Dizem que temos de lê-los porque são os melhores. E nós, corajosos, tentamos
– por Luis Meyer/El País
Cento e trinta milhões. É mais ou menos o número de obras literárias publicadas em toda a nossa história. Um dado desanimador para aqueles que têm planos de ler tudo na vida, pois seriam necessários 250 anos. E isso caso se tenha a capacidade sobre-humana de devorar cada livro num minuto.
Talvez por isso alguns escritores consultados para este artigo não tenham problema algum em reconhecer que acumulam um monte de exemplares abandonados durante a leitura em suas prateleiras. Eles inclusive recomendam fazer isso: “A vida é curta e há muitas coisas interessantes para ler”, diz Andrés Barba, um dos mais importantes jovens escritores de língua espanhola, de acordo com a prestigiosa revista inglesa Granta. Barba reconhece que a única vez que conseguiu terminar Moby Dick aconteceu quando foi encarregado de traduzir a última edição ao castelhano. O filósofo Henry David Thoreau disse há quase dois séculos: “Leia os bons livros primeiro, o mais provável é que não consiga ler todos”.
Com esse panorama, convém não perder tempo com leituras infrutíferas. Manuel Astur, poeta, ensaísta e cofundador do movimento artístico Nuevo Drama, aconselha fugir do que é confuso: “Acho que um bom livro é aquele que consegue contar algo complexo com uma linguagem simples e econômica”, e cita: “Graça Infinita, de Foster Wallace, é um exemplo claro de pedantismo: poucos conseguiram terminar suas mais de mil páginas. E quem conseguiu jamais reconhecerá que não gostou e perdeu tempo”.
Um livro não deve ser enfrentado, acrescenta Barba, como um desafio. O leitor se coloca numa posição devedora para com o autor e é incapaz de deixá-lo com a palavra na boca. E esquecemos que, às vezes, é precisamente o escritor que está nos vendendo gato por lebre. O próprio Charles Bukowski reconheceu sobre seus livros: “Eu trabalho bem durante uma garrafa e meia de vinho. Depois, sou como qualquer velho bêbado de bar: repetitivo e chato”. Curiosamente, quando foi diagnosticado com leucemia, percebeu que era capaz de escrever de forma brilhante sem álcool ou tabaco. Só teve um ano para comprovar isso, antes de morrer em 1994. Mas já é outra história.
Há uma enorme quantidade de obras malditas que muitos não têm paciência para ler até o fim, nem a coragem de reconhecê-lo. Já demos 10 exemplos e agora apresentamos uma segunda lista. Antes de enfrentá-la, um conselho kafkiano para otimizar o tempo e não se angustiar diante dos milhões de exemplares que jamais chegaremos a folhear e, menos ainda, terminar. “Não deveríamos ler mais do que os livros que nos dão coceira e nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta com um soco no crânio, para que continuar?”. Isso foi dito por um autor, Kafka, prolífico em obras que muitos deixaram pela metade.
1. Ada ou Ardor, de Vladimir Nabokov
Caso típico de uma obra de arte aplaudida pela crítica e incompreendida pelo público. O genial autor de São Petersburgo escrevia tão bem que redigiu seu romance mais famoso, Lolita, em inglês, que não era sua língua materna (embora a dominasse desde a infância, pelo empenho de sua família aristocrática e de seus professores). O germe de Ada ou Ardor veio depois de ter se tornado mundialmente famoso com a história do professor viúvo obcecado por uma adolescente: logo depois de Lolita, se propôs a criar sua obra-prima (ainda não estava consciente de que já a tinha escrito), e Ada ou Ardor (1969) nasceu de dois projetos diferentes, duas crônicas de vida que acabaram sendo traçadas de tal maneira que ele decidiu que mereciam se tornar um único romance.
Talvez seja por isso que levou mais de nove anos para escrevê-lo. Nabokov sempre disse que queria ser lembrado por essa obra, embora sua narrativa arrevesada, cheia de acrobacias semânticas, alusões e duplos sentidos imperceptíveis para um leitor de inteligência mediana não tenha obtido o lugar universal que esperava. O poeta Manuel Astur vive uma contradição com esse livro: “Nabokov é um dos meus mestres, a grande inspiração para os meus livros. Mas este é um romance que me resiste, por mais que eu tente”.
2. O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar
O escritor argentino definiu sua obra-prima O Jogo da Amarelinha (1963) como “contrarromance”. Através da história de seu protagonista, Horacio Oliveira, traça, em mais de 156 capítulos, uma vida completa, mas com estruturas que fogem do convencionalismo para entrar no surrealista. E não só no que conta, mas sobretudo em como o faz. Convida o leitor a compartilhar seu caos e lhe dá várias opções para ler o romance: existe a “normal”, do início ao fim. Também a “tradicional”, apenas até o capítulo 56, prescindindo do resto. Também a “anárquica”, ou seja, a ordem que o leitor quiser.
E, finalmente, a proposta por Cortázar, como um jogo, com uma sequência definida no “tabuleiro de direção” mostrado na primeira página, como uma espécie de Excel primordial. É uma grade na qual o leitor começa no capítulo 73, e daí vai saltando de um ao outro sem ordem aparente, para terminar no 131. Muitos são aqueles que dizem não ter passado da página tal ou da página qual. Mas essa confissão deve ser seguida da inevitável pergunta: em que ordem você o leu? É que O Jogo da Amarelinha é o único livro que, se for deixado pela metade, pode significar que você praticamente o terminou.
3. Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust
A filóloga Josefina Lazcaray dá um conselho aos intrépidos que se aventurem a terminar os sete volumes que Proust escreveu ao longo de 14 anos: “Chegar até a página 80 do primeiro, e superar a famosa cena em que Proust lembra de sua infância enquanto molha um bolinho no chá”. O escritor parisiense escreveu esta obra de mais de 3.000 páginas entre 1908 e 1922, bem no ano que morreu, possivelmente esgotado por tal odisseia.
Muitos recomendam ler antes a biografia de Proust, porque Em Busca do Tempo Perdido consiste, em última análise, de reflexões sobre sua vida. Mas voltemos à página 80: “É um romance muito complicado pela sintaxe tão própria e complexa de Proust, a ausência de pontos em passagens longuíssimas nas quais vai unindo ideias diferentes e é fácil se perder. Mas quando você passa o episódio do bolinho, o cérebro se acostuma com a forma de escrever dele, e está pronto para o resto que, se você entender, acaba devorando”, diz Lazcaray. O caso dela não é normal. Poucos podem dizer que leram os sete volumes (“é um dos espinhos que tenho cravado”, diz Manuel Astur), e muito menos duas vezes, como a filóloga: “A primeira por prazer, quando tinha começado a universidade; a segunda, porque foi meu projeto de final de carreira. E descobri muitos detalhes novos. Recomendo”. Quem estiver disposto a imitá-la, deve dedicar uns meses a mais. Ou melhor um ano.
4. 2666, de Roberto Bolaño
Muitos dos consultados atribuem ao tamanho a dificuldade de acabar esse romance. Não é de surpreender, o genialmente obscuro autor chileno planejou que seriam cinco livros separados publicados depois de sua morte em 2003, como legado econômico aos seus descendentes. Seus filhos, no entanto, deixaram de lado a intenção econômica e preferiram transformá-los em um único grande romance. O resultado são mais de mil páginas com a pena ágil e turva de Bolaño percorrendo o que acontece na cidade imaginária de Santa Teresa, espelho da violenta Ciudad Juárez do México.
Há outro fator, no entanto, que o torna um encalhe mais ou menos na metade do livro. Conta a filóloga Josefina Lazcaray, uma voz autorizada pela devoção que sente pelo autor: “Me deprime. Bolaño tem uma escrita espetacular, mas nessa parte descreve um após o outro os assassinatos de mulheres, durante páginas e páginas que vão de entediante a angustiante sem interrupção. É como chegar a um terreno enlameado de horrores, que me impede de continuar com o que vem depois”.
5. Os Cantos, de Ezra Pound
É um poema longo, muito longo, ainda mais pelo tempo que levou para ser escrito, do que por sua extensão. Quase meio século, de 1915 a 1962, o poeta norte-americano Ezra Pound demorou para terminar seus 116 cantos. São considerados pela crítica uma das obras mais importantes da poesia modernista do século XX, ao mesmo tempo, uma das mais complexas. Por suas quase mil páginas circulam muitas ideias atropeladas que pulam de uma para outra de forma abrupta, nas quais aparecem sua admiração por Confúcio, seu antissemitismo, sua afinidade com o regime de Mussolini, referências geográficas que cruzam Europa, Ásia, Estados Unidos e África, cambalhotas temporais e vários idiomas, incluindo caracteres chineses.
O poeta e tradutor cubano José Kozer dá orientações para não ceder: “Leia em inglês. O inglês dos poemas de Ezra Pound é fácil de ler. A dificuldade em seus poemas é o grego, latim, chinês, japonês, italiano do Renascimento, imitações do inglês popular ou da pronúncia do inglês oral, por exemplo, de um falante alemão. Menos difícil de ler é seu francês, italiano e alemão modernos, ou seu deficiente espanhol, tão ruim como o de Hemingway”. E admite: “Ler Pound é entrar em um conjunto interminável de retalhos muitas vezes inacessível. Uma poesia que nos envolve na dificuldade às vezes ígnea, às vezes entediante do mundo que herdamos e ao qual damos, em grande medida, as costas por desídia”.
6. Cristo versus Arizona, de Camilo José Cela
O Prêmio Nobel Camilo José Cela foi outro alérgico aos pontos, pelo menos neste western experimental em primeira pessoa: só tem um, o ponto final. Somos introduzidos no Oeste selvagem para realizar, de soslaio, o famoso duelo que enfrentou os Earp com os Clanton e os Frank, em outubro de 1881, no O.K. Corral. Tudo é desculpa para concatenar pequenos relatos sem rumo definido.
Os poucos que conseguem chegar à página 238, onde está o tão esperado ponto ganham, isso sim, uma radiografia precisa de uma sociedade marcada pela violência e o sexo, descrita com esse verniz de humor e falta de preconceito que, irrefutavelmente, é Cela em estado puro.
7. Finnegans Wake, de James Joyce
De James Joyce podíamos ter escolhido Ulysses, mas pareceu demasiado óbvio. Quando o leitor se queixa do esforço necessário para ler Finnegans Wake (1939), tenha em mente o que custou ao autor escrever esse romance, durante quase duas décadas. O intrigante é que começou logo depois de completar seu monumental Ulysses (1922), obra que, em suas próprias palavras, o deixara “esgotado”. É claro que o escritor irlandês tirou forças de algum lugar, porque Finnegans Wake tem 628 páginas, para as quais teve que se desfazer de quase 15.000.
Usou uma linguagem inventada, misturando unidades léxicas do inglês com neologismos, e o encheu de trocadilhos que fazem com que seja realmente difícil compreendê-lo. A estrutura ajuda pouco: não é linear, mas, como ele chamou, “esférica” onde tudo que é contado sobre a família Earwicker e seu ambiente é ao mesmo tempo o início e o fim da história. Os poucos que conseguiram terminá-lo (e entender), como o escritor Anthony Burgess, afirmam que “morreram de rir em cada página”. Parabéns, senhor Burgess.
Fonte: El País