Pare um pouco e observe o que a mídia evoca à sua volta, quando se toca no tema mulher. Perceba como Chimamanda Ngozi Adichie, Rupi Kaur e Conceição Evaristo têm obras listadas em destaque nas vendas das livrarias, Porsha O e sua Slam Poetry como feminista negra recebem cada vez mais visualizações no youtube, e Patty Jenkins oferece ao cinema de massa e divertimento trivial o filme “Mulher-Maravilha” como título de sucesso nas bilheterias ao redor do mundo. Inúmeras grifes de moda vendem itens voltados ao público feminino, como peças de roupa com palavras como Feminist e similares estampadas.
É possível atestar que a vida, a representação e a identidade das mulheres é um tema amplamente propagado na atualidade do mundo globalizado. Diversos meios de consumo oferecem e lucram em cima do tema “feminismo”, tendo em vista os avanços e conquistas oriundos de séculos de luta do movimento, em suas variadas vertentes. Ser mulher – e mais – ser mulher com orgulho de seu gênero está na moda.
Nós, mulheres em busca da emancipação contra a misoginia enraizada nos pilares da nossa sociedade, nunca estivemos tão em voga. Mas isso é muito recente. E como toda estrutura recente, não é tão difícil olharmos para trás para saber discernir o que mudou e como mudou.
Além do que consumimos em termos culturais, por certo a construção da sociedade ocidental teve como principais diretrizes leis, costumes e preceitos também correlacionados com a centralização jurídica, política e social nas mãos do homem, através de regimes e condutas que privilegiavam normas patriarcais e mantinham o sexo masculino no centro das estruturas de poder. E não se passaram muitos anos desde que a mesma mídia de massa, a qual hoje em dia aduz promover a igualdade de gênero, coadunou com ditames patriarcais misóginos para preservação dos ideais conservadores de família burguesa.
Há menos de um século atrás, a mulher era intrinsecamente dependente do pai, e, na idade adulta, do marido, com diversos contratempos para dispor dos direitos da vida civil. Isto ocorria conforme as normas do Código Civil de 1916, pelas quais a mulher era considerada relativamente incapaz, assim sendo, não teria a prerrogativa de tomar decisões por conta própria. As mudanças deste panorama opressivo surgiram primeiro pelo Estatuto da Mulher Casada, vigente desde 1962: com o Estatuto, a mulher passou a não mais constar do rol dos relativamente incapazes, bem como recebeu uma nova série de liberdades civis. Mas o ideário machista persistiu por algum tempo:
Lugar de mulher é o lar […] a tentativa da mulher moderna de viver como um homem durante o dia, e como uma mulher durante a noite, é a causa de muitos lares infelizes e destroçados. […] Felizmente, porém, a ambição da maioria das mulheres ainda continua a ser o casamento e a família. Muitas, no entanto, almejam levar uma vida dupla: no trabalho e em casa, como esposa, a fim de demonstrar aos homens que podem competir com eles no seu terreno, o que frequentemente as leva a um eventual repúdio de seu papel feminino. Procurar ser à noite esposa e mãe perfeitas e funcionária exemplar durante o dia requer um esforço excessivo […]. O resultado é geralmente a confusão e a tensão reinantes no lar, em prejuízo dos filhos e da família.
(Revista Querida, novembro de 1954)
A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, nada de incomodá-lo com serviços domésticos.
(Jornal das Moças,1959)
O lugar de mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza.
(Revista Querida, 1955)
Este ideário foi especialmente consagrado pelas revistas voltadas ao público feminino nos anos 50, consumidas em massa pela classe média que ascendeu junto ao crescimento urbano e industrializações provenientes do Pós-Guerra, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Diante deste cenário de favorecimento econômico, os brasileiros passaram a ter maiores opções de lazer, consumo e entretenimento, além de maior acesso à informação.
Nesse âmbito, havia uma espécie de definição do que seriam as características próprias da feminilidade – que, reconhecidamente, restringiam a função social da mulher –, ligadas à maternagem, à castidade, à doçura relacionada à submissão ao marido. De um lado, o homem era influenciado a continuar no papel de chefe da família, tinha suas experiências sexuais favorecidas, e de outro, a mulher tinha sua sexualidade ainda restrita, pura e tão somente aos fins matrimoniais.
Jornal das Moças, Querida, Vida Doméstica, Você, as seções para mulher de O Cruzeiro traziam imagens femininas e masculinas, o modelo de família – branca, de classe média, nuclear, hierárquica, com papéis definidos –, regras de comportamento e opiniões sobre sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal. Essas imagens, mais do que refletir um aparente consenso social sobre a moral e os bons costumes, promoviam os valores de classe, raça e gênero dominantes de sua época. Como conselheira, fonte importante de informação e companheiras de lazer – a TV ainda era incipiente no país –, as revistas influenciaram a realidade das mulheres de classe média de seu tempo, assim como sofreram influências das mudanças sociais vividas – e algumas, também promovidas – por essas mulheres.
(DEL PRIORE, Mary e BASSANEZI PINSKY, Carla. A História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 609.)
Com base na ideologia das revistas citadas, exercer integralmente a maternidade, esforçar-se para manter o casamento, e cumprir as funções do lar eram indícios de feminilidade, correlacionados à suposta natureza da mulher. A participação no mercado de trabalho, o vigor, e, em suma, a independência, por conseguinte, seriam características inerentes a masculinidade.
Indo adiante, a partir de tais polarizadas fundamentações do que significaria de fato o ser mulher, em contrapartida a supostamente distante e oposta natureza masculina, era este o cenário em que as revistas femininas buscavam fulcro para defender os conceitos de moça de família e moça leviana. Assim, permitiam que as restrições femininas perdurassem em âmbitos profissionais, políticos, sociais e inclusive em relação à sua própria sexualidade, além de favorecer as antigas estruturas de poder centralizadas na figura masculina.
Diante deste restrito paradigma, a vida de rainha do lar seria o objetivo máximo a ser atingido pela mulher, que deveria se manter pura, almejando o tão sonhado casamento-modelo. Os pais não mais decidiriam os casamentos por seus filhos, já libertos dentro dos costumes sociais da época para escolher seus futuros pares. Contudo, as mulheres tiveram de responder pelas novas estruturas, com a pressão para reprimir sua sexualidade, uma vez que a castidade era, como já dito, uma das virtudes femininas.
É importante ressaltar que estas revistas, consumidas em massa por todo o país, tiveram tais edições publicadas há menos de setenta anos atrás. Reproduziam nada menos do que o senso comum – lucrativo naquela época – de que o papel da mulher se restringia em ser mera e absolutamente coadjuvante ao homem. A misoginia, o abuso doméstico e o parcial enclausuramento feminino eram princípios rentáveis para o mesmo regime econômico que hoje acha grande fonte de renda nas propagandas feministas, configurando certa fluidez histórica minimamente controversa.
Em relação as chamadas moças levianas, estas sofreriam as consequências por sua suposta depravação, pelos simples atos de se permitirem ter intimidades físicas com os homens, atos vistos como degradantes para a pretensa boa imagem da mulher. Tais mulheres que se permitiam dispor destas liberdades seriam, assim, incapazes de conseguir um bom casamento, e não ajudariam a gerir todo o conceito conservador de ideal familiar.
A moça leviana seria, em suma, toda e qualquer mulher que defendesse a própria liberdade sexual e financeira, ou que não coadunasse com os preceitos antiquados de moça de família, ligada às atividades domésticas. Mulheres solteiras, trabalhadoras, assexuadas, bissexuais, homossexuais e toda e qualquer identidade não favorecida pelo ideal de família heteronormativa cristã seriam, portanto, levianas. Se a boa moça já tinha status de cidadã de segunda classe em relação ao homem, a moça leviana estaria ainda mais abaixo.
Foi, assim, amplamente divulgada a ainda recorrente ideia da contenção da sexualidade feminina em limites rígidos, para que a boa moça soubesse como se dar ao respeito.
Inclusive, segundo a legislação proposta por Clovis Bevilaqua no que se refere ao Código Civil de 1916, uma filha desonesta poderia ser deserdada de seu lar, pois sua leviandade mancharia a honra da família, ato este compreendido como grave injúria. A filha que incidisse em um comportamento leviano atenderia a um ato inclusive tipificado juridicamente no mesmo patamar de tabu social que relações como o incesto.
Neste sentido, é relevante ressaltar a inacreditável previsão do Código Civil para legitimar a anulação do casamento – por pretensa indução a erro essencial –, caso o homem aferisse que sua esposa com quem havia recentemente se casado não era virgem.
Antes da Lei do Divórcio, a separação e o desquite – que não permitia novos matrimônios e não dissolvia o antigo vínculo conjugal – eram males temidos por todas as mulheres, em razão da intensa mácula social que o rompimento de um matrimônio traria para uma mulher. Seria encarado, em verdade, como uma espécie de falha de sua própria função feminina. Inclusive recebiam a alcunha de “concubinadas”, caso fossem viver com um homem desquitado. Assim, as mulheres que ousavam tentar a separação – ainda que cientes das consequências – eram forçadas a fazê-lo por meio de contratos formais, casamentos no exterior ou por procuração, mesmo que tais atos não tivessem respaldo jurídico no Brasil, tampouco reconhecimento popular, em um ambiente de intenso conservadorismo.
Desta forma, a vida social da mulher era legitimada como alvo de interesse e de julgamento público; tendo em vista tais supostos códigos de conduta enfatizados à época até mesmo pelas leis aplicáveis, os pais, amigos, vizinhos, conhecidos e quaisquer indivíduos próximos da mulher se sentiam capazes de proferir julgamentos sobre as suas qualidades morais. A reputação da mulher era compreendida pelas atitudes que ela por si só “despertava” nos homens, de acordo com sua postura, lugares que frequentava, círculos sociais e até mesmo pelos trajes que vestia ou deixava de vestir.
Enquanto hoje a mulher busca sua emancipação e retratação da independência feminina em todos os tipos de mídia e veículos de comunicação, em um passado nada remoto ela tinha de sobreviver a faminta ação de todos estes meios lhe podando e diminuindo, passando adiante os preceitos que mantinham em voga sua opressão.
Em síntese, é inegável que entre a metade do século XX e este início de século XXI, houve um salto jurídico, artístico e cultural a favor da emancipação feminina e igualdade entre os gêneros. Todavia, é importante lembrar o passado e a fluidez dos mecanismos que, antes de mais nada, trabalham com margens de lucro, para evitar que a ideia de moça leviana x moça de família volte a ganhar respaldo.
Com ajuda ou sem ajuda do capitalismo e dos meios que o sustentam – os quais antes apenas exploravam a opressão feminina em detrimento do homem para seus proventos – espero que tenhamos todas a coragem das outrora elencadas como levianas. Para que nunca nos falte a habilidade de questionar, de refletir e de manter nossa própria autonomia, como faziam estas moças em outros tempos desclassificadas. Usando ou não roupas que nos categorizem como feministas, lendo autoras feministas, vendo filmes feministas. Seja dentro de nossas casas, lares, ou onde mais nós quisermos estar.
* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.
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