Mia Couto: “Em defesa da impureza”
Uma das principais vozes do continente africano, Mia Couto abordou os temas a partir das referências de filosofias da cultura moçambicana, questionou a dicotomia entre humano e não-humano, entre natureza e sociedade. Estas fronteiras, antes tão claramente delimitadas, foram derrubadas por descobertas recentes da ciência que comprovam que as bactérias, vírus, e fungos estão no nosso corpo porque são parte dele. Com esta construção, Mia nos diz que é sobretudo o não-humano que nos ajuda a sermos humanos.
Segundo o escritor, é essencial para o futuro da humanidade absorver o entendimento de que somos construídos por inúmeros seres microscópicos – a maior prova de que não existe uma “pureza humana”. Esta compreensão deve ir além dos livros de Biologia. Somos fruto da pluralidade, e essa consciência deve ser passada às próximas gerações: “Uma criança que aprenda que é feita da diversidade entre o humano e o não humano dificilmente será manipulada por movimentos que se inspiram na ideia de pureza racial, religiosa ou étnica”, afirmou.
Biólogo de formação, o autor abordou a questão das queimadas que ameaçam a biodiversidade da Amazônia e do Pantanal. Para ele, mais preocupante do que a destruição da floresta e a situação dos animais que perdem sua casa são as políticas que viabilizam e ignoram a realidade desta tragédia: “O que está acontecendo na Amazônia não é apenas um crime ecológico, é um crime contra a humanidade. Pensando nas razões invocadas para deitar fogo e para permitir que a Amazônia seja objeto de um assalto, é um crime político, econômico, ecológico. É um crime total”, pontuou Mia Couto.
confira algumas respostas do autor aos mais variados temas, respondidas durante a conferência de estreia do “Fronteiras do Pensamento” 2020:
Adriana Couto: Mia, você já falou para a gente em outras oportunidades sobre a força da narrativa que cada um carrega, a história que a gente carrega e as conexões que a gente faz entre essas histórias. A gente tem uma pergunta aqui falando um pouco sobre isso: você acredita que em nosso tempo a reinvenção do humano passa pelo exercício empenhado da escuta, da acolhida, da transição para as lógicas dos outros?
Mia Couto: Eu acho que o ensinamento mais importante que eu levo da minha infância foi dado sem nenhuma intenção de me ensinar qualquer coisa. O meu pai e minha mãe demoravam uma hora para atravessarem a quadra, e demoravam porque dedicavam seu tempo aos outros.
Quando cruzavam com alguém, e fosse esse alguém quem quer que fosse – de outra raça, de outro bairro, de outra origem ou outra condição social-, eles estavam ali inteiros conversando com essas pessoas.
Aprendi desde cedo a importância desse reconhecimento do outro e dessa escuta, e percebi que os meus pais eram casados nisso, porque eles realmente se alimentavam desse cotidiano, da escuta.
Adriana Couto: Essa pandemia vai trazer alguma modificação para as nossas vidas? O senhor acredita que haverá um novo normal ou que com o passar do tempo nós esqueceremos desses momentos e tudo voltará a ser como era antes?
Mia Couto: Não sou nunca pessimista, mas não sou muito otimista. No final desta pandemia, no sentido do que é um final em que a pandemia vai continuar, mas não com a gravidade que tem, eu acho que vamos regressar ao velho normal.
Aquilo que chamamos de “novo normal” é simplesmente o que Guimarães Rosa chamava de uma miséria melhorada. O sistema econômico e político em que vivemos vai se reajustar e do ponto de vista social e econômico vai continuar a repercutir, a fazer com que esta crise pese sobre quem é mais pobre, como sempre aconteceu em todas as crises. Tenho pouca esperança de que a gente desperte, ou que desperte com uma consciência nova.
Adriana Couto: Muitas pessoas estão querendo saber das suas reflexões sobre e também sobre o Pantanal. Tenho uma pergunta para o Mia Couto como biólogo: qual sua opinião sobre a morte de tantos animais nas queimadas da Amazônia?
Mia Couto: Eu tenho de dizer que como biólogo não apenas me preocupo com as espécies que perdem sua casa, mas eu acho que se espera hoje dos biólogos e dos cientistas uma atitude mais aberta mais abrangente.
O que está acontecendo na Amazônia não é apenas um crime ecológico, é um crime contra outras espécies. E esse crime só por si já seria um crime gigantesco, mas é um crime contra a humanidade inteira.
Pensando nas razões invocadas para deitar fogo e para permitir que a Amazônia seja objeto de um assalto, é um crime político, econômico, ecológico. É um crime total.
Adriana Couto: Você falou sobre o enfrentamento do racismo dos preconceitos e a gente vê até dentro desse contexto da pandemia. Muitas manifestações racistas pelo mundo motivadas, claro, pela violência sofrida pelo povo negro em muitos países. Você entende essas manifestações e essa pauta um pouco mais presente como uma evolução nessa discussão antirracista no mundo?
Mia Couto: Sem dúvida. É fundamental que essas vozes exprimam a intolerância absoluta com a perpetuação do racismo. Eu posso revelar aqui uma coisa que é uma vivência minha, não por mérito nenhum meu. Eu vivi o racismo, porque até eu ter 17 anos eu vivia numa colônia. E uma minoria branca dominava a maioria americana negra e eu juntei-me o movimento de libertação, pela revolução e pela independência realmente.
A razão que me levou a participar deste movimento foi pensar que não poderia ser feliz com um país que tinha esta prática racista tão clara, tão agressiva e tão cotidiana. E eu acho que sem eu nunca perceber, eu passei a pertencer a uma minoria em um país onde 99% dos moçambicanos são negros. Todos os meus dirigentes são negros. Meus amigos, meus colegas de trabalho a maioria são negros.
Eu sou uma pequena gota e não dou conta disso, eu não dou conta porque não tenho raça. Isso acontece porque quem lidera o país representa isso. Eu vejo que quando visito a Europa as pessoas me olham como se fosse que eu tivesse alguma coisa que eu pudesse dizer em solidariedade uma perda qualquer que tive. Não, eu só ganhei. Só tenho a celebrar a vida em que eu lutei e onde chegamos em Moçambique.
Adriana Couto: A poesia ajudará os humanos a ultrapassar estes tempos sombrios?
Mia Couto: Eu acho que sim, porque nós chamamos de poesia algo que eventualmente foi a nossa primeira maneira de rezar. Foi a primeira forma de nos relacionarmos com o mundo, com o invisível. A poesia tem por trás dela aquilo que é um pensamento, uma maneira de pensar e de sentir o mundo que foi muito desvalorizada por ser uma coisa que era intuitiva, que não estava no lugar do pensamento. O pensamento é masculino, e por isso é valorizado dessa maneira. A intuição é feminina e pede uma outra linguagem, uma linguagem metafórica. Ao correr do tempo a poesia foi relegada a uma coisa que quem tinha o território autorizado eram os loucos e os poetas. Na verdade, ela sempre existiu em todos nós e mesmo o mesmo o mais cruel dos ditadores deve sonhar, e em suas noites de agonia eu espero que seja castigado pela poesia.
Adriana Couto: Mia, de onde vem a sua poesia? Ou melhor, de onde você entende que a poesia surge da sua prosa?
Mia Couto: Eu não sei bem o que fazer para me salvar dessa pergunta (risos). Não conheço a fronteira onde começa uma coisa e termina outra, quando começa a prosa e onde acaba a poesia. Eu não vejo essa fronteira e se vejo, não a respeito. Faço de conta que não vi, porque eu não saberia fazer nunca de outra forma. Quando eu escrevo prosa, quando escrevo um romance, eu escrevo por via da poesia sempre. A poesia não é para mim um gênero literário, é uma maneira de estar no mundo, de olhar a vida.
(Via Fronteiras do Pensamento)
Mia Couto – o afinador de silêncios (biografia)
Mia Couto – fortuna crítica
Mia Couto – neste site (entrevistas, poemas, contos, crônicas, ensaios e outros textos)
Single ‘Esperanto’ anuncia o álbum da poeta e letrista Lúcia Santos, que ainda tem Anastácia,…
Uma trilha viajante, vinda no rastro do tempo, pega o ouvido para passear na nova…
A cantora Jussara Silveira promove uma ponte musical entre Brasil e Cabo Verde, em seu…
“O avô na sala de estar: a prosa leve de Antonio Candido” mostra a intimidade…
DIVINDADES INCÓGNITAS Dizem que de divindades terrestres entre nós se encontram cada vez menos. Muitas…
Pensamentos noturnos Tão belas na rútila luz soberana, Guia do navegante aflito, sem norte (E…