COLUNISTAS

Réu vítima – Yasmim Abrahão Raposo

Ela vai retirando a roupa suavemente. Sente a camiseta suada levantar de maneira desengonçada seus cabelos curtos, desprende o sutiã com agressividade e retira o short embolado com a calcinha, percebendo ao espelho, os indícios de um corpo banal e fora do padrão. Abre o chuveiro e regula a água para que o gelado impregne na espinha. As gotas descem límpidas pelos seios e escorrem taciturnas por entre as pernas.

Nesse cenário perigosamente enganador e psíquico, ela incita a si mesma a pensar sobre tudo. Por alguns segundos, cria nojo do chão. Não seria pela imundice, pelos cabelos de outras mulheres bonitas no ralo, pelo esgoto que sugava o poético romântico de sua perspectiva. O chão simplesmente era tocável. Nenhum de seus sonhos jamais fora.

Percorrendo o sabonete pelo corpo, apertando as gorduras que a matavam e arranhando as estrias que petrificaram seus descontroles, lembrou-se do nada. Não era nada.

Engoliu algumas gotas que caiam aleatoriamente em seus problemas físicos, figurou suas desinências humanas, declinou algumas normas cultas a serem seguidas em seu cotidiano. Encontrou no seu falso sensual, sua fraqueza. Talvez não fosse possível mudar.

Com a mente rodando memorizou conversas fáticas que tivera em outrora. Culpou-se por expor sua incompreensão e, ao desnudar-se, foi completamente incompreendida. Compreendeu por fim, que o completo era um vazio estancando o vômito. Mas nem vômito tinha mais, seu estômago, assim como sua essência, estava ácido e corroía o que sobrava.

Desejava não desistir. Excitava-se com os feixes de luz que sorrateiramente apareciam e a machucavam em meio ao escuro.

Ela, para si, não era mais suficiente. Ela, para si, não era mais amada. Ela, para si, não tinha nada demais. O nada era o que tinha.

Ela morrera caída no sabão do chão sujo. Seus cabelos lambeados, suas nádegas marcadas com a queda, suas costas arranhadas, seus olhos completamente abertos: seus sentimentos se extinguiram e a nova mulher assistiu-se falecer pela incapacidade de enxergar a vida. No entanto, a culpa será sempre e eternamente dela: como qualquer outra mulher que ousa ser todos os dias mulher!

*Yasmim Abrahão Raposo, graduanda de Letras-francês na Universidade Federal Fluminense.

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Lúcia Santos lança álbum ‘Eu não quero prosa se não for pra tanto’

Álbum da poeta e letrista Lúcia Santos tem as participações de Anastácia, André Bedurê, Ceumar,…

3 horas ago

Roger Resende lança single ‘Cavaco Madeira’

O cantor e compositor Roger Resende antecipa seu novo EP com a intimista “Cavaco Madeira”.…

5 horas ago

Fi Bueno lança single ‘Cabra da Peste’

Single 'Cabra da Peste' anuncia novo álbum autoral de Fi Bueno, gravado com produção do…

7 horas ago

‘Cem Anos de Solidão’ – Série baseada na obra prima de Gabriel García Márquez estreia na Netflix

A série, é uma adaptação da obra prima de Gabriel García Márquez “Cem Anos de…

2 dias ago

Samuca e a Selva lança EP ‘Summer Love – O Verão dos Amantes’

Romântico e quente, novo trabalho abre as comemorações do aniversário de dez anos da banda…

2 dias ago

Roger Resende lança single ‘Duas Léguas’

O cantor e compositor Roger Resende busca beleza na saudade no sensível single “Duas Léguas”.…

2 dias ago