Sonetos de William Shakespeare (edição bilíngue)
“Ser ou não ser” – Hamlet, Ato 3 Cena 1
Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.
.
“To be or not to be”: Spoken by Hamlet, Act 3 Scene 1
To be, or not to be: that is the question:
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, ’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscover’d country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.–Soft you now!
The fair Ophelia! Nymph, in thy orisons
Be all my sins remember’d.
– Shakespeare [tradução Machado de Assis], em “Poesias Ocidentais”/Obra Completa, Machado de Assis, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. publicado originalmente em Poesias Completas: Machado de Assis., Rio de Janeiro: Garnier, 1901.
§
Soneto I
Dos raros, desejamos descendência,
Que assim não finde a rosa da beleza,
E morto o mais maduro, sua essência
Fique no herdeiro, por inteiro acesa.
Mas tu, que só ao teu olhar te alias,
Em flama própria ao fogo te consomes
Criando a fome onde fartura havia,
Rival perverso de teu próprio nome.
Tu que és do mundo o mais fino ornamento
E a primavera vens anunciar,
Enterras em botão teus suprimentos:
– Doce avareza, estróina em se poupar.
Doa-te ao mundo ou come com fartura
O que lhe deves, tu e a sepultura
.
Sonnet I
From fairest creatures we desire increase,
That thereby beauty’s rose might never die,
But as the riper should by time decease,
His tender heir might bear his memory:
But thou contracted to thine own bright eyes,
Feed’st thy light’s flame with self-substantial fuel,
Making a famine where abundance lies,
Thy self thy foe, to thy sweet self too cruel:
Thou that art now the world’s fresh ornament,
And only herald to the gaudy spring,
Within thine own bud buriest thy content,
And tender churl mak’st waste in niggarding:
Pity the world, or else this glutton be,
To eat the world’s due, by the grave and thee.
– William Shakespeare. Sonetos. [tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
§
Soneto 12
Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpora assedia;
Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;
Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.
Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.
.
Sonnet XII
When I do count the clock that tells the time,
And see the brave day sunk in hideous night;
When I behold the violet past prime,
And sable curls, all silvered o’er with white;
When lofty trees I see barren of leaves,
Which erst from heat did canopy the herd,
And summer’s green all girded up in sheaves,
Borne on the bier with white and bristly beard,
Then of thy beauty do I question make,
That thou among the wastes of time must go,
Since sweets and beauties do themselves forsake
And die as fast as they see others grow;
And nothing ‘gainst Time’s scythe can make
[defence
Save breed, to brave him when he takes thee
[hence.
– William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
§
Soneto XV
Quando penso que tudo o quanto cresce
Só prende a perfeição por um momento,
Que neste palco é sombra o que aparece
Velado pelo olhar do firmamento;
Que os homens, como as plantas que germinam,
Do céu têm o que os freie e o que os ajude;
Crescem pujantes e, depois, declinam,
Lembrando apenas sua plenitude.
Então a idéia dessa instável sina
Mais rica ainda te faz ao meu olhar;
Vendo o tempo, em debate com a ruína,
Teu jovem dia em noite transmutar.
Por teu amor com o tempo, então, guerreio,
E o que ele toma, a ti eu presenteio.
.
Sonnet XV
When I consider every thing that grows
Holds in perfection but a little moment.
That this huge stage presenteth nought but shows
Whereon the stars in secret influence comment.
When I perceive that men as plants increase,
Cheered and checked even by the self-same sky:
Vaunt in their youthful sap, at height decrease,
And wear their brave state out of memory.
Then the conceit of this inconstant stay,
Sets you most rich in youth before my sight,
Where wasteful time debateth with decay
To change your day of youth to sullied night,
And all in war with Time for love of you,
As he takes from you, I engraft you new.
– Shakespeare, em “Poemas de amor de William Shakespeare”. [tradução Barbara Heliodora]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
§
Soneto XVIII
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na eterna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.
.
Sonnet XVIII
Shall I compare thee to a summer’s day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer’s lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm’d,
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature’s changing course
[ untrimm’d:
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou ow’st,
Nor shall death brag thou wander’st in his shade,
When in eternal lines to time thou grow’st,
So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.
– Shakespeare, em “Poemas de amor de William Shakespeare”. [tradução Barbara Heliodora]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
§
Soneto 18
Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.
Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
Enquanto houver viventes nesta lida,
Há-de viver meu verso e te dar vida.
.
Sonnet XVIII
Shall I compare thee to a summer’s day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer’s lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm’d,
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature’s changing course
[ untrimm’d:
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou ow’st,
Nor shall death brag thou wander’st in his shade,
When in eternal lines to time thou grow’st,
So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.
– William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
§
Soneto XXIII
Como no palco o ator que é imperfeito
Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,
Em mim, por timidez, fica omitido
O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.
Seja meu livro então minha eloquência,
Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa
Mais que a língua que mais o tenha feito.
Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o fado.
.
Sonnet XXIII
As an unperfect actor on the stage,
Who with his fear is put beside his part,
Or some fierce thing replete with too much rage,
Whose strength’s abundance weakens his own heart;
So I for fear of trust, forget to say,
The perfect ceremony of love’s rite,
And in mine own love’s strength seem to decay,
O’ercharged with burthen of mine own love’s might:
O let my looks be then the eloquence,
And dumb presagers of my speaking breast,
Who plead for love, and look for recompense,
More than that tongue that more hath more expressed.
O learn to read what silent love hath writ,
To hear with eyes belongs to love’s fine wit.
– Shakespeare, em “Poemas de amor de William Shakespeare”. [tradução Barbara Heliodora]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
§
Soneto XXVII
Exausto com o trabalho corro ao leito,
Repouso de meus membros tão cansados;
Mas corre a mente agora o curso feito,
Estando o labor do corpo terminado.
Lá de onde eu moro, agora, o pensamento
Parte qual peregrino a ti buscando
E mantém meu olhar alerta e atento
Pra escuridão que o cego vê, olhando;
Em fantasia minha alma cegada
À vista sem visão teu vulto traz,
Que, gema em noite terrível mostrada,
Faz linda a noite e seu rosto refaz.
E assim, ao dia o corpo, à noite a mente
Por ti e por mim mesmo paz não sente.
.
Sonnet XXVII
Weary with toil, I haste me to my bed,
The dear respose for limbs with travel tired,
But then begins a journey in my head
To work my mind, when body’s work’s expired.
For then my thoughts (from far where I abide)
Intend a zealous pilgrimage to thee,
And keep my drooping eyelids open wide,
Looking on darkness which the blind do see.
Save that my soul’s imaginary sight
Presents thy shadow to my sightless view,
Which like a jewel (hung in ghastly night)
Makes black night beauteous, and her old face new.
Lo thus by day my limbs, by night my mind,
For thee, and for my self, no quiet find.
– Shakespeare, em “Poemas de amor de William Shakespeare”. [tradução Barbara Heliodora]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
§
Soneto 28
Posso voltar à leda condição
sem ter descanso ao menos que me anime?
O dia oprime e vir a noite é vão,
a noite ao dia, o dia à noite oprime,
reinos adversos que em consentimento
se dão as mãos a torturar-me-me e basta,
um por fadiga, o outro por lamento
de mais penar que mais de ti me afasta.
Que és claro digo ao dia a ver se agrado,
que lhe dás graça indo as nuvens altas,
e à noite lisonjeio o turvo estado,
que a não haver estrelas tu a esmaltas.
Longas penas diárias traz-me o dia,
maior pena noturna a noite cria.
.
Sonnet 28
How can I then return in happy plight
That am debarred the benefit of rest?
When day’s oppression is not eased by night,
But day by night and night by day oppressed.
And each (though enemies to either’s reign)
Do in consent shake hands to torture me,
The one by toil, the other to complain
How far I toil, still farther off from thee.
I tell the day to please him thou art bright,
And dost him grace when clouds do blot the heaven:
So flatter I the swart-complexioned night,
When sparkling stars twire not thou gild’st the even.
But day doth daily draw my sorrows longer,
And night doth nightly make grief’s length seem stronger
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Soneto 29
De mal com os humanos e a Fortuna,
choro sozinho o meu banido estado.
Meu vão clamor o céu surdo importuna
e olhando para mim maldigo o fado.
A querer ser mais rico em esperança,
como outros ter amigos e talento,
invejando arte de um, doutro a pujança,
do que mais gosto menos me contento.
Se assim medito e quase me abomino,
penso feliz em ti e meus pesares
(qual cotovia em vôo matutino
deixando a terra) então cantam nos ares.
Tão rico me é teu doce amor lembrado,
que nem com reis trocava meu estado.
.
Sonnet 29
When in disgrace with Fortune and men’s eyes,
I all alone beweep my outcast state,
And trouble deaf heaven with my bootless cries,
And look upon my self and curse my fate,
Wishing me like to one more rich in hope,
Featured like him, like him with friends possessed,
Desiring this man’s art, and that man’s scope,
With what I most enjoy contented least,
Yet in these thoughts my self almost despising,
Haply I think on thee, and then my state,
(Like to the lark at break of day arising
From sullen earth) sings hymns at heaven’s gate,
For thy sweet love remembered such wealth brings,
That then I scorn to change my state with kings.
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Soneto 56
Renova a força, amor, e não se diga
que tens mais rombo fio que apetite
que a fome por um dia só mitiga
e seu gume amanhã de novo excite.
Se assim, amor, embora hoje alimentes
o olhar faminto até que pisca cheio,
volta a ver amanhã e não violentes
o espírito de amor com longo enleio.
Seja esta triste pausa qual oceano
a terra dividindo e onde um par
vem cada dia à praia e vendo ufano
que volta amor, bendiz o que avistar.
Ou chama a isso inverno que ansioso
torna o verão três vezes mais precioso.
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Sonnet 56
Sweet love renew thy force, be it not said
Thy edge should blunter be than appetite,
Which but to-day by feeding is allayed,
To-morrow sharpened in his former might.
So love be thou, although to-day thou fill
Thy hungry eyes, even till they wink with fulness,
To-morrow see again, and do not kill
The spirit of love, with a perpetual dulness:
Let this sad interim like the ocean be
Which parts the shore, where two contracted new,
Come daily to the banks, that when they see:
Return of love, more blest may be the view.
Or call it winter, which being full of care,
Makes summer’s welcome, thrice more wished, more rare.
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Soneto 57
Sendo-te escravo, que farei senão
cuidar-te a tempo e horas do desejo?
Não tenho ao tempo cara ocupação,
Nem, sem que o peças, de servir ensejo.
E não censuro a hora sem ter fim
Em que as horas por ti, senhor, vigio,
Nem penso a atroz ausência, amargo-a sim,
Porque a teu servo deste um adeus frio.
Nem ouso questionar em meu ciúme
Onde possas estar e o que é que fazes:
Um triste escravo nada mais presume
Salvo onde estás, que a sorte a outrem trazes.
Tão louco é amor que quer no teu Will
(haja o que houver) nada pensar de vil.
.
Sonnet 57
Being your slave what should I do but tend,
Upon the hours, and times of your desire?
I have no precious time at all to spend;
Nor services to do till you require.
Nor dare I chide the world-without-end hour,
Whilst I (my sovereign) watch the clock for you,
Nor think the bitterness of absence sour,
When you have bid your servant once adieu.
Nor dare I question with my jealous thought,
Where you may be, or your affairs suppose,
But like a sad slave stay and think of nought
Save where you are, how happy you make those.
So true a fool is love, that in your will,
(Though you do any thing) he thinks no ill.
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Soneto 65
Se ao bronze, à pedra, ao solo, ao mar ingente,
Lhes vem a Morte o seu poder impor,
Como a beleza lhe faria frente
Se não possui mais forças que uma flor?
Com um hálito de mel pode o verão
Vencer o assédio pertinaz dos dias,
Quando infensas ao Tempo nem serão
As portas de aço e as ínvias penedias?
Atroz meditação! como esconder
Da arca do Tempo a jóia preferida?
Que mão lhe pode os ágeis pés deter?
Quem não lhe sofre o espólio nesta vida?
Nada! a não ser que a graça se consinta
De que viva este amor na negra tinta.
.
Sonnet 65
Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless
[ sea,
But sad mortality o’ersways their power,
How with this rage shall beauty hold a plea,
Whose action is no stronger than a flower?
O! how shall summer’s honey breath hold out
Against the wrackful siege of battering days,
When rocks impregnable are not so stout,
Nor gates of steel so strong, but Time decays?
O fearful meditation! where, alack,
Shall Time’s best jewel from Time’s chest lie hid?
Or what strong hand can hold his swift foot
[ back?
Or who his spoil of beauty can forbid?
O! none, unless this miracle have might,
That in black ink my love may still shine bright.
– William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
§
Soneto 71
Não chores mais por mim quando eu morrer
do que ouças sino lúgubre que diz
aviso ao mundo de que eu fui viver,
ido do mundo vil, com vermes vis.
Nem o ler deste verso te recorde
a mão que o escreveu, pois te amo tanto,
que em teu doce pensar eu não acorde
se o pensar em mim te causar pranto.
Ou se (digo eu) olhares esta linha,
quando eu já for (talvez) lama abatida,
não repitas o nome que eu já tinha
e caia o teu amor com a minha vida.
Se não o mundo ao ver-te em luto pôr
há-de troçar de ti quando eu me for.
.
Sonnet 71
No longer mourn for me when I am dead,
Than you shall hear the surly sullen bell
Give warning to the world that I am fled
From this vile world with vilest worms to dwell:
Nay if you read this line, remember not,
The hand that writ it, for I love you so,
That I in your sweet thoughts would be forgot,
If thinking on me then should make you woe.
O if (I say) you look upon this verse,
When I (perhaps) compounded am with clay,
Do not so much as my poor name rehearse;
But let your love even with my life decay.
Lest the wise world should look into your moan,
And mock you with me after I am gone.
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Soneto 76
Por que meu verso é sempre tão carente
De mutações e variação de temas?
Por que não olho as coisas do presente
Atrás de outras receitas e sistemas?
Por que só escrevo essa monotonia
Tão incapaz de produzir inventos
Que cada verso quase denuncia
Meu nome e seu lugar de nascimento?
Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito
E sobre o amor, são meus únicos temas.
E assim vou refazendo o que foi feito,
Reinventando as palavras do poema.
Como o sol, novo e velho a cada dia,
O meu amor rediz o que dizia.
.
Sonnet 76
Why is my verse so barren of new pride,
So far from variation or quick change?
Why with the time do I not glance aside
To new-found methods, and to compounds strange?
Why write I still all one, ever the same,
And keep invention in a noted weed,
That every word doth almost tell my name,
Showing their birth, and where they did proceed?
O know sweet love I always write of you,
And you and love are still my argument;
So all my best is dressing old words new,
Spending again what is already spent:
For as the sun is daily new and old,
So is my love still telling what is told.
– William Shakespeare, em “O discurso do amor rasgado. Poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare”. [tradução e organização Geraldo Carneiro]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
§
Soneto 91
Uns se orgulham do berço, ou do talento;
Outros da força física, ou dos bens;
Alguns da feia moda do momento;
Outros dos cães de caça, ou palafréns.
Cada gosto um prazer traz na acolhida,
Uma alegria de virtudes plenas;
Tais minúcias não são minha medida.
Supero a todos com uma só apenas.
Mais do que o berço o teu amor me é caro,
Mais rico que a fortuna, e a moda em uso,
Mais me apraz que os corcéis, ou cães de faro,
E tendo-te, do orgulho humano abuso.
O infortúnio seria apenas este:
Tirar de mim o bem que tu me deste.
.
Sonnet XCI
Some glory in their birth, some in their skill,
Some in their wealth, some in their body’s force,
Some in their garments though new-fangled ill;
Some in their hawks and hounds, some in their
[ horse;
And every humour hath his adjunct pleasure,
Wherein it finds a joy above the rest:
But these particulars are not my measure,
All these I better in one general best.
Thy love is better than high birth to me,
Richer than wealth, prouder than garments’ cost,
Of more delight than hawks and horses be;
And having thee, of all men’s pride I boast:
Wretched in this alone, that thou mayst take
All this away, and me most wretched make.
– William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
§
Soneto 129
Gasto do espírito, em perda e vergonha,
A lascívia em ação; e até à ação
Ela é falsa, é culpada e a medonha
Selvagem assassina é traição;
Lenta em fruir-se, mas logo esquecida,
É caça além do siso, relutante,
Mas cansa além do siso, isca engolida
Que ao que fisgou enlouquecera antes.
Tanto no perseguir e em ter pegado,
Coisa tida e havida irrefreável.
Prazer provado e logo reprovado,
Promessa anterior – já sonho instável.
O mundo o sabe – e não foge ao eterno
Céu que os homens dirige a este inferno.
.
Sonnet CXXIX
The expense of spirit in a waste of shame
Is lust in action; and till action, lust
Is perjured, murderous, bloody, full of blame,
Savage, extreme, rude, cruel, not to trust;
Enjoyed no sooner but despised straight,
Past reason hunted, and no sooner had
Past reason hated, as a swallowed bait
On purpose laid to make the taker mad,
Mad in pursuit and in possession so,
Had, having, and in quest to have, extreme;
A bliss in proof, and proved, a very woe,
Before, a joy proposed, behind, a dream.
All this the world well knows, yet none knows well
To shun the heaven that leads men to this hell.
– William Shakespeare. Sonetos. [tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
§
Soneto 138
Quando jura ser feita de verdades,
Em minha amada creio, e sei que mente,
E passo assim por moço inexperiente,
Não versado em mundanas falsidades.
Mas crendo em vão que ela me crê mais jovem
Pois sabe bem que o tempo meu já míngua,
Simplesmente acredito em falsa língua:
E a patente verdade os dois removem.
Por que razão infiel não se diz ela?
Por que razão também escondo a idade?
Oh, lei do amor fingir sinceridade
E amante idoso os anos não revela.
Por isso eu minto, e ela em falso jura,
E sentimos lisonja na impostura.
.
Sonnet CXXXVIII
When my love swears that she is made of truth,
I do believe her though I know she lies,
That she might think me some untutor’d youth,
Unlearned in the world’s false subtleties.
Thus vainly thinking that she thinks me young,
Although she knows my days are past the best,
Simply I credit her false-speaking tongue:
On both sides thus is simple truth supprest:
But wherefore says she not she is unjust?
And wherefore say not I that I am old?
O! love’s best habit is in seeming trust,
And age in love, loves not to have years told:
Therefore I lie with her, and she with me,
And in our faults by lies we flatter’d be.
– William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
§
Soneto 150
De que poder tens força tão temível,
que o coração em falha me desvia,
que me faz dar mentira no visível,
jurar que a luz não favorece o dia?
De onde tens tal fazer, de mal, agrado,
que até o refugo dos teus actos vem
em força e garantia tão dotado
que o teu pior, em mim, é sumo bem?
Quem te ensinou a pôr-me a amar-te mais,
se causa de ódio mais escuto e vejo?
Se eu amo o que detestam outros tais,
não deves detestar-me em tal cotejo.
Se na baixeza meu amor levantas,
mais valho de que tu me ames às tantas.
.
Sonnet 150
O from what power hast thou this powerful might,
With insufficiency my heart to sway,
To make me give the lie to my true sight,
And swear that brightness doth not grace the day?
Whence hast thou this becoming of things ill,
That in the very refuse of thy deeds,
There is such strength and warrantise of skill,
That in my mind thy worst all best exceeds?
Who taught thee how to make me love thee more,
The more I hear and see just cause of hate?
O though I love what others do abhor,
With others thou shouldst not abhor my state.
If thy unworthiness raised love in me,
More worthy I to be beloved of thee.
– Shakespeare, em “Os sonetos completos de William Shakespeare”. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilíngue. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005.
§
Hamlet, ato III, cena 1 (*)
Ser ou não ser, essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer, dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne – é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer – dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podia procurar repouso
Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte –
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou – não nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar co’o mal que temos
Em vez de voar para esse, que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação. Silêncio agora!
A bela Ofélia! Ninfa, em tuas preces
Recorda os meus pecados.
– Shakespeare [tradução Barbara Heliodora]. em “Por que ler Shakespeare, de Barbara Heliodora. Coleção por que ler. São Paulo: Globo, 2008.
(*) ver versão original no início desta página, junto a tradução de Machado de Assis.
§
William Shakespeare, nasceu em Stratford-upon-Avon, Inglaterra, em (23 de abril de 1565?), filho de John Shakespeare e Mary Arden. John Shakespeare era um rico comerciante, além de ter ocupado vários cargos da administração da cidade. Mary Arden era oriunda de uma família cultivada. Pouco se sabe da infância e da juventude de Shakespeare, mas imagina-se que tenha freqüentado a escola primária King Edward VI, onde teria aprendido latim e literatura. Em dezembro de 1582, Shakespeare casou-se com Ann Hathaway, filha de um fazendeiro das redondezas. Tiveram três filhos.
A partir de 1552, os dados biográficos são mais abundantes. Em março, estreou no Rose Theatre de Londres uma peça chamada Harry the Sixth, de muito sucesso, que foi provavelmente a primeira parte de Henry VI. Em 1593, Shakespeare publicou seu poema Venus and Adonis e, no ano seguinte, o poema The Rape of Lucrece. Acredita-se que, nessa época, Shakespeare já era um dramaturgo (e um ator, já que os dramaturgos na sua maior parte também participavam da encenação de suas peças) de sucesso. Em 1594, após um período de poucas encenações em Londres, devido à peste, Shakespeare juntou-se à trupe de Lord Chamberlain. Os dois mais célebres dramaturgos do período, Christopher Marlowe (1564-1593) e Thomas Kyd (1558-1594), respectivamente autores de Tamburlaine, the Jew of Malta (Tamburlaine, o judeu de Malta) e Spanish Tragedy (Tragédia espanhola), morreram por esta época, e Shakespeare encontrava-se pela primeira vez sem rival.
Os teatros de madeira elisabetanos eram construções simples, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a platéia, de pé. Ao fundo, havia duas portas, pelas quais atores entravam e saíam. Acima, uma sacada, que era usada quando tornava-se necessário mostrar uma cena que se passasse em uma ambientação secundária. Não havia cenário, o que abria toda uma gama de versáteis possibilidades, já que, sem cortina, a peça começava quando entrava o primeiro ator e terminava à saída do último, e simples objetos e peças de vestuário desempenhavam importantes funções para localizar a história. As ações se passavam muito rápido. Devido à proximidade com o público, trejeitos e expressões dos atores (todos homens) podiam ser facilmente apreciados. As companhias teatrais eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativas: todos recebiam participações nos lucros. Escrevia-se, portanto, tendo em mente cada integrante da companhia.
Em 1594, Shakespeare já havia escrito as três partes de Henry VI, Richard III, Titus Andronicus, The Two Gentleman of Verona (Dois cavalheiros de Verona), Love’s Labour’s Lost (Trabalhos de amor perdidos), The Comedy of Errors (A comédia dos erros) e The Taming of the Shrew (A megera domada). Em 1596, morreu o único filho homem de Shakespeare, Hamnet. Logo em seguida, ele escreveu a primeira das suas peças mais famosas, Romeo and Juliet, à qual seguiram-se A Midsummer’s Night Dream (Sonho de uma noite de verão), Richard II e The Merchant of Venice (O mercador de Veneza). Henry IV, na qual aparece Falstaff, seu mais famoso personagem cômico, foi escrita entre 1597-1598. No Natal de 1598, a companhia construiu uma nova casa de espetáculos na margem sul do Tâmisa. Os custos foram divididos pelos diretores da companhia, entre os quais Shakespeare, que deveria ter já alguma fortuna. Nascia o Globe Theatre. Também é de 1598 o reconhecimento de Shakespeare como o mais importante dramaturgo de língua inglesa: suas peças, além de atraírem milhares de espectadores para os teatros de madeira, eram impressas e vendidas sob a forma de livro – às vezes até mesmo pirateados. Seguiram-se Henry V, As You Like It (Como gostais), Jules César – a primeira das suas tragédias da maturidade –, Troilus and Cressida, The Merry Wives of Windsor (As alegres matronas de Windsor), Hamlet e Twelfth Night (Noite de Reis). Shakespeare escreveu a maior parte dos papéis principais de suas tragédias para Richard Burbage, sócio e ator, que primeiro se destacou com Richard III.
Em março de 1603, morreu a rainha Elizabeth. A companhia havia encenado diversas peças para ela, mas seu sucessor, o rei James, contratou-a em caráter permanente, e ela tornou-se conhecida como King’s Men – Homens do Rei. Eles encenaram diversas vezes na corte e prosperaram financeiramente. Seguiram-se All’s Well that Ends Well (Bem está o que bem acaba) e Measure for Measure (Medida por medida), suas comédias mais sombrias, Othello, Macbeth, King Lear, Anthony and Cleopatra e Coriolanus. A partir de 1601 Shakespeare escreveu menos. Em 1608, a King’s Men comprou uma segunda casa de espetáculos, um teatro privado e fechado em Blackfriars. Nesses teatros privados, as peças eram encenadas em ambientes fechados, o ingresso custava mais do que nas casas públicas de espetáculos, e o público, conseqüentemente, era mais seleto. Parece ter sido nessa época que Shakespeare aposentou-se dos palcos: seu nome não aparece nas listas de atores a partir de 1607. Voltou a viver em Stratford, onde era considerado um dos mais ilustres cidadãos. Escreveu então quatro tragicomédias, subgênero que começava a ganhar espaço: Péricles, Cymbeline, The Winter’s Tale (Conto de inverno) e The Tempest (A tempestade), sendo que esta última foi encenada na corte em 1611. Shakespeare morreu em Stratford em 23 de abril de 1616. Foi enterrado na parte da igreja reservada ao clero. Escreveu ao todo 38 peças, 154 sonetos e uma variedade de outros poemas. Suas peças destacam-se pela grandeza poética da linguagem, pela profundidade filosófica e pela complexa caracterização dos personagens. É considerado unanimemente um dos mais importantes autores de todos os tempos.
Fonte: L&PM Editores (acessado em 5.8.2016)
:: 50 Sonetos de Shakespeare. [tradução Vasco Graça Moura]. Porto: Editorial Inova, 1978; 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, s/d?.
:: William Shakespeare. Sonetos. [tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
:: Poemas de amor de William Shakespeare. (sonetos 15, 18, 23, 27, 28, 29, 30, 59, 65, 71, 73, 91, 92, 107, 116, 130, 137, 138 e 148).. [tradução Barbara Heliodora]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
:: Os sonetos completos – William Shakespeare. [tradução e notas Vasco Graça Moura]. Edição bilingüe. 1ª ed., São Paulo: Editora Landmark, 2005; 2ª ed., 2014.
:: William Shakespeare: 42 Sonetos. [tradução e apresentação de Ivo Barroso]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
:: William Shakespeare. Sonetos. [tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos]. São Paulo: Hedra, 2008.
:: O discurso do amor rasgado. Poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare. [tradução e organização Geraldo Carneiro]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
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