O encontro da arte de dois gênios, o mínimo que se espera são moinhos de vento surrealistas. Bom, mais precisamente é o que se pode esperar quando Salvador Dali decide ilustrar Dom Quixote, nosso eterno cavaleiro que enfrentou a realidade com a loucura.
“A relação gráfica de Dalí com Cervantes iniciou-se em 1945, época em que o pintor estava vivendo em Nova Yorque, então o grande centro das vanguardas artísticas.
Seu pai lhe enviou uma carta que parece ter sido crucial para iniciar o empenho do artista que, tocado pelas palavras “Es una obra en la que tus facultates podrán sobresalir extraordinariamente”, imediatamente iniciou uma série de experimentações que resultou na ilustração da obra.
Tendo em mente que o pintor pertence a um movimento que desconsiderava as relações tradicionais da ilustração e que valorizava a imagem como fundamental para a libertação dos lugares-comuns, já podemos antecipar a entrada na obra literária mediada por uma estética que valorizava os mecanismos dos sonhos, que apresenta todas as surpreendentes justaposições e estranhamentos surrealistas e que também fazem referência à psicanálise freudiana. Porém Dalí ainda vai mais longe. Subvertendo o instituído, no sentido mais amplo possível da relação de ilustrações dentro de um livro, Dalí apresenta um projeto bem ousado.
Não há uma única edição ilustrada pelo pintor espanhol, mas várias. E cada edição é diferente das demais. A novidade começa no fato do pintor ter se proposto a ilustrar a mesma obra em momentos diferentes. A primeira edição ilustrada por Dalí saiu em 1946 e contou com 38 pranchas e cinco desenhos destinados a acompanhar a primeira parte da obra. Em 1955 ele retomou o tema e produziu outras gravuras. Em 1956 ele realizou um portfólio composto por 12 gravuras. E em 1964 produziu uma nova série de pranchas destinadas a acompanhar a segunda parte. Conforme Dalí produzia gravuras em torno do Quixote, as edições as incorporavam. Tanto é que uma edição de 1964 traz todos esses conjuntos de imagens, com um detalhe: Dalí deu liberdade aos editores para que dispusessem as gravuras conforme achassem conveniente.
Dalí afirma, por meio de sua atitude que as duas artes subsistem por conta própria. Não é necessário ler o texto para entender a obra pictórica sobre o Quixote. Da mesma forma, não é preciso ter as imagens para usufruir do texto de Cervantes. Dalí trabalha com a essência de Dom Quixote. E é nesse encontro de duas artes independentes que dá-se um processo de iluminações mútuas.
Dalí evoca todas essas possibilidades de leitura: há elementos grotescos e cômicos, há cavaleiros libertários, há seres despedaçados, enfim, toda uma bagagem que foi incorporada à obra de Cervantes ao longo de sua existência, nas milhares de vezes em que foi comentada e analisada, nas interpretações e apropriações divergentes ao longo do tempo.
Dessa forma, Dalí oferece ao leitor uma possibilidade de interferência, no confronto das imagens que dão a ele a chance de contemplar e refletir sobre essa bagagem histórica e significativa incorporada à obra. Por isso não é possível que o personagem seja retratado da mesma forma do começo ao fim. Essa multiplicidade de perspectivas adequa-se à multiplicidade de facetas do personagem. Ora um herói, um tolo, um sábio, um louco ou santo, nenhuma das facetas dá conta de sua personalidade. “
– Ana Beatriz de Araujo Linardi, extratos do texto “Dom Quixote, Doré e Dalí: em torno do Livro Ilustrado”. Revista Leitura: Teoria e Prática, 2008. (leia o texto na íntegra aqui).
Abaixo ilustrações da edição de 1946 “Don Quixote” de Cervantes, ilustrações de Salvador Dalí. New York: Modern Library. Uma combinação de desenhos e aquarelas:
MIGUEL DE CERVANTES
O mais célebre dos escritores espanhóis, autor do imortal D. Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes nasceu em Alcalá de Henares (perto de Madrid) no dia 29 de setembro de 1547 e foi soldado antes de se tornar escritor. Tendo tomado parte na batalha de Lepanto (1571), onde perdeu o uso da mão esquerda, caiu, quando regressava à Espanha, em poder de piratas, que o retiveram por cinco anos. Alguns anos após ter retornado ao seu país, Cervantes passou a dedicar-se exclusivamente à literatura. Em 1584, escreveu a pastoral em verso Galatéia. Depois, conseguiu manter em cena cerca de vinte peças teatrais, entre elas A vida em Argel e Numancia. Em 1605, publicou a primeira parte de D. Quixote, do qual em pouco tempo foram vendidos trinta mil exemplares. Contudo, o autor só viria a concluir esta obra dez anos mais tarde. Cervantes deixou ainda, entre outros trabalhos, as Novelas exemplares (1612), uma coleção de contos que por si só já lhe daria direito a ocupar lugar de destaque nas letras; Viagem ao Parnaso (1614), revista dos poetas do tempo; Persiles e Sigismunda (1617), romance cheio de excentricidades, e diversas comédias, entre as quais se destacam O labirinto de amor, O valente espanhol e O juiz dos divórcios. (fonte: Travessa livraria)
SALVADOR DALÍ
Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904, na cidade de Figueres (Catalunha, Espanha). Em 1922, ingressou na Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri, de onde foi expulso em 1926, pouco antes dos exames finais. Nessa época, conviveu com artistas como Federico Garcia Lorca e Luis Buñuel.
O reconhecimento do seu trabalho artístico ocorreu cedo, mais precisamente com sua primeira exposição, em 1925, em Barcelona. No ano seguinte, instalado em Paris (onde conheceu Pablo Picasso), se uniu aos surrealistas, liderados por André Breton. Foi um dos mais importantes artistas plásticos da Espanha e a personificação do movimento surrealista, do qual acabou sendo expulso por suas posições políticas.
Casou-se com uma imigrante russa chamada Elena Ivanovna Diakonova, conhecida como Gala. Em 1960, Dalí colocou em prática um grande projeto: o Teatro-Museo Gala Salvador Dalí, em sua terra natal, que reuniu grande parte de suas obras. Após a morte de Gala, em 1982, Dalí ficou muito debilitado, passando os últimos anos praticamente recluso. Morreu em 23 de janeiro de 1989, em Figueres, de um ataque cardíaco. (fonte: L&PM Editores)
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