Eu sei o que é, sei o que digo, sei por que o digo e prevejo, normalmente, as consequências daquilo que digo. Mas não é por um desejo gratuito de provocar as pessoas ou as instituições. Pode ser que se sintam provocadas, mas aí o problema já é delas. A pergunta que faço é por que é que eu me hei de calar quando acontece alguma coisa que mereceria um comentário mais ou menos ácido ou mais ou menos violento. Se andássemos por aí a dizer exatamente o que pensamos — quando valesse a pena —, teríamos outra forma de viver. Estamos numa apatia que parece que se tornou congênita e sinto-me obrigado a dizer o que penso sobre aquilo que me parece importante.
José Saramago, 2008
Único escritor de língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel, José Saramago (1922-2010) é um exemplo perfeito do intelectual engajado preconizado pelo autor de “As palavras”, Jean-Paul Sartre. Com efeito, a intervenção na esfera pública, o comprometimento com uma visão crítica do mundo, a defesa de ideias muitas vezes polêmicas, a indignação diante das injustiças e desigualdades econômicas e sociais são características marcantes de alguém que jamais separou o escritor do cidadão e sempre disse com todas as palavras o que pensava.
Saramago diagnosticava e ao mesmo tempo combatia as doenças que acometem a democracia identificando como um dos germes patogênicos desta a contração dos cidadãos e o abandono das responsabilidades cívicas, substituídos pelo desvio consumista, o individualismo e a preguiça não solidária da sociedade do bem-estar. Por isso, não hesitava na hora de colocar a cidadania no centro de uma administração pública apropriada e, consequentemente, na perspectiva da regeneração política. Desprovida da participação ativa de seus protagonistas, a democracia se torna um cerimonial sem nenhum conteúdo relevante. Os eleitores, costumava dizer, podem mudar governos — mas não têm capacidade para influir no poder real, que está nas mãos das corporações e organismos financeiros internacionais.
O autor de Ensaio sobre a lucidez atacava a redução do cidadão ao papel mecânico de eleitor — na prática, votar implicaria a renúncia posterior ao direito de intervir na pólis —, em um processo de deslocamento e desidratação democrática, paralelamente à burocratização do sistema. Tanto a intensidade da presença do mercado e da propaganda dos meios de comunicação quanto a delegação passiva de poderes aos representantes eleitos viciam o sistema e pulverizam aqueles que deveriam ser os seus verdadeiros protagonistas.
Assim, o escritor conclamava a que se assumam as responsabilidades cívicas, ao mesmo tempo que procurava estimular a adoção de uma atitude reflexiva que ajudasse a opor o pensamento, o envolvimento e a liberdade de julgamento à alienação inerente ao cidadão que se vê reduzido ao seu papel de consumidor.
Há uma cultura que falta instalar, cultivar e desenvolver: a cultura da participação. Falo de participação entendida de maneira múltipla: política, social, cultural, de todos os tipos. A participação do indivíduo na vida, na sociedade, no seu país, no lugar onde está, em relação com os outros. Claro que a democracia, para viver e se desenvolver, necessita da participação, simplesmente existem modos de diminuí-la ao mínimo possível para ser considerado ainda um sistema democrático. Chama-se as pessoas a votar, para supostamente escolherem, e esquecemo-nos que, no momento de colocar o voto na urna, estamos a renunciar ao que deveria ser o exercício contínuo de poder democrático. Se tudo correr bem, voltamos quatro anos depois. Nesse espaço de tempo os representantes eleitos podem fazer tudo, incluindo o contrário das razões que levaram o cidadão a elegê-los.
O momento mais alto da expressão democrática é, simultaneamente, o momento da renúncia ao exercício democrático.
Falta, então, desenvolver a participação como cultura, por forma a lutar contra o espírito do “Quem vier atrás que feche a porta”. E quando deixar de haver porta para fechar!?
“José Saramago defende Ensaio sobre a cegueira: ‘Não usamos racionalmente a razão que temos’”, A Capital, Lisboa, 4 de novembro de 1995 [Entrevista a António Rodrigues].
Criamos uma espécie de pele de jacaré que nos defende dessa agressão da realidade, que nos levaria a assumi-la, a inteirarmo-nos daquilo que se passa e a fazer o que no fim das contas se espera de um cidadão, que é a intervenção.
“Saramago: ‘Si España va bien, es una excepción, porque el mundo no va bien’”, La Provincia, Las Palmas de Gran Canaria, 15 de abril de 1998 [Reportagem de Ángeles Arencibia].
Assistimos ao que eu chamo de a morte do cidadão. O que temos no seu lugar, e cada vez mais, é o cliente. Hoje em dia, ninguém pergunta o que você pensa, mas sim que marca de carro, de roupa ou de gravata você usa e quanto ganha…
“Ganar el Premio Nobel es como ser Miss Universo”, El Mundo, Madri, 6 de dezembro de 1998 [Entrevista a Manuel Llorente].
Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não sabem, porque não podem, porque não querem ou porque isso não lhes é permitido por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais, pluricontinentais, que detêm todo o poder. Não podemos esperar que os governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram ao longo dos cinquenta anos que hoje comemoramos. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que até o momento temos exigido o respeito aos direitos humanos. Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos comuns da palavra, e assim o mundo talvez poderia ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.
“La sociedad civil, voz vehemente para mejorar el mundo: Saramago”, La Jornada, Cidade do México, 11 de dezembro de 1998 [Reportagem de Pablo Espinosa].
O que é curioso é que, ao mesmo tempo que nos ampliaram o conceito de cidadania, transformando-nos em cidadãos europeus, reduziram a quase nada o caráter participativo e efetivo que justifica que cada um diga de si próprio que é um cidadão.
Carlos Reis, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998.
A única alternativa a tudo aquilo que tem a ver com a vida social é a participação.
Juan Arias, José Saramago: El amor posible, Barcelona, Planeta, 1998.
Ser cidadão em toda a sua plenitude, ou o melhor que se conseguir ser, assumir as próprias responsabilidades, os seus deveres e os seus direitos… Isso tudo dá muito trabalho.
Jorge Halperín, Conversaciones con Saramago: Reflexiones desde Lanzarote, Barcelona, Icaria, 2002.
Quando digo que a democracia se suicida diariamente, perde espessura e se desgasta, diminuindo a sua densidade, estou a falar de um sentimento que nos afeta, a nós, cidadãos. Sentimos, e sofremos com isso, que não temos importância no modo como funciona a sociedade.
“A democracia ocidental está ferida de morte”, Diário de Notícias, Lisboa, 25 de março de 2004 [Entrevista a Ana Marques Gastão].
Acredito que, para além da função que o livro deva ter ou não, o mais necessário em nossos tempos é que os cidadãos valorizemos a função do pensamento.
“Cultivar la función de pensar es más importante que el libro”, La Jornada, Cidade do México, 30 de novembro de 2004 [Entrevista a Armando G. Tejeda].
Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.
“Desventuras em série”, Época, São Paulo, 31 de outubro de 2005 [Entrevista a Luís Antônio Giron].
Confiaria muito na força da cidadania se ela quisesse se deixar convencer de que não há incompatibilidade entre o desenvolvimento econômico e social [de um lugar] e o espírito de sustentabilidade. Que não se coloque uma pedra sem se perguntar por que e quais serão as consequências futuras.
“Escritores en defensa del litoral”, El País, Madri, 21 de abril de 2007 [Reportagem de Elena Sevillano].
O destino das revoluções é se transformarem no seu oposto. As revoluções acabam sendo sempre traídas, por uma razão muito simples: por causa da renúncia dos cidadãos a participarem […]. A doença mortal das democracias é a renúncia do cidadão à participação. Os principais responsáveis somos nós mesmos, quando delegamos o poder a outra pessoa, que, a partir desse momento, passa a controlá-lo e a usá-lo […].
Andrés Sorel, José Saramago: Una mirada triste y lúcida, Madri, Algaba, 2007.
– José Saramago, em “As palavras de Saramago”. [organização e seleção Fernando Gómez Aguilera]. São Paulo: Cia das Letras, 2010. {Catálogo de reflexões pessoais,
literárias e políticas – Elaborado a partir de declarações do autor recolhidas na imprensa escrita}.
“As palavras de Saramago compõe o retrato falado de um escritor que exerceu seu ofício com o profissionalismo de um operário, a pertinácia de um militante político, a consciência de um cidadão e a visão ampla de um verdadeiro intelectual.”
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