursor, como se vê, das especulações permutatórias que encontraram em nosso tempo um exemplo conhecido nos “Cent Mille Milliards de Poèmes” (Cem Mil Bilhões de Poemas), de Raymond Queneau (1903-1976). Tenho minhas reservas quanto à experiência de Queneau, parecendo-me que as permutações, quando nada acrescentam ao poema, remanescendo num plano de indiferença receptiva, não logram ir além de curiosidade estatística. Mesmo assim, tais jogos combinatórios têm interesse e sugerem algo das configurações interativas da arte digital, que admitem a interferência do espectador na estrutura do texto. Não à toa, tanto os sonetos de Queneau quanto o de Kuhlmann já ganharam edições informático-permutatórias em sites da internet, a do poeta alemão a cargo de Ambroise Barras.
Estudiosos das práticas digitais como Paul Braffort e Jacques Donguy não deixam de referir o soneto de Kuhlmann entre os antecessores da poesia informatizada. O procedimento adotado pelo poeta barroco tem a reforçá-lo o isomorfismo com o tema escolhido -a alternância das coisas humanas-, o que lhe confere uma autenticidade semântica que não vislumbramos no artificialismo das construções apenas formais.
Mas há algo que me interessa especialmente no soneto de Kuhlmann. No original, todas as palavras internas são monossílabos, uma imposição que se faz necessária para manter a estrutura rítmica do texto. Isso dá ao poema uma liberdade gramatical e uma sonoridade peculiar, staccato-percussiva, que é raro encontrar em poemas de antes e depois.
Por isso mesmo, a minha tradução, bastante livre, procurou utilizar o maior número possível de palavras curtas, sem pretender chegar ao minimalismo kuhlmanniano, já que o estoque de palavras monossilábicas em português é incomparavelmente menor. Com vista a esse critério, assim como ao cuidado de manter sonoridade e ritmo aproximados aos do texto de partida, não me preocupei em seguir à risca a semântica do poema, mantendo-me atento tanto quanto possível às antinomias que vinculam muitas palavras duas a duas e que constituem um eixo de solidariedade significante nas numerosas trocas posicionais permitidas às palavras. No original, Quirinus repete 12 palavras. Uso de igual licença na tradução, ainda mais que autorizado pela escassez monossilábica em português. Dou ao leitor ao menos duas quadras inteiramente em monossílabos, para que possa vivenciar em nossa língua o efeito rítmico do original. Penso que o resultado geral pode dar uma idéia do funcionamento do poema, tal como foi concebido, e transmitir um pouco de sua intensidade e significação poética.
Outro exemplo notável da criatividade de Kuhlmann é o “Kühlpsalm 62”, da segunda safra desse ciclo de poemas. Ele os chamava de “Kühlpsalter”, fazendo jogo de palavras entre “kühl” (refrescante) e o seu próprio nome, mais “saltério”, com a pretensão de trazer o bálsamo da sua fé a um mundo devastado por chamas demoníacas. “Balsalmos”? À falta de transposição melhor, prefiro referir-me a eles como “Quirinossalmos”, não-solução que me parece soar melhor em português e que homenageia diretamente o poeta. Em clave mais críptica e individual, filiados que são ao idioleto “jesuélico”, têm esses poemas o fervor místico de San Juan de la Cruz, de quem Kuhlmann traduziu com alta competência estrofes da “Noche Oscura” e do “Cantico Espiritual”. Vertido para o português, o “Quirinossalmo 62” me lembra um pouco a linguagem dos poemas ocultistas de Fernando Pessoa.
Em suma, antecipando procedimentos do expressionismo alemão, em particular as infrações linguísticas de August Stramm, o mais radical dos seus protagonistas, e até práticas mais avançadas do moderno experimentalismo, esse poeta barroco, ainda mal conhecido, pouco estudado e reeditado, nos oferece uma poesia insólita. Sua exaltação espiritual não tem peias vocabulares. Ele altera funções gramaticais, arrisca neologismos e chega a aglomerados de palavras em liberdade pelos caminhos da arte combinatória, com grande impacto emocional e poético.
Por tudo isso, o fogo da vida e da poesia de Quirinus Kuhlmann não parece apagar-se. Incendiário de almas e palavras, o poeta-mártir queimado vivo já ressurge das cinzas, com trágico vigor, entre os humilhados e os ofendidos da poesia, sob o foco que ilumina, através dos séculos, os que recusam o banal das idéias e da linguagem.
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(*) Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta. Acesse a biobibliografia AQUI!
Publicado originalmente em ‘Folha de S. Paulo’, São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002 + mais!.
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