Romance é considerado uma revelação do potencial expressivo da língua portuguesa
– por Berthold Zilly – professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC)
BERLIM (ALEMANHA) O ano de 1956 foi de grande importância para o Brasil, um limiar entre períodos sociais, políticos e literários: o início do mandato do presidente Juscelino Kubitschek, caracterizado pelo crescimento econômico, reformas sociais, modernização e democratização —processo marcado pela fundação da capital do país em pleno sertão.
No mesmo ano, foram publicadas duas obras que mudaram a história literária do Brasil, transformando o escritor João Guimarães Rosa no talvez mais importante ficcionista brasileiro do século 20: o ciclo de novelas “Corpo de Baile” e o romance “Grande Sertão: Veredas”.
Este último foi uma sensação muito além da área literária, um daqueles livros não muito frequentes cuja importância foi reconhecida imediatamente e cuja irradiação aumenta através das épocas e culturas.
O romance, unanimemente, é considerado uma revelação do potencial expressivo da língua portuguesa, uma inovação da forma narrativa, uma das grandes interpretações do Brasil, uma moderna representação épica de um cosmos rural, de envergadura tolstoiana.
A atualidade desse longo poema em prosa complexo, semi-hermético e sugestivo se manifesta na enorme fortuna crítica que não deixa de crescer nacional e internacionalmente, incluindo numerosas traduções e retraduções.
Por outro lado, tematicamente, o romance parecia não se sintonizar ao “zeigeist” de euforia desenvolvimentista da sua época de lançamento, ao evocar, anacronicamente, o sertão da República Velha, das primeiras décadas do século 20, uma hinterlândia cujo atraso estava sendo superado pelo progresso social dos anos 1950 e 1960.
Havia uma oposição entre forma vanguardista e conteúdo saudosista? Ou uma contestação cética do otimismo modernizador?
Seis décadas depois, percebe-se, talvez ainda com maior clareza, que não se trata apenas de um moderno romance histórico, mas que o seu mundo —o sistema político do coronelismo e da jagunçagem, com suas milícias, a violência endêmica entre banditismo, guerra civil, e desmandos das autoridades, ausência do Estado de direito— permite discernir estruturas e tendências típicas em diversas regiões do mundo e épocas da história.
Assim, “Grande Sertão: Veredas” pode ser lido, também, como alegoria de regiões de “limited statehood”, de presença limitada do Estado, ou até de “failed states”, Estados falidos, onde mandam senhores da guerra, como em muitos países da Ásia e da África.
Tal anomia não se restringe aos espaços rurais, mas pode existir também em cidades. Não é por acaso que autores como Paulo Lins ou Luiz Ruffato, visivelmente, inspiram-se, também, na obra de Guimarães Rosa.
Se o sertão, como diz Riobaldo, é o mundo, isso se deve também à possibilidade de entendê-lo como laboratório da condição humana, onde se cogitam problemas existenciais.
Como se pode organizar a satisfação das necessidades básicas? Como construir uma vida boa, digna, feliz, nos planos privado e social? Um convívio civilizado, justo, em harmonia com a natureza? Quais são as causas do sofrimento? De onde vêm o bem e o mal, dialeticamente entrelaçados e tão difíceis, às vezes, de serem definidos?
Riobaldo tenta nos comunicar, lembrando os tradicionais narradores populares, experiências e conselhos retirados da sua vida cheia de peripécias.
Mas, como moderno herói problemático, ele questiona a sua própria memória autobiográfica, o seu retrato da realidade, física e metafísica, a linguagem, a forma de narrar —o que faz do romance uma profunda reflexão epistemológica e metaliterária.
Fonte: Ilustrada/ Folha de São Paulo
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