– Paulo Baía*
Resumo: Este artigo discute as questões da violência, do individualismo, da solidão, da perversidade, e como estas ideias, no mundo contemporâneo, produzem práticas políticas e sociais conflituosas e desestruturadoras das sociabilidades tradicionais fundadas na ética do trabalho e do Estado clássico liberal ou social-democrata.
Palavras-chave: Violência, individualismo, perversidade, sociabilidade.
Abstract: This article discusses issues of violence, individualism, solitude, perversity, and how these ideas act on the contemporary world, producing conflicting political and social practices, breaking the traditional sociabilities based on the ethics of work and liberal or social-democratic Classic State.
Key-words: Violence, individualism, perversity, sociability.
Formular uma teoria geral para a humanidade é um projeto intelectual constituinte da própria sociologia. Entre nossos exercícios mais consistentes podemos incluir a ousadia de se pronunciar sobre o porvir, pensando com a história (Schorske, 2000), ouvindo a voz do passado a partir do presente.
Como sociólogo, tenho na história uma fonte inesgotável de riquezas, um tesouro político, cultural e educacional. E é da experiência concreta da história, que se podem extrair lições para enfrentar o futuro envelhecido precocemente do século XXI.
De fato, valemo-nos de premissas culturais e ideológicas para elaborar quase que uma metateoria sobre o que virá, e normalmente traçamos roteiros de possibilidades presumidas. E é nas perspectivas teóricas e políticas dos erros cometidos no passado recente que observo apreensivo a euforia das análises prospectivas que apontam, com garantia e certa petulância, a formulação de que o século XXI alcançará uma plataforma política de compreensão, de civilidade e uma multidiversidade salutar e includente. Estas análises tendem a nos fazer acreditar que os avanços científicos e tecnológicos mundializados serão o fundamento de uma sociabilidade na qual o respeito às diferenças será a principal evidência, produzindo assim um cenário social onde as diferenças serão simétricas, ou seja, haverá igualdade na diversidade. Este é um sonho acalentado pelo humanismo desde o século XVII.
O futuro, o século XXI, consolida-se com muita rapidez, em um campo minado de múltiplas possibilidades tecnológicas, científicas, políticas e culturais, todas fundamentadas na intolerância ao “outro”. Na crença unicista de que é o indivíduo o agente central e único de sua própria transformação. E não falo aqui de um indivíduo Weberiano, que é coletivo e solidário.
A tradição das práticas políticas brasileiras, baseadas na clientela (Faoro, 1979), é geradora de dispersões e alicerça a edificação de um imaginário social mistificado, um espetáculo bufo, nebuloso e de enredo indefinido para os atores sociais (Goffman, 1985) que o vivem nas duas pontas da relação.
Diante de um cotidiano dominado pelo ócio, uma nova hierarquia de valores societais começa a ser produzida; e a violência é a principal delas. Chegando a tal nível, que parece estabelecer-se como um novo centro ético de comportamento; assim já o é em vários territórios das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Falar sobre o futuro tornou-se um hábito anacrônico, cuja racionalidade a médio prazo é o medo, diante do poder crescente da lúmpen-elite sobre o Estado e sobre a sociedade e do monopólio dos especialistas do MERCADO financeiro mundializado, que com seus Phds em Harvard e Yale e suas agências de análises de riscos, pitonisam os indicadores de riscos para cada sociedade e nação, com critérios duvidosos e especulativos (Silveira, 1998).
Há um esgotamento no estoque de ideias criativas e construtivas, tanto do Estado como da sociedade (Cerqueira Filho, 1982). No momento, vence e se impõe um individualismo narcísico e solitário, que acarreta a dissolução das redes tradicionais de sociabilidade, abrindo possibilidades políticas e históricas para um rearranjo das redes sociais e civilidade, hoje coagidas e/ou seduzidas pelas violências e corrupções como valores éticos de convivência cotidiana (Hirschman, 1992).
A crise da segurança pública reflete a crise da cultura política brasileira, revelando o desespero que se generalizou e se difundiu na população, pela falta de esperança, que era produzida pela ética do trabalho. As pessoas foram dominadas pelo ceticismo das largas diferenças, consolidadas pelas exclusões históricas, e pela ausência de perspectivas de melhora para o futuro.
A ideia de trabalho, ao deixar de ser o fundamento da sociedade, e, portanto, valor ético e eixo de organização dos desejos, vontades e esperanças, desaparecem (Habermas, 1987), favorecendo que a violência, os ilícitos e as corrupções se transformem em uma via política de ascensão social.
O trabalho, ao deixar de ser o fator ético catalisador da organização social, promove um desarranjo nas subjetividades coletivas. Promove a emergência em escala crescente da violência e da religiosidade fundamentalista como formas de reagrupamento simbólico e concreto de indivíduos desesperançados (Alvito, 2001).
O individualismo que configurou a política de formação do Estado moderno tinha nas ideias da posse, da propriedade e do trabalho seus centros de tensão e organização. O individualismo clássico produziu os sentidos, os significados, de duas concepções tradicionais de Estado: o Estado liberal, que regula a ação entre o privado e o público; e um Estado que, sem romper com a tradição liberal, aponta para uma socialização simbólica da propriedade, através de mecanismos mitigadores para os despossuídos e não proprietários.
De qualquer forma, seja qual for à vereda que se percorra, tem-se que os princípios da sociabilidade, do contrato de cidadania, estavam intimamente vinculados à própria formação da ideia do Estado-nação (Bendix, 1996), e reforçaram-se nos pressupostos da revolução americana e da revolução francesa, conferindo legitimidade à propriedade a todo aquele que, de alguma forma, estabelecesse um laço de “pertencimento” a um estatuto jurídico e simbólico com uma comunidade política, com um Estado.
Portanto, aquilo que a princípio parecia separado e distinto configura-se como uma equação de variáveis interdependentes. O Estado, ao estabelecer-se centrado no indivíduo, no individualismo, na posse particularizada, engendrou formas políticas de administrar uma coletividade despossuída, consolidou uma maneira de regular e controlar conflitos daí decorrentes, produzindo uma concepção de Estado mediador e provedor (Bobbio, 2000). O Estado-nação moderno assegurou a propriedade material e simbólica, manipulando e gerindo os conflitos através de mecanismos públicos de distribuição de bens de natureza simbólica e material.
A questão do individualismo do Estado-nação está diretamente ligada a questão da organização política e, portanto, da organização das sociedades, formadas historicamente cada uma de maneira diferente das outras, com suas peculiaridades e características próprias.
O contrato de cidadania estava centrado nessa lógica, o individualismo gerando um Estado que organiza o conflito via distribuição de bens simbólicos e o estímulo à mobilidade social e à esperança de um futuro melhor via trabalho e poupança.
Essa estratégia, bem sucedida do século XIX ao século XX, fortaleceu uma matriz do indivíduo como ator social, portador de um direito natural a toda forma de posse, tradição política liberal herdada de Locke.
Entretanto, a expressão ‘posse’ introduz a questão da propriedade e do conflito daí decorrente, das formas de legitimar socialmente, em cada Estado-nação, a obtenção e manutenção da propriedade (Bendix, 1996). O Estado e as sociedades engendraram as formas políticas de controle social e legitimação política e ideológica para as exclusões e os despossuídos, mantendo a ordem pública e o espírito de pertencimento a uma nacionalidade.
O individualismo coletivizou-se através do Estado de direito, mantenedor das formas particularizadas de propriedade material, simbólica e afetiva, sendo ele, o Estado, tanto liberal como social-democrata, uma materialização de um “EU COLETIVO”, onde havia uma subordinação do privado ao público. Experiência sociopolítica rara na trajetória do Estado-nação brasileira, onde o público e o privado são indistintos historicamente e no tempo presente.
Associo ainda a ideia de que o Estado administra o individualismo coletivizado pela comunidade política, fazendo com que os despossuídos sintam-se confortáveis dentro de suas esferas de atuação no trabalho. E, ainda, a ideia de que o despossuído legitima o exercício da posse através dos mecanismos públicos eficientes de um Estado distributivista, que opera a ética do trabalho como fundamento das esperanças de se ter posse e ser proprietário.
Para os individualismos clássicos, o Estado é o ente fundamental para solucionar e administrar crises sociais, conflitos, gerir os ambientes de mudança, de antagonismos. E ainda, enxergar nos antagonismos a oportunidade criativa de se implantar políticas afirmativas, um Estado mitigador (Boudon, 1979). Um “Estado do equilíbrio instável”, um Estado centrado no desenvolvimento dos bens materiais e coletivos, capaz de identificar e controlar os efeitos perversos de uma ordem social capitalista e excludente, ao menos em tese e na doutrina jurídica.
Como exemplo, o desenvolvimento da indústria do petróleo no Rio de Janeiro gera poluição e má qualidade de vida nos territórios da Baía de Guanabara, encarados com naturalidade como um efeito perverso de um desenvolvimento bom para a humanidade, para o ser humano, e, particularmente, para o Rio de Janeiro, lógica explicitada nas análises de custo-benefício que os governos e a indústria do petróleo produzem.
Portanto, o Estado, como lógica política de intervenção, justifica estas mazelas ao promover ações para mitigar esses efeitos perversos através de uma política pública de controle ambiental e industrial. O Estado é um contraponto administrativo e político para aqueles que têm posse e as utilizam em um contexto de legitimidade social e jurídica.
O Estado que se consolidou ao longo dos séculos XVIII até o século XX materializou um sentimento de responsabilidade coletiva dos que têm posse, procurando mitigar os efeitos perversos de uma ordem social contraditória. Estes eram e são os pressupostos políticos e doutrinários que orientaram a formação dos diversos Estados-nações na modernidade (Bobbio, 2000).
A história do Estado-nação no Brasil parece caminhar na contramão destes pressupostos. Entender o confronto do Estado de direito no Brasil com o individualismo narcísico e solitário passa necessariamente por conhecer como, nos séculos passados, as elites brasileiras apostaram na ideia de que seria melhor construir um Estado gerador de privilégios do que um Estado promotor e defensor da cidadania clássica (Carvalho, 2001), passa necessariamente por desvendar a trama de hostilidades e perversidades que foram cometidas contra a população pobre, particularmente com os escravos africanos e seus descendentes, e por entender como o arcaísmo foi o projeto de futuro para as elites em formação no século XVIII no Brasil (Fragoso & Florentino, 1993).
No Brasil, o individualismo patrimonialista consolidou o desejo e o sentido da posse, arraigado na ideia de controle estatal, marca da tradição histórica do Estado-nação brasileiro, cuja racionalidade e normatização garantem a posse ao indivíduo através de mecanismos institucionais de um Estado excludente (Faoro, 1994). A posse está, hipoteticamente, pela doutrina jurídica, à disposição de qualquer ator social, disponibilidade que se consolida através das esperanças produzidas pela ética do trabalho.
A ordem social contemporânea, do século XXI, configura um mundo que nos parece não ter espessura, em movimento quase que incessante, como que se vivêssemos dentro do rodopiar de um tornado, em que uma força centrífuga nos fragmenta e nos joga de um lado para o outro, e que provoca nos indivíduos, nas sociedades e nos Estados a sensação de possibilidades inúmeras, de estarem dentro de um CONJUNTO EM DISPERSÃO, que, entretanto, tem uma lógica centralizada, apesar das rupturas das representações sociais, da dissolução dos absolutos, da transmutação das redes de pertencimento e suas reconstruções fragmentadas.
O sutil mecanismo centralizador da dispersão configura a principal estratégia política do tempo presente, um experimento em que a fragmentação e a descontinuidade não representam descontinuidades e fragmentações, mas indícios de um projeto unitário e de uma lógica única, comandado por um oligopólio transnacional e privado que tem no G-8 e G20 suas melhores expressões.
Recorro ao modelo estatístico de Paul Lazarfeld de intercambialidade de índices, na lógica algébrica da análise fatorial, para pontuar que as descontinuidades funcionam como VARIÁVEIS DE DISTORÇÃO e as fragmentações como VARIÁVEIS SUPRESSORAS (Babbie, 1999).
Portanto, identificar a tensão dessa lógica, como ela é constituída, é o desafio para que não nos percamos na ideia de um mundo fragmentado, multicultural e atomizado, como alguns teóricos da sociologia, da antropologia, da ciência política, da história e da psicologia contemporânea vêm afirmando. O cenário social contemporâneo se inspira nas pinturas abstratas, surrealistas, são como cenas de um filme, que, embora partidas, têm uma lógica. Esta lógica tem como estratégia de legitimação política o NOVO como imperativo, é a era da permanente atualização, é a configuração de espaços e tempos que volatilizam-se, tempos esses que provocam uma dispersão das redes de sociabilidade e afeto. Uma sucessão coercitiva, quase que “natural” de fragmentos e extinções, a vida como um jogo de pôquer, a vida como uma entropia, a vida como um bungee jumping, em que se joga para um abismo o cotidiano de milhões de pessoas, para tentar construí-lo durante a queda.
A vida social e as identidades opacas foram substituídas em suas tragédias pelo individualismo fóbico de um consumismo lúdico e hedonista.
A ideia e o conceito de cidadania transitam do direito a ter direitos ao de ter capacidade e oportunidade para consumir com rapidez os NOVOS, e sociabilidades sempre reinventadas e/ou transmutadas para serem novas.
Ao iniciar esta reflexão, busquei na ideia do Estado moderno as noções de indivíduo e de individualismo, tendo Max Weber (1982) e Raymond Boudon (1996) como minhas referências para analisar as contradições entre o indivíduo e o coletivo, entre o individual e o social, tendo igualmente o fundamento analítico que a tradição da filosofia política confere ao ser humano e às ações humanas, como sendo dotadas de uma razão prática, que procura viver uma sociabilidade fundada na palavra, na persuasão e no diálogo; portanto, estabelecedora de contratos de convivência. Daí centrar o olhar na história dos contratos de cidadania, valendo-me das teses de Max Weber (1982) e Louis Dumont (1985) sobre os individualismos, a ação social e a liturgia dramática das sociedades (Goffman, 1985). E como parâmetro de comparação, a história da cidadania no Estado-nação brasileiro, a partir da leitura dos livros O arcaísmo como projeto, de João Fragoso e Manolo Florentino (1993), e A cidadania no Brasil: um longo caminho, de José Murilo de Carvalho (2001).
No Brasil do século XXI as classes dominantes capitalistas e burguesas, a cada dia, cedem seus lugares a uma lúmpen-elite endinheirada. Esta nova casta de mandatários foi um produto inesperado do patrimonialismo estatal, sendo gestado cuidadosamente pelos privilégios concentracionistas e racistas das elites tradicionais brasileiras.
A lúmpen-elite, devagar, ocupa a máquina do Estado por suas beiradas e estabelece áreas de controle territorial e de serviços no dia-a-dia da sociedade. Em certos territórios, ela substituiu na “marra” a pequena burguesia comercial e de serviços e o próprio Estado, difundindo com suas práticas ilícitas, violentas, machistas, corruptas e corruptoras uma incerteza social como clima de convivência; é arbitrária, coercitiva e geradora de medo e mortes, produz, com suas práticas, um sentido social anti-civilizador, no qual as regras do Estado, já anacrônicas historicamente, nada valem e as relações interpessoais são atomizadas pelo silêncio necessário à sobrevivência.
O caminho da humanidade no século XXI se assemelha ao percorrido por Dante Alighieri, tendo Virgílio como cicerone, em sua ida ao inferno.
A história do tempo presente está engenheirando uma ação humana que faz um contraponto à razão, à estruturação e ao “regramento”, constatação feita pelo estudo de Denis Rosenfield (1988), ao introduzir o MAL como uma categoria ético-política. De maneira muito criativa, Rosenfield inverte a lógica do contrato de cidadania possível, centrado na ideia das boas intenções do bem comum, do Estado mediador e provedor e da mitigação dos efeitos perversos da ordem social capitalista.
Quero enfatizar que as intolerâncias e machismos obedecem a uma lógica, um processo bem articulado de sociabilidade perversa (Silva, 2004) geradora de pertencimentos e identidades para homens e mulheres.
A ideia de violência e masculinidade articula-se em uma correlação formatadora de redes de relacionamentos, do micro ou macro no tempo presente.
A violência, o consumismo hedonista e o individualismo fóbico masculinizado são relações sociais de poder que estruturam e fundamentam múltiplos grupos de pertencimento e ação social coletiva, constituindo-se em uma subjetivação que legitima comportamentos de indivíduos submetidos a esses grupos. Portanto, a violência e a masculinidade estão presentes como lugares simbólicos e praticas de sentido estruturante nas relações sociais no tempo presente.
A violência, a masculinidade e os individualismos fóbicos não são relações de poder unilateral. São eventos sociais complexos e plurais, imersos em múltiplas interações, com representações coletivas interligadas em redes de sociabilidades nos contextos vividos pelos diversos grupos, em que a violência e a masculinidade são representações polissêmicas de organização social.
Essa reflexão discute a relação entre as violências, solidões, individualismos fóbicos, consumismos hedonistas e as masculinidades a partir das práticas sociais de indivíduos em múltiplos grupos de pertencimento. Através destes eventos, analiso as relações entre estes fenômenos sociais e demonstro como funciona esta rede de construção de intolerâncias e assédios múltiplos, com um ponto de vista ancorado na ideia de Ethos guerreiro de Norbert Elias (1994).
Nesse trabalho, o fenômeno da violência é entendido como uma expressão de subjetividade negada, passível de verificação quando os indivíduos compreendem alguns valores como coletivos e indispensáveis para um grupo ser um grupo. A subjetividade negada é sempre estabelecida na interação com outros indivíduos portadores de ideias coletivas. A violência, por ser construída por uma subjetividade negada, estabelece uma negação da alteridade do outro (Silva, 2004). Nesse sentido, a sociabilidade violenta é um modo de vida.
A negação existente passa a se constituir em uma identidade coletiva construtora de múltiplos grupos de indivíduos como comunidades de pertencimento (Anderson, 2008), que compartilham valores grupais através das violências e solidões dos individualismos fóbicos com outros grupos, que se rivalizam rotineiramente. Nos eventos acima citados nega-se a existência de outros indivíduos e/ou outros grupos. Negam-se os direitos às existências diferenciadas. As identidades são estabelecidas articulando-se através das solidões e violências e de um ethos guerreiro (Elias, 1994) etnocentrado.
As violências e solidões são binômios relacionais complexos que exigem precisões, objetividades e reconhecimentos das subjetividades de cada um dos múltiplos agrupamentos de indivíduos, como se formatam suas categorizações, como classificam o que é violência, individualismo e solidão, pois essas categorias são variáveis dependentes da aceitação tanto dos autores como das coletividades grupais nas quais os indivíduos estão inseridos e os eventos contextualizados.
A intencionalidade subjetiva relaciona-se com os valores que orientam o sentido de conduta do indivíduo. A subjetividade é relacionada à representação coletiva que há dentro de um contexto. Um ato de violência é sempre uma mediação desses binômios em ação, assim como é uma interpretação que quem sofreu a ação violenta dá ao fato.
A interpretação que quem sofreu a ação realiza em torno da agressão se faz de acordo com princípios morais construídos dentro do contexto social em que vive. É desta maneira que um mesmo ato pode ser, em um contexto específico, violento, mas, em outro, compreendido como uma relação social que não afete o cotidiano do indivíduo (Oliveira, 2008).
As intencionalidades do indivíduo e dos grupos podem variar, de acordo com o contexto no qual eles se inserem. Dependem da apreensão coletiva dos indivíduos e/ou grupos sobre o que sejam violência, individualismo e consumo. Atores aprendem essas ideias e valores de acordo com as dinâmicas dos grupos em que estão inseridos. Conclui-se que não há violência e solidão no singular, mas há violências e solidões que precisam considerar os indivíduos em suas ações além do contexto dos grupos nos quais estão inseridos.
As violências, os consumismos e as fobias são compreendidos de maneira ampla, visto que todos esses eventos e atos participam das negações de alteridades de outros grupos como sujeitos constituintes de determinadas e especificas sociabilidades. As violências, os consumismos e as fobias são atos violentos e fóbicos na medida em que negam a um ou mais indivíduos ou grupos as normas estabelecidas pela representação coletiva no contexto de um determinado grupo, que são compartilhadas por todos.
Quando falo em normas, não me refiro às normas legais estatutárias de uma instituição ou do Estado. Estas normas são as dos contextos informais dos múltiplos grupos com o qual os indivíduos interagem. Considero nessa reflexão violências, individualismos fóbicos e consumismos hedonistas e lúdico-narcísicos como alteridade desconsiderada, que não reconhece outros indivíduos ou grupos, a não ser como objetos de consumo descartáveis que serão refugados pelos extermínios e abandonos, como se não fossem sujeitos sociais e humanos. São objetos de consumo e satisfação de desejos voláteis e imediatos, que negam as interações sociais, pois os outros são sempre descartáveis ou perigosos.
As violências, solidões, individualismos fóbicos e consumismos hedonistas são construções sociais dos novos em continuada mutação no tempo presente. No agora. A participação nas interações dos indivíduos é valorada no âmbito exclusivo de suas sociabilidades especificas e autocentradas – em si mesmos ou nos grupos a que pertencem. As sociabilidades são estruturadas a partir de uma finalidade de agregação que desconsidera os comportamentos e valores dos outros sociais. Em termos clássicos, as sociabilidades estavam estritamente ligadas a uma livre participação dos valores sociais (liberdade, convivência, reconhecimento) de um ou mais indivíduos, sendo garantida ao mesmo tempo a mesma liberdade de participação de outros indivíduos e/ou grupos. Desta forma, sociabilidade em Simmel (2006) envolve uma construção, que tem como pressuposto uma ação que leva em consideração o outro.
A sociabilidade para Simmel é uma alteridade. O reconhecimento do outro é um condicionante para a vida social. A sociabilidade das violências, solidões, individualismos fóbicos e consumismos hedonistas são um não reconhecimento das condutas tanto objetiva como subjetiva de outros sujeitos como sujeitos, e sim como objetos para serem usados e refugados. É oposta à sociabilidade de Simmel. As violências, intolerâncias e fobias produzem uma forma de relação social estruturada pela absoluta desconsideração dos outros, uma relação social que descarta o convívio social diferenciado.
As violências, consumismos hedonistas e fobias contemporâneas são relações sociais que organizam grupos específicos como universais.
As violências, o consumismo hedonista e fobias aos outros são novos tipos e arranjos de relações sociais plurais e polissêmicas (Bauman 2005), onde não é possível falar de uma única espécie de violência, o que faz emergir grupos específicos e locais intolerantes, fundamentalistas e fóbicos, que baseiam seus compartilhamentos em normas de comportamentos brutais tantos em ações objetivas como simbólicas, que são consideradas “normais” e definidoras dos grupos específicos. Ao focar em normas interessam-me os significados que os grupos sociais específicos compartilham sobre o que é um ato violento, fóbico e intolerante. Existem variações de comportamentos violentos, narcísicos, fóbicos e consumistas hedonistas conforme os múltiplos grupos constituem-se. Realço a compreensão já feita por Becker sobre as regras normativas de conduta dos grupos:
As violências, solidões, consumismos hedonistas e individualismos fóbicos no tempo presente em nossas cidades têm como princípio estruturador a força. O uso da força é uma relação social que não pressupõe um esvaziamento do Estado em sua norma jurídica de ter o monopólio legítimo da violência. Ao contrário, a compreensão das sociabilidades violentas desvenda um novo princípio ético moral que estrutura a percepção coletiva dos atores sociais envolvidos, para os quais as violências e intolerâncias não são violências e intolerâncias, mas mecanismos sociais “legítimos” de autoproteção via pertencimento a um determinado grupo. Liga-se a uma privatização, individuação e ‘tribalismos urbanos’ (Giddens 1978) das forças violentas objetivas e simbólicas em detrimento dos princípios normativos governamentais e institucionais que ligavam violência ao Estado.
De acordo com Silva:
(…) a transformação da violência, de meio de obtenção de interesse minimizado pela sua concentração como monopólio formal do Estado, no centro de um padrão de sociabilidade em formação que não se confronta com a ordem estatal, mas lhe é contíguo. Creio que é justamente isso que confere especificidade histórica à violência contemporânea nas grandes cidades. (Silva, 2004)
Nessa conjuntura, no tempo presente, há uma fragmentação do Estado, que ainda assim é bastante atuante – ao mesmo tempo e contexto onde agem e atuam grupos e/ou indivíduos que competem e concorrem com suas práticas violentas “privadas” de intolerâncias, fundamentalismos, consumismos hedonistas e descartes humanos ao refugar quem não é considerado igual. Através destas práticas, estes grupos expressam um sentido e significado à sua existência que não podem mais ser dados pelos princípios de reconhecimento do Estado (Baía 2006). Assim, deve-se compreender a ascensão das sociabilidades violentas e das fobias aos outros através de uma estrutura que compacta e forma valores. (Elias, 1994).
A masculinidade nesse contexto analítico está inserida em múltiplos contextos que reproduzem sua condição normativa de existência (Bourdieu 2011). É um conceito que tem uma homologia entre estrutura cognitiva e estrutura objetiva.
A masculinidade é um processo de interação inserido no conceito gênero. Por gênero, entendo um processo de produção social de diferença onde estrutura-se uma percepção oposta entre duas categorias: masculino e feminino, que formam um binômio complementar, onde o masculino se impõe. Nos dizeres de Almeida:
Se masculinidade e feminilidade são, ao nível da gramática dos símbolos, conceitualizadas como simétricas e complementares, na arena do poder são discursadas como assimétricas. (Almeida, 1996)
O ethos do macho homogeneíza o mundo social como masculino através das práticas violentas, perversas e sutis (Almeida 1996). Não se limita à violência física contra as mulheres, é uma violência simbólica totalizadora, violência simbólica coercitiva quando os mesmos princípios de visão e de divisão do mundo, esquemas de pensamento, estrutura cognitiva é imposta pelos dominantes aos dominados, que não têm outra forma de reagirem às suas práticas sociais, a não ser pelo referencial do mundo social criado pelos dominantes. Mesmo quando mulheres rompem barreiras no trabalho e na política, têm suas condutas estigmatizadas a um ethos que as aciona como ‘femininas’ como categoria acusatória.
O masculino insere os atores sociais em um espaço social inerente de desigualdades (Oliveira 2008). As formas como os atores interagem na sociedade são percebidas como expectativas coletivas ajustadas às estruturas concretas em que homens e mulheres estão inseridos.
A dominação do masculino é operada pela reedificação de um masculino universal (Bourdieu 2011). Embora haja variações nas formas de dominação, sempre se reatualizam práticas sociais desiguais entre os gêneros. A lógica da dominação masculina atualiza-se frente às inovações e contextos variados das novas identidades libertárias da mulher.
A masculinidade como processo social, pode ser apreendida por variados métodos, pois existem múltiplas masculinidades de acordo com as sociabilidades inseridas em diferentes contextos (Bauman 2005). A masculinidade implica no poder e privilégio que o indivíduo tem nas hierarquias e fragmentações do social e do Estado.
No contexto específico das sociabilidades violentas, solidões, consumismos hedonistas e individualismos fóbicos a masculinidade forma um paradigma (Anderson 2008) em que os integrantes se reconhecem uns nos outros e, articulando-se através das violências, conseguem estabelecer normas e comportamentos que tendem a uni-los e, concomitantemente, se diferenciar dos outros e de seus estilos de vida.
A masculinidade é o liame normativo constitutivo de identidades (Elias, 1994). Uma masculinidade diferente da que separa o mundo em masculino e feminino, pois se articula através de um ethos guerreiro que impõe a violência como formadora de uma identidade masculina para homens e mulheres.
O racional do ser humano, nos envelhecidos tempos presentes do século XXI, é uma racionalidade falaciosa, na medida em que põem em confronto os valores gerados pelos pensamentos liberal e socialista clássicos, e as formas contemporâneas de violência política, pessoal e simbólica (Bourdieu 2009). A desregulamentação das sociedades em escala mundial engendra formas excludentes e totalitárias de vida social, de um cotidiano em que os indivíduos tornam-se solitários e narcísicos, a partir da utilização maciça do desenvolvimento científico-tecnológico e da precarização e inconstância das relações humanas (Giddens 1978). Cria-se um cenário de “arianismo” técnico-científico, de violências e barbáries.
Chamo a atenção para o fato de que as formas totalitárias não são as tradicionais do totalitarismo do Estado, são privatizadas e individualizadas, ou pela prepotência do mercado ou pela barbárie da violência diária. É um totalitarismo centrado no individual narcísico e solitário, é à vontade absolutizada do indivíduo sobre ele mesmo e sobre os demais. Ou seja, é a soberania absoluta e plena de um EU SOLITÁRIO. (Baía 2006).
Nessa reflexão, ao introduzir o conceito de violência como um projeto individualizado do mal, de uma vontade maligna, tem-se a perversidade como uma categoria ético-política, portanto, um conceito capaz de produzir realidades sociais factíveis. Tendo a perversidade como categoria sociológica analítica, tomo igualmente os conceitos de solidão, consumismos hedonistas, intolerâncias e individualismo narcísico fóbico como ideias que foram recusadas pela maioria dos analistas sociais. Somente a psicanálise cuidou deles, e os analistas sociais, ao recusarem a ideia da existência de uma pulsão maligna, influenciaram de forma decisiva as mais diferentes vertentes do pensamento científico na área de ciências humanas, pois estabeleceram um silêncio sobre as perversidades e a maldades.
Na medida em que as ideias acima foram excluídas das preocupações analíticas, trabalharam-se os conceitos de ordem social e vontade, sendo que a ideia da vontade individual, a ideia da vontade de progresso, é a fonte constitutiva central de uma sociedade racional e administradora das ações humanas voltadas para o bem, que tem na ética do trabalho seu fundamento (Durkheim, 2001). A perversidade, a maldade, o eu narcísico fóbico e o eu auto-realizável eram analisados como acidentes, acasos, acontecimentos aleatórios não pertencentes a um projeto coletivo, de sociedade (Durkheim, 1984).
Ao refletir sobre essas ideias, percebe-se uma configuração social assentada no desregramento como uma proposta, como uma meta a alcançar. O desregramento provoca desregulamentação, promovendo fragmentação e atomização (Elias, 1994). A desregulamentação como projeto final de uma ação específica dos indivíduos narcísicos fóbicos e fundamentalistas, é antiética e tudo pode por se absolutista. A partir de seu absolutismo individual hedonista, tende a controlar os mecanismos de Estado, que, contemporaneamente, se desregulamenta como projeto político coletivo, mantendo, entretanto sua essência coercitiva, policial.
Com base na leitura de Rosenfield (1988) e Silva (2004), deduzo que a análise dos eventos contemporâneos sobre as violências, fobias refugadoras dos outros e consumismos voláteis de descartáveis humanos, por essa ótica, constituem-se em ações políticas e sociais determinadas, que para nós ainda representam um projeto nebuloso e indefinido, mas que, no entanto, começam a apontar indícios muito precisos de que a questão das violências, intolerâncias, fundamentalismos, refugamentos em massa de populações e indivíduos podem indicar ações efetivadas tendo como meta a destruição sistemática das redes tradicionais de sociabilidade, sem que se caia em contradição lógica. Para a particularidade brasileira, pode-se afirmar, a partir da leitura do texto de João Fragoso e Manolo Florentino (1993), que estes estabeleceram as bases em que se pode profetizar, de forma afirmativa, que o arcaísmo deu certo, constituindo-se hoje, como o foi no passado, um projeto de contemporaneidade.
Com efeito, do ponto de vista da meta das desregulamentações, tem que se ter a eliminação não somente de uma sociedade determinada, mas de tudo aquilo que entendíamos e imaginávamos até aqui por formas humanas de sociabilidade já que, na perspectiva dos meios de ação política, estar-se-ia em presença de formas regradas e sistemáticas de extermínios e violências múltiplas, sendo elas políticas, humanas, afetivas e simbólicas. Assim, as solidariedades volatilizam-se e estabelecem-se subordinações pela força das armas e do medo generalizado.
Ao tomar-se a perversidade, a maldade, do eu narcísico, fóbico e auto-realizável como conceitos ético-políticos, e, portanto sociológicos, temos que ter como contrapartida uma enunciação da natureza humana como um conjunto de proposições suscetíveis de serem transformadas por formas violentas, sendo que estas violências podem ser concretas ou subjetivas, podem ser materiais ou simbólicas. Essas formas violentas se traduzem numa ação política de valorização do sucesso a qualquer custo e dos seres humanos auto-realizáveis, auto centrados, solitários bem sucedidos (RIBEIRO, 1993a), e em um não político que é essencialmente político e projeto de poder de poucos para subordinar muitos, em que os mecanismos tradicionais são substituídos por mecanismos simbólicos que materializam os medos e valorizam a violências, os consumismos hedonistas e o extermínio dos outros sociais como mecanismo de ascensão social. Formando-se grupamentos minoritários endinheirados e empoderados, ou seja, formando-se uma lúmpen-elite no poder cotidiano do tempo presente, esteja ela no Estado ou no mundo da vida dos privados na sociedade como uma totalidade fragmentada.
A lúmpen-elite não tem nenhum interesse no futuro, pois seus passados são de humilhação, fome e desesperança. Só quem pensa no passado é quem quer construir uma civilização para o futuro, e, para a lúmpen-elite, o passado só traz lembranças amorais e perversas; e, portanto, um sentimento de tristeza e morte. Quem pensa com a história (SCHORSKE, 2000) é quem tem um projeto de futuro, que produz valores transcendentes à sua época, que acredita estar vivendo um processo de construção permanente de uma nação e de uma sociedade de solidarismos acolhedores. Este não é o caso da lúmpen-elite no Brasil do tempo presente, que quer viver o agora, sem passados e sem futuros.
A perversidade, como uma categoria, é um conceito que, provido de razão prática, dá conta de uma dimensão essencial do agir humano, das violências, das solidões, dos fobismos individualistas, das intolerâncias e das refugações e extermínios dos outros, que passa a produzir estruturações sociais e dar forma de organização precária e eventual a múltiplos e diversificados agrupamentos para as populações metropolitanas nas metrópoles brasileiras do tempo presente.
Enfim, utilizar a perversidade como uma categoria sociológica analítica transforma o tempo presente do século XXI em algo factível de análise para as recentes perplexidades e medos coletivos. Ao tomar a perversidade como um conceito prático, uma categoria ético-política, produz-se uma visibilidade assustadora (Whyte 2005).
A lúmpen-elite se realiza no agora, pois acredita que suas vidas nada valem; e, apesar de endinheirados e prestigiados, não passam de cadáveres baratos.
Ao ter a perversidade como um conceito político, como uma categoria sociológica analítica, este conceito permite a mediação da percepção que transforma o Estado mediador e provedor em um Estado policial, e exceção como projeto político.
Os múltiplos cenários sociais contemporâneos engenheiram mecanismos de matança simbólica do público, do coletivo, promovendo a emergência de uma lúmpen-elite pela violência e pela delinquência, e fortalecendo uma perspectiva de individualismo auto-centrado e auto-realizável, solitário (RIBEIRO, 1993b). Os despossuídos contemporâneos enfrentam não só as concentrações cada vez maiores das posses como enfrentam igualmente, de maneira contundente, a ação de um Estado policial e tecnológico (MISSE, 1999). E ainda enfrentam, em seu cotidiano, as gangues e redes criminosas, que mantêm as exclusões e exterminam as esperanças que a ética do trabalho produzia, mesmo que de forma precária e com alto nível de exploração do trabalhador.
Nesta reflexão, tendo a afirmar minha convicção de que a cada dia torna-se mais difícil obter um grupo de pertencimento. Mesmo que este grupo seja a sua própria família; a formação do menor micro-grupo social, que é um casal ou uma dupla, é cada dia mais difícil.
Se quisermos outros destinos, diferente daqueles que Dante descreveu em sua trajetória cruzando o inferno, devemos nos confrontar já, e de forma contundente, com as variadas formas de individualismo fundamentalista fóbico, com os consumismos hedonistas e com as sociabilidades violentas em suas dinâmicas objetivas, simbólicas e afetivas. E quando falo em individualismo, não estou usando o conceito generoso de Max Weber, que vê no indivíduo um ser coletivo, um ator social, capaz de traçar e enfrentar o seu destino, de construir uma civilização. Falo de um individualismo egocentrado, narcísico e solitário, falo do indivíduo que Lair Ribeiro (1993a, 1993b) tão bem descreve e compreende. O indivíduo que se realiza em sua própria individualidade solitária e original. Que acredita ser o responsável, ele próprio, pelos sucessos e mazelas dos tempos contemporâneos (Ribeiro, 1993a).
Torna-se efetivamente necessário valorizar com a publicização e análises as conquistas civilizatórias, afetivo-políticas de bem estar e bem querer mais significativas dos séculos passados.
A meu ver essa tarefa é e será uma missão intelectual, analítica e existencial ampliada, radicalmente ampliada em todos os campos das atividades humanas e das múltiplas redes de sociabilidades. É um desafio sociológico de compreensão. Tenho certeza que, por estratégia de sobrevivência, homens e mulheres terão que ser rigorosamente semelhantes e solidários nestes tempos presentes de intolerâncias, de iniquidades e múltiplos fundamentalismos isolacionistas.
O século XXI tornou inexorável o fim de uma ética social, baseada no trabalho. Esta ética, que orientou a organização social de múltiplas sociedades, particularmente a sociedade capitalista ocidental (Weber, 1982), na qual o Brasil se inscreve, produziu conflitos sociais, lutas de classe e esperanças, alimentou sonhos de transformações sociais igualitárias, sonhos de mobilidade social e circulação territorial. Com o fim desta ética, o trabalho deixa de ser à base de organização da sociedade, transformando o ócio em mercadoria simbólica e hipervalorizada; insuflando os desejos mais profundos e primitivos de uma multidão de desesperançados, a participar como consumidores hedonistas e lúdicos de um mundo que os exclui e não lhes confere identidade social. O conceito de cidadania é transmutado para o de consumidor.
Como conseqüência, forma-se um modo de produção ilícito e paralelo que atenta contra a cidadania precária e o Estado de direito anacrônico, atuando com todos os itens de uma pauta industrial, de serviços e financeira. Cria-se assim a possibilidade de ganhar capital, endinheirar, tornar-se o dono do pedaço, constituir-se em uma pequena casta de mandatários absolutistas, enfim, tornar-se um membro da lúmpen-elite, através de um lucrativo comércio informal e ilegal de todos os tipos de mercadorias roubadas, falsificadas e de drogas, que se capilariza em nossos territórios, estando ao alcance de todos via telefone celular ou internet.
Nosso dilema é que hoje a lúmpen-elite está associada a uma rede mundializada dominada pelo narcopoder(Silveira, 1998), controla territórios e aglomerados populacionais que não possuem sólidos vínculos de solidariedade social e coesão afetiva cultural. E o Estado real, anacrônico, se relaciona com estes territórios sociais através da coerção policial ou do clientelismo, transformando o ilícito em mercadoria políticamonopolizada pelo Estado (Misse, 1999), e, portanto passível de comércio e intercâmbio com a lúmpen-elite, com a casta paralela de mandatários locais e regionais.
O fim da ética do trabalho produz um cenário cinzento no presente e obscuro para o futuro, pois as regras do mercado são as regras do capital, e este, a cada dia que passa, cada vez mais é gerado por gangues e redes criminosas hierarquizadas em escala mundial.
Retrocedemos à Idade Média, em que o poder das armas e da coerção legitima as ações, tradição ibérica que orientou e formatou a subjetividade coletiva das elites brasileiras no passado (Faoro, 1979). No presente, as elites brasileiras parecem-me possuir os mesmos parâmetros de subjetividade coletiva de seus antepassados, pois ao longo de quatro séculos foram insensíveis ao crescente desequilíbrio social produzido no Brasil (Faoro, 1994). Nossos territórios nas principais metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Brasília, têm comandos paralelos, mais presentes e coercitivos que o do Estado anacrônico de fato. Quem conhece o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Brasília sabe quem é que manda (Paes, 2008).
Hoje, no Brasil, chegamos a um nível em que as dimensões das diferenças são de difícil solução, pois se consolidaram as exclusões clássicas e racistas, gerando-se novos tipos de mal estar que se generalizam, indicando uma incapacidade estrutural para soluções; existe falta de coragem cívica e civilizatória para enfrentar as conseqüências de uma exclusão e refugamento humano em escala exponencial.
Neste cenário, o que resta ao Estado cada vez mais desregulamentado é transformar-se em uma vasta máquina policial mantenedora da ordem pública. Este talvez seja o produto mais visível da recente desregulamentação do Estado e das sociedades em nível mundial. E mesmo assim esta vasta estrutura bem equipada e bem orçada é obsoleta e cooptada pela dinâmica social imposta pelo narcopoder, pelas lúmpen-elites e pelas corrupções. A desregulamentação do Estado acarreta de imediato uma desregulamentação das redes de sociabilidade micro da sociedade, que dilui os fundamentos éticos clássicos, tendo como decorrência uma ditadura da produção gerada por um sistema paralelo e ilícito de fazeres, que, entretanto, apesar de paralelo e ilícito, converge para o mercado financeiro formal de maneira mundializada e especulativa.
Neste cenário, velhos perdem qualquer proteção ou respeito, e as crianças são seduzidas pelos ganhos produzidos pela delinquência e por um sistema de produção de capital cujos valores se assentam na violência e na barbárie (Becker 2008). E cada um de nós busca proteção em redutos de solidão e individualidade. Estabelecemos, como nos castelos medievais, fossos de proteção contra os outros. Somos estimulados a uma não alteridade, a ver no outro indivíduo e em outros grupos ameaças reais e/ou imaginadas, e que portanto devem ser evitadas.
Também, no contexto do tempo presente, as tragédias das grandes diferenças sociais e a hiperfragmentação da sociedade em múltiplos grupos de identidade fazem com que, embora circulemos por vários deles com performances diferenciadas, passemos a exercer um individualismo fóbico que tem no outro um objeto de consumo descartável. Assim produzimos com nosso narcisismo coletivo um refugo em massa de milhares de seres humanos. Contudo, creio que já existem contrapontos micro e atomizados a desenvolver sociabilidades não hedonistas e não fóbicas.
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* Nota biográfica:
Paulo Baía, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (2001) e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006). Atualmente é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Núcleo de Sociologia do Poder e Assuntos Estratégicos, pesquisador associado sênior do Laboratório Cidade e Poder da UFF, do Laboratório de Estudos de Gênero do IFCS/UFRJ e do Núcleo de Inclusão Social (NIS) – UFRJ. Tem experiência nas áreas de Sociologia e Ciência Política, com ênfase em sociologia política, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento social brasileiro, estudos estratégicos, teoria política, cultura política, pensamento social, defesa nacional, segurança pública, desigualdades sociais, cidadania, violência, direitos humanos, eleições, estudos urbanos, sistemas de informação/contra-informação/inteligência e boato. (CV Lattes).
** Artigo publicado originalmente:
BAÍA, Paulo. Sociabilidades Violentas – Intolerâncias, individualismo fóbico, machismo, hedonismo e refugos humanos. RBSE – Revista Brasileia de Sociologia da Emoção (online), da UFPB, vol. 12, p. 269-301, 2013.; e no Templo Cultural Delfos, em novembro de 2013.
*** Guernica, de Pablo Picasso, – a trágica e clássica obra, nasceu das impressões causadas no artista pela visão de fotos retratando as consequências do intenso bombardeio sofrido pela cidade de Guernica, anteriormente capital basca, durante a Guerra Civil Espanhola, em 26 de abril de 1937. O painel, produzido em 1937, exposto em um pavilhão da Exposição Internacional de Paris, no espaço reservado à República Espanhola.
É um símbolo doloroso do terror que pode ser produzido pelas guerras e a violência.
**** Autorizada a reprodução deste artigo integral ou parcial, desde que citados os devidos créditos e a fonte.
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