LITERATURA

Ripuária – João Guimarães Rosa

Seja por que, o rio ali se opõe largo e feio, ninguém o passava. Davam-lhe as costas os de cá, do Marrequeiro, ignorando as paragens dele além, até à dissipação de vista, enfumaçadas. Desta banda se fazia toda comunicação, relações, comércio: ia-se à vila, ao arraial, aos povoados perto. João da Areia, o pai, conhecia muita gente, no meio redor, selava a mula e saía, frequente. O filho, Lioliandro, de fato se aliviava com essas ausências. Ele não gostava de se arredar da beira, atava-se ao trabalho. Era o único a olhar por cima do rio como para um segredado.

Lioliandro tinha irmãs, careciam de quem em futuro as zelasse. — “Morro, das preocupações!” — invocava João da Areia, apontando para os olhos do filho o queimar do cigarro. Morreu. A mãe, acinzentada, disse então àquele, apontando-lhe aos olhos com o dedo: — “Tu, toma conta!” — pelo tom, parecia vingar-se das variadas ofensas da vida.

Lioliandro cismou: a gente podia vender o chão e ir… E virava-se para a extensão do rio, longeante, a não adivinhar a outra margem. Mas constavam-lhe do espírito ainda os propósitos do pai: — “Em parte nenhuma feito aqui dá tanto arroz e tão bom…” Teve de reconhecer a exatidão da tristeza.

Suas irmãs despontavam sacudidas bonitas, umas já com conversado casamento. Delas se afastava Lioliandro, não por falta de afeto, mas por não entender em amor as pessoas. Fazia era nadar no rio, adiantemente, o quanto pudesse, até de noite, nas névoas do madrugar.

— “Diabo o daí venha!” — vetava a mãe, que se mexia como uma enorme formiga. Lioliandro, no fundo, não discordava. Disse: não se casaria, até que a sorte das irmãs estivesse encaminhada. — “Sua obrigação…” — a mãe apôs.

Lioliandro disso se doeu, mas considerando tudo certo fatal.

E veio, nesse tempo, foi uma canoa, sem dono, varada na praia. A fim, estragada assim, rodara, de alto rio. Ele ocultou-a, levava muito, sozinho, para a consertar, com mãos de lavrador. Em mente, achava-lhe um nome: Álvara. Depois, não quis, quando ansioso.

Queria era, um dia, que fosse, atravessar o rio, como quem abre enfim os olhos. Tinha notícia — que do lado de lá houvesse lugares: uns Azéns, o Desatoleiro, a grande Fazenda Permutada. Fez os remos.

Por esses espaços ninguém metia lanço, devido a que o rio em seio de sua largura se atalhava de corredeiras — paraíba — repuxando sobre pedregulho labaredas d’água; só léguas abaixo se transpunha, à boca de estrada, no Passo-do-Contrato. De lá surgia pessoa alguma. — “Lá não é mais Minas Gerais…” — o pai, João da Areia, quando vivo, compunha o jurar.

No em que se casaram, junto, as duas primeiras irmãs, se deu festa, mas Lioliandro não sabia dançar. Irrequieta mocinha, também vinda, dançava sorridente, de entre as mais nem se destacava. Lioliandro uma hora desertado se sumiu de todos, buscou a beirada do rio, que no escuro levava água bastante, calado e curto, como o jaguar. Álvara, aquela recuidada moça, no saudar lhe dera a mão. Disse-se lhe dissera: — “Você tem o barquinho, pega a gente para passear?”

Ele a desentendera. Espiava agora o acolá da outra aba, aonde se acendia uma só firme luz, falavam-na o que não se tinha por aqui, que era de eletricidade. Disso tomavam todos inveja. Desconfiou mais, para se arrimar, desse tempo por diante.

Até o choco das garças, nos ninhos nas árvores. Montou então uma vez a canoa e experimentou, no remar largo, era domingo, dia de em serviço não se furtar a Deus. Talvez ele não sendo o de se ver capaz — conforme sentenciara-o o velho, João da Areia. Decerto, desta banda de cá, dos conhecidos, o desestimavam, dele faziam pouco.

Do outro lado, porém, lá, haveria de achar uma moça, e que amistosa o esperava como o mel que as abelhas criam no mato… O rio era que indicava o erro da gente, importantes defeitos, a sina. Dentro quase no meio, se avistava, na seca, ilha-de-capim, antes da maior, inteira, crôa com mouchão, florestosa.

Depois foi a Lica, irmã caçula, que ficou nôiva. A não esquecida moça, Álvara, veio passar mês em casa, para auxiliar nos preparos. Ela cantava coplas, movendo no puro ar os braços. Mesmo não se curava Lioliandro de frouxo desassossego.

Entretanto provara, para sustos e escândalo, a façanha. De aposta, temeram por sua vida! Desapareceu, detrás das ilhas, e da pararaca, em as rápidas águas atrapalhadas. Só voltou ao outro dia, forçoso, a todo o alento.

— “Havia lá o que?” — perguntaram-lhe. Nenhum nada. Mais a dentro deviam de viver as povoações, não margeantes, ver que por receio do ribeiradio, de enfermidades. E fora então buscar a febre-de-maresia? Tanto que não.

Dobrava de melancolia. Trouxera a lembrança de meia lua e muitas estrelas: várzeas largas… A praia semeada de vidro moído.

Muito o coração lhe dava novos recados. Lioliandro estudava a solidão. Dela lhe veio alguma coisa.

Álvara, a moça, na festa, para ele atentara, as dadas vezes, com olhos que aumentavam, mioludos, maciamente; ele desencerrava-se. Da feita, também ela ficou de parte. — “Não danço…” — a todos respondia.

Mas agora os mesmos olhos o estranhassem, a voz, que não ouvindo. Dele não era que gostava, não podia; decerto, de algum outro, dos que a enxergavam, diversamente, no giro de alegria. A travessia nem lhe valera, devia mais ter-se perdido, em fim, aos claros nadas, nunca, não voltando.

Na manhã, ele olhou menos as mãos, abertas rudemente: o rio, rebojado, mudava de pele. Nem atendeu aos que lhe falavam, aflitos, à mãe, que desobedecida o amaldiçoava. Entrou, enfiava o rio de frecha, cortada a correnteza, de adeus e adiante, nadava, conteúdo, renadava.

Revia as ilhas, donde o encachoeirado estrondeante, daí o remate e praia — de a-porto. Seu amor, lá, pois. Mediante o que precisava, que de impor-se afã, nem folga, o dever de esforço. — “Não posso é com o tal deste rio!” — tanto tinha dito o pai, João da Areia. Sacudiu dos dois lados os cabelos e somente riu, escorrido cuspindo.

Súbito então se voltou, à voz a chamar seu nome: por entre o torto ondear, que ruge-ruge mau moinhava enrolando-o, virou e veio.

A mãe bem que chorava, desdizendo as próprias antigas pragas. Detrás dela, aparecia aquela escolhida, Álvara, moça, que por ele gritara, corada ou pálida. — “Que é que lá tu queria?!” — as mãos da mãe tacteavam-lhe o corpo.

Mais a moça o encarou. — “Tudo é o mesmo como aqui…” Lioliandro quis ouvir, se bem que leve, nem crendo.

— “De lá vim, lá nasci” — sem pejo, corajosa, a curso. Sim, a gente a podia fácil entender, tão querida, completadamente: — “Sou também da outra banda…”

— João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: Terceiras estórias”. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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