LITERATURA

Retrato de cavalo – João Guimarães Rosa

O que um dia vou saber,
não sabendo eu já sabia.
Da Espereza.

Sete-e-setenta vezes milmente tinha ele de roer nisso, às macambúzias. De tirar a chapa, sem aviso nem permisso, o Iô Wi abusara, por arrogo e nenhum direito, agravando-o, pregara-lhe logro. Igual a um furto! — ao dono da faca é que pertence a bainha… — cogitava, com a cabeça suando vinagres. Seu, cujudo, legítimo, era o ginete, de toda a estima; mas que, reproduzido destarte, fornecia visão vã, virava o trem alheio, difugido. Descocava-o estampada junto, abraçando-lhe o crinudo pescoço, a moça, desinquieta, que namorava o Iô Wi, tratava-o de Williãozinho.

Encismava-se: feito alguma coisa houvessem tomado ao animal, subtraindo-lhe uma virtude; o que trazia dano, pior que mau-olhado. O retrato. Ele não podia impedir que aquilo já tivesse acontecido. Saía agora à porteira, a vigiar o extraordinário formoso — alvo no meio dos verdes que pastando — mesmo quando assim, declinado entortado. Vistoso mais que no retrato, ou menos, ou tanto? Era muito um cavalo.

Dele. O que lhe influía a única vaidade. Deu pontapé num esteio, depois meditou sobre seus sapatos velhos. Ele, o Bio. Ia outra vez ver Iô Williãozinho — e o quadro.

Ia a pé; para giro vulgar ou de mister, não o selava: o seu corcel, sem haver nome. Referiam-no todos ao nulo e transato, o primeiro dono consistindo de ser um falecido Nhô da Moura, instruidor. — “O cavalo branco do Nhô da Moura…” — por lerdo, injusto costume, ainda pronunciavam.

Nhô da Moura certo inventara e executara de o fazer à mão, refinado e afalado, governava-o com estalos do olhar, quem-sabe só por afetos do pensamento. Outro o montasse, e era o Nhô da Moura assoviar dum jeito sortilégio — e truque que ele a dar às upas e popas, depondo o cavaleiro postiço. Entanto, trampa, a qual, que não procedia mais: Nhô da Moura morto em-de levara consigo a gerência. Bio rezava por essa distante alma. Seu era agora o cavalo, sem artifícios, para sempre.

Não o retrato. O que: moderno, aumentado, nas veras cores, mandado rematar no estrangeiro por alto preço, guarnecido de moldura. Iô Wi pendurara-o na abastada sala de casa — que perdia só para a de Seo Drães, vivenda em apalaço. Isso pecava. Seria todo retrato uma outra sombra, em falsas claridades?

Bio olhava-o com instância, num sussurro soletrante, a Iô Wi quase suplicava-o. Seu cavalo avultava, espelhado, bem descrito, no destaque dessa regrada representação, realçado de luz: grosso liso, alvinitoso, vagaroso belo explicando as formas, branco feito leite no copo, sem perder espaço. E que com coragem fitava alguma autoridade maior de respeito — era um cavalo do universo! — cavalo de terrível alma.

Iô Wi, então, não dadivava, de o entregar ou retornar, a quem, que? Bio, sem acenar naquilo, fechava os olhos. Doía-lhe de não. Iô Wi do dito não se desfazia, jamais, tanto nele contemplava a metade — a moça, de fora, de cidade, com ela ia se casar — cheio de amorosidades. Por causa, o queria, como um possuído. Mais disse: que não se podia fazer partição, rateio dos feitios do cavalo e da moça, cortar em claro. O Bio voltasse, para o ver e rever, vezes quantas quisesse, entrar só assim em quinhão — de regalia de usuflor.

Iô Williãozinho, por palavras travessas, caçoadamente, dava a entender que o cavalo, de verdade, não era portentoso desse jeito, mas mixe, somente favorecido de indústrias do retratista e do aspecto e existir da Moça — risonha, sonsa, a cara lambível. Descobria o Iô Wi as tençoadas estranhezas! Todos querem acabar com o amor da gente.

De lá o Bio saiu, de ódio.

Indo que entendendo: e achava. Tinha era de nele montar, pelo comum preceito, uso, sem escrúpulo nem o remorso. Montava-o — e dele só assim se posseava. Ia então exercer o que até aqui delongara, por temor e afeição rodeadora — só a o tratar, raspar, lavar, lhe adoçar ração, fazer-lhe a crina — xerimbabado. Tá, o dia chegou. Terno botou-lhe o selim, rogava indultos.
Tanto cavalgou, rumo a enfim nenhum, nem era passeio, mas um ato, sem esporte nem espairecer. Senseava-o, corpo em corpo, macio e puro assim nem o aipim mais enxuto, trotandante ou à bralha. Seguia o sol, no chão as sobreluzidinhas flores, do amarelo que cria caminhos novos. A estrada nua limpa com águas lisices — tudo o que nele alegre, arrebatado de gosto — e o azul que continua tudo. Eles subiam.

Somente com o em-paz Nhô da Moura, aqui estivesse, poderia conversar, carecia, sobre este: airoso, de manejo, de talento. Se vivo o Nhô da Moura, ah, mas — então dele Bio o soreiro ainda não seria… Deu galope. Um requerer o mandou para trás, de qualquer jeito, havido-que, se reenviava ao Iô Wi. Desdenhava falsejos e retratos. Agouros! devia abolir aquele, destruído em os setecentos pedaços. Só depois sossegasse. Era um demais de cavalo.
Desafioso, chegou. Viu o Iô Wi — jururu-roxo — e logo soube. O retrato já não pendia da parede, senão que removido em recato. Iô Wi suspirou-se: o Bio fosse, ao qual canto, e à vontade o espiasse. A moça não viria mais. Ingrata, ausenciada, desdeixara o Iô Wi, ainda de coração sangroso, com hábitos de desiludido.

Bio se coçava os dedos das mãos. A moça não podia assim de todo fugir. No viso daquela enfeitada arte, também alguma parte dela parava presa, semblante da alma, por sobejos e vivente parecença. Mesmo longe, certas horas ela havia de sentir, sem saber, repuxão da tristeza do Iô Wi, compondo silêncio.

E o Iô Wi, agora, não ia apossá-lo no quadro? Não, o Iô Williãozinho sendo dos que persistem, ele carecia daquilo, para conferir saudades. Só o vilão sonha sem o seu coração. Bio concordou, tossia. Outros possíveis retratos rejeitou, que o Iô Wi prometia mandar bater. Maior queria pensar o que percebia, de volta. Meteu-se por dentro.

Mais nem praguejava que em rasgados aquele figurado se acabasse. Só, numa madrugada, sonhou esse aspecto, coisas ofendidas. Foi levantar e ir ver: seu cavalo!

O cavalo, prostrado, a cara arreganhada, ralada, às muitas moscas, os dentes de fora, estava morrendo. Bio também gemeu, lavando com morna água salgada aqueles beiços, desfez o arreganhamento, provou-lhe as juntas, pôs o cabresto, ele fazia um esforço para obedecer. Bebia, sem bastar, baldes de água com fubá e punhadinho de sal. Mas mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite. Sofrimento e sede… Isto se grava em retratos? Nhô da Moura não tivera ocasião daquilo.

Essas horas. Ele pôs a cabeça em pé, parecia que ia mandar uma relinchada bonita. Depois foi arriando a esfolada cabeça, que ficou nos joelhos do Bio. Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira. Não estava ali mais.
Ali estava chegado o Iô Williãozinho.

— “Você, Bio, enterrou o seu Lirialvo? Você envelheceu, sobrejeito…” — disse, deveras. Vem comigo, associoso falou. Bio veio, divulgava ao outro como aquele se quebrara por dentro, de rolar de um barranco à-toa. Calado, agora, recuidasse, que a ingrata moça constava também, nesta vida, teria seu direito papel, formosa à vista.

— “Bio, você quer o retrato?”

Não, Bio queria não, feliz anteriormente, queria mesmo silêncio. Apesar bem de belo, perfeito em forma de semelhanças, cavalo tão cidadão, aquilo não podia satisfazer o espírito, como a riqueza esfria amores, permanecido em estado de bicho. Nem era o que mudado, depois, com ronquidos de padecer, tremente o inteiro pelo, dele junto, como o dia de ontem que não passou, sem socorro possível.

— “Bio, a gente nunca se esquece…” — bem dito, com uma dor muito cheia de franqueza. De jeito nenhum, consequência da vida.

Mais foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da noite. Resolvidos, acharam: que iam levar o quadro, efígies de imagens, ao Seo Drães, para o salão de fidalga casa, onde reportar honra e glória. Separaram-se, após, olhos em lacrimejo, um do outro meio envergonhados.

Era verdade de-noite
era verdade de-dia
Mentira, porque eu sofria.
Recapítulo

— João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: Terceiras estórias”. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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