Uma das características maiores de certa tradição do pensamento crítico do século 20 foi a consciência da necessidade de pensar, de forma indissociável, crítica social e crítica cultural.
Este era o resultado da aceitação de uma premissa maior, a saber, a análise da produção cultural do presente não deveria ser pensada apenas a partir das funções que músicas, livros, peças de teatro e filmes desempenhariam na repetição dos padrões vigentes da vida social.
Ou seja, tal produção não deveria ser pensada apenas a partir da sociabilidade que ela sustenta, da reprodução das identidades sociais que ela ajuda a perpetuar, do prazer e do entretenimento que ela causa. A produção cultural deveria ser analisada a partir da emancipação social que ela seria capaz de gerar.
Desde Friedrich Schiller e seu “Educação Estética do Homem”, havia a compreensão de que não existiria transformação social possível sem uma “revolução na sensibilidade”, ou seja, sem que novas formas de sentir ganhassem corpo, sem que novos circuitos de afetos emergissem.
Mas, para isso, era necessária uma consciência crítica capaz de procurar a poesia que uma sociedade transformada clamaria, a música que a anunciaria. Produzir a imagem do que ainda não existe.
Quem não precisou ler Schiller para descobrir isso foi a indústria cultural (mesmo que alguns prefiram jogar esse conceito no lixo). À sua maneira, ela sabia que, se você não quiser uma revolução social capaz de produzir novas formas de vida e se estiver interessado em bloquear possibilidades de emancipação, a saída é gerenciar a cultura.
Assim, é possível impedir qualquer mudança na sensibilidade, controlar a capacidade de sentir, a velocidade das impressões e sensações, os modos de apresentação e de existência, o tempo dos desejos e o espaço das percepções.
Mas, para tanto, é necessário levar todos a acreditar que qualquer regime de crítica das formas atuais de sensibilidade é coisa de intelectual elitista desvinculado do contato direto com o povo e embriagado por um desejo inconfesso de desqualificação dos modos de vida populares. Gente que não compreende que Beyoncé já é a figura máxima da emancipação e do empoderamento feminino. Ou seja, para muitos, a indústria cultural fornece até mesmo a gramática para a nossa revolta.
Alguém neste país um dia disse sabiamente: “As massas ainda comerão o biscoito fino que fabrico”. Esta era sua maneira de dizer que a alienação social está sempre ligada à restrição da circulação de formas de experiência. Quebrá-la é indissociável da capacidade ouvir poesia, especialmente aquela que é “incompreensível para as massas”.
Infelizmente, se Oswald de Andrade voltasse hoje com frases desse calibre, eu temeria pelos impropérios que ele acabaria por escutar. Pois a ideia da necessidade de fazer circular produções que tensionam nossos modos de sensibilidade “populares” saiu de cena. A simples ideia de que pode haver muito de reacionário no que se vende como popular é quase um crime. A razão é simples: a própria ideia de crítica cultural enquanto projeto intelectual coletivo morreu. Ela é vista como um entulho autoritário de universitários em desamor com a sociedade democrática de massas.
Esse fim da crítica cultural é indissociável do processo de redução das expectativas de transformação social. Pois, para alguns, não se trata mais de lutar por transformações estruturais, mas de compreender a política como o ato de reconhecer, de respeitar e de permitir a generalidade de afirmações de si e de grupos.
Ou seja, trata-se de acima de tudo de “acolher”, como se a cultura fosse o espaço terapêutico para tratamento de traumas sociais. Nesse processo, a própria ideia de análise estética sai de cena, em prol da proliferação de justificativas sociológicas.
Bem, se quisermos entender uma das raízes da miséria de nossa imaginação política atual recomendo voltar os olhos para o fim da crítica cultural. Pois sem reflexão crítica sobre a cultura nunca foi nem será possível quebrar o círculo de anestesia que perpetua a alienação social. Não deixa de ter sua ironia que isso ocorra exatamente no momento em que precisamos lidar com líderes autoritários e protofascistas saídos diretamente do último reality show.
* Vladimir Safatle. É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas como colunista da Folha de São Paulo.
Fonte: Folha de São Paulo/Colunistas