Na primeira vez em que pisei na casa dele, tive a sensação de entrar num quarto de hotel. Pensei contar o que senti, mas me contive; comentar a casa dos outros costuma ser um caminho sem volta – ainda mais daqueles que há tão pouco tempo conhecemos tanto. Mantive certa discrição e não reparei que ele tirou os sapatos antes de pisar no tapete branco da sala de estar.
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Mas pra você eu vou contar a minha mais
crua sensação.
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Eu. Senti. Pavor. A disposição dos sofás era de uma simetria perfeita. Entre eles, uma mesa de vidro absolutamente transparente que parecia nunca ter ouvido falar de pó ou marca de dedo. Sobre ela,
livros grandes e ordenados numa composição geometricamente harmônica em uma paleta de matizes complementares. Eu me pus a pensar: como um cara que discute história da arte e recita os próprios poemas pode morar numa casa com livros eleitos pela cor
da capa?
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Lembrei-me de quando era criança e, às sextas, ia brincar na casa das minhas amigas. Uma das casas era pequena, mas tinha um jardim incrível onde podíamos nos esconder umas das outras, nos achar e, no fim da tarde, nos esconder dos nossos pais pra não termos que ir embora nunca. Outra casa não tinha jardim, mas o sofá da sala de TV tinha almofadas que usávamos pra construir castelos e cavernas de verdade e dormir dentro. Uma terceira casa, lembro bem, tinha piscina, jardim, sala de TV e lugares pra se achar e se perder, mas nela morava uma mãe que não nos deixava tocar em nada. Tão lindamente ornamentada, tão terrível
e tentadoramente proibida. Toda a imponência era como a enorme cristaleira do hall e as estátuas gregas da piscina: frágil.
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Passei a ter certa aflição de casas feitas para serem vistas. A ordem, a limpeza, a impressão de que cada detalhe é consciente me faz acreditar que aqueles que moram ali estão de passagem e podem ser substituídos por qualquer um de gosto mais ou menos parecido.
Do extremo ecletismo tipo neoclássico ao radical minimalista – casas em que tudo parece pensado para estar onde está são, no mínimo, suspeitas , se não mentirosas. E geralmente me pego presa a uma
dessas grandes questões da arquitetura: onde guardam a árvore de Natal?
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É também por isso que conhecer a casa de alguém
acaba sendo uma das experiências mais íntimas e profundas que se pode ter com essa pessoa. Porque a casa fala e denuncia o que as pessoas que moram nela consideram importante, como se relacionam, como querem ser vistas e como lidam com seus vazios.
O lugar também nos conta como a pessoa com quem estamos se coloca ali: ela é uma avalanche, um iceberg ou um floco de neve imperceptível?
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Esses pensamentos pulsavam na minha cabeça enquanto o ouvia falar algo de que não lembro. O jeito singularmente preciso que ele tinha de arrumar
o cabelo fazia agora todo sentido, vendo que o espelho pelo qual passava toda manhã enquadrava folhas de bananeira iluminadas pela luz indireta vinda do chão. Fiquei tonta e fui embora. Naquela noite, amei com veneração as bicicletas que ficam na nossa sala de
estar por falta de lugar melhor, e as cadeiras diferentes à mesa de jantar que são herança da mudança
do antigo escritório.
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Prometi de pés juntos diante do meu espelho com marcas de durex que, dos muitos assuntos que tinha pra discutir com ele, jamais tocaria nesse. Acabei tocando. Debaixo de muita chuva, quando voltei à casa dele um pouco certa de que estava pra terminar aquela relação sem nome. Ele devia estar também e, dessa vez, me pediu em tom imperativo pra tirar as botas molhadas. E, mesmo que não fosse tão teimosa, saí pela porta branca, pisando no piso branco e deixando a coisa mais verdadeira que existiu ali: um rastro.
– Tamara Klink, no livro “Um mundo em poucas linhas”. ilustrado por Laura Klink. Peirópolis, 2021.
SOBRE O LIVRO
Tamara tem um projeto de vida: ser navegadora. Leva consigo a coleção de aprendizados de várias viagens com a mãe, irmãs e na companhia do pai, o velejador Amyr Klink. Mas segue passos próprios. Aos vinte e poucos anos, decidiu morar e estudar arquitetura naval na França, como parte do seu plano: realizar expedições que exigem uma preparação incomum para alguém da sua idade. E é justamente essa longa travessia que está presente em sua obra― não só aquela marcada por ondas e ventos, necessidade de içar velas ou de se lançar ao mar ― mas os percalços de outro caminho, aquele que fazemos da adolescência para a vida adulta. Uma jornada heroica pela qual todos passamos, na terra ou no mar. Um mundo em poucas linhas reúne poemas e textos em prosa poética sobre as viagens variadas que Tamara fez desde criança com sua família, além de reflexões sobre a vida, a adolescência, os amores, o crescimento e as muitas experiências de deslocamento e travessias. Um livro sobre a beleza de se construir como ser humano, com liberdade, alegria e coragem para viver e seguir seus próprios caminhos.
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FICHA TÉCNICA
Título: Um mundo em poucas linhas
Páginas: 172
Formato: 13 x 1 x 20 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 10/12/2021 (1ª edição)
ISBN: 978-6559311071
Selo: Editora Peirópolis
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