Entrevista*
Segundo Clarice Lispector, há qualquer coisa de rural em Rubem Braga. Aliás, ele se sente, no Brasil de hoje, como uma velha vaca atolada num brejo.
Até parece que conheço Rubem desde sempre. Gostei dele à primeira vista. Sei coisas a seu respeito. Por exemplo, bondades que faz discretamente sem pedir nada em troca. Por exemplo, ele é pessoa que perdoa muito e entende tudo e não se faz juiz de ninguém. Ele é corajoso. Simples. Delicado. Ele tem qualquer coisa de rural em si. E foge a tudo o que seja “sentimentalismo” falso. Mas há mil “rubens” dentro de Rubem Braga, é claro, assim como há mil ‘clarices’ em mim. E tanta coisa eu desconheço em Rubem, que era melhor entrevistá-lo de vez. Pelo menos tentarei atenuar o seu mistério (porque ele é um pouco misterioso). Mas desconfio que o seu mistério está na sua simplicidade – e simplicidade é das coisas mais raras no ser humano, a ponto de constituir uma qualidade insólita.
– Rubem, eu te conheço há tantos anos que, se você não fosse misterioso e calado, eu não teria pergunta nenhuma a fazer. Concorda?
– Mas acontece que sou uma esfinge sem segredo. Calado, nem tanto. Ou nem sempre. Até que já tenho falado demais. E estou aqui falando.
– Você para mim é um poeta que teve pudor de escrever versos, e então inventou a crônica (pois foi você quem inventou esse gênero de literatura), crônica que é poesia em prosa, em você. É ou não é?
– Não é bem isso. Há um fato importante em minha carreira, eu sempre escrevi para jornal. A partir do Correio do Sul, de Cachoeiro de Itapemirim, que era de meu irmão Armando e chegou a sair três vezes por semana. Lá publiquei alguns versos mas escrevia principalmente artigos terrivelmente sérios sobre política, lavoura, economia etc., e uma ou outra crônica ligeira. Em suma: eu escrevia o que me dava na telha e, na verdade, nunca tive pudor de fazer versos. É que fazer bons poemas (em versos) exige um tipo de habilidade e de economia, síntese e ao mesmo tempo, desculpem a palavra, inspiração. É muito mais fácil ir na cadência da prosa, e quando acontece ela dizer alguma coisa poética, tanto melhor.
– Quantos livros você já escreveu, e quais?
– Comecei com O conde e o passarinho, em 1936, depois, outro pequeno livro de crônicas: O morro do isolamento, em 1944. A seguir um livro que é mais de reportagem: Com a FEB na Itália, depois reeditado sob o título Crônicas de guerra: é uma parte de minha experiência como correspondente de guerra. Depois vieram outros livros de crônica: Um pé de milho, O homem rouco, A borboleta amarela, A cidade e a roça, Ai de ti, Copacabana, e A traição das elegantes.
– Tem algum livro para publicar?
– Quase todos esses livros estão esgotados e não pretendo reeditar nenhum. Penso, por isso, em fazer, este ano, uma seleção de todos os meus livros num só volume. Fernando Sabino fez a escolha para mim mas estou revendo penosamente seu trabalho. Como é chato a gente se reler!
– Também eu evito ao máximo ter que me reler, e fico espantada quando encontro pessoas que leram um livro meu várias vezes. Como vai se chamar o livro?
– As melhores crônicas de Rubem Braga, ou algo assim. Terá apenas algumas crônicas ainda não publicadas em livro. Deve sair lá pelo meio do ano.
– É verdade que você amou muito? E que é que você mais queria na vida? Qual sua atitude diante da morte?
– Começarei pelo fim, isto é, pela morte. Não anseio por ela mas também não morro de medo. Tenho experiência bastante para poder dizer que não tenho medo da morte em si mesma. Meu medo é da doença, da dor, da impotência, da humilhação. Além disso acho na ideia da morte um grande consolo. Quanto a amor é verdade que amei muito e amei errado, com demasiada paixão. Mas alguém ama certo?
– Conheci você mais combativo, não é verdade?
– É verdade. Você me conheceu na volta dos meus 30 anos eu ainda era muito rapaz. Ainda pensava em dar um jeito nesse mundo ou pelo menos no Brasil. Hoje estamos em um brejo com mormaço, e acho que tão cedo não sairemos disso. Eu sou uma velha vaca atolada. No brejo, naturalmente.
– Você ainda acredita em alguma coisa em política?
– Acho que a liberdade é essencial. Sou contra toda e qualquer forma de ditadura, de classe, de indivíduo ou de casta. Mas para que dizer isso? Escrevi milhares de crônicas, e não creio que tivessem qualquer influência na vida política de meu país.
– Será pessimismo seu?
– Não é. Vou lhe dar um exemplo. Em 1950 fiz uma excursão a Paraty e na volta escrevi uma crônica falando das belezas da terra, mas reclamando contra os alto-falantes existentes em uma praça. Eles berravam altíssimo durante toda a tarde de domingo, não deixando ninguém descansar. Soube que essa crônica tinha causado grande impressão em Paraty. Voltei lá 25 anos depois e na tarde de domingo, na mesma praça, os alto-falantes ainda estavam a berrar. Ainda devem estar berrando alto em 1977. A gente escrever não adianta nada, Clarice.
Eu também acho. Como já foi dito, no Brasil o escritor escreve para os colegas.
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RUBEM BRAGA – O autor de A borboleta amarela, colaborou em jornais como O Globo e Correio da Manhã. Quando foi designado pelo Diário Carioca, em 1944, para fazer a cobertura jornalística das atividades da Força Expedicionária Brasileira conheceu Clarice, que morava então em Nápoles, em companhia do marido diplomata Maury Gurgel Valente. Fundou com Fernando Sabino as editoras do Autor e Sabiá onde publicaram Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Vinícius de Moraes. A Sabiá editou, também, pela primeira vez no Brasil escritores latino-americanos como Gabriel García Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.
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Fonte: Em “Clarice Lispector – Entrevistas”. [organização Claire Williams; preparação de originais e notas biográficas Teresa Montero]. Rocco Editora, 2015. *[Originalmente publicado na Revista “Fatos e Fotos”, em 27 de junho de 1977]
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