Canção da manhã
O amor faz você funcionar como redondo relógio de ouro.
A parteira bateu em seus pés, e seu grito nu
Tomou lugar entre os elementos.
Nossas vozes ecoam, exaltando sua chegada. Estátua nova
Num museu arejado, sua nudez
Assombra nossa segurança. Ficamos ao redor, brancos como paredes.
Sou sua mãe
Tanto quanto a nuvem que destila um espelho que reflete seu lento
Desaparecimento na mão do vento.
À noite toda seu hálito de mariposa
Flutua entre rosas lisas. Acordo e ouço:
Longe, um mar se move em meu ouvido.
Um grito, e cambaleio para fora da cama, vaca obesa e florida
Em minha camisola vitoriana.
Sua boca se abre, limpa como a de um gato. A janela
Embranquece e engole suas estrelas torpes. E agora você ensaia
Seu punhado de notas;
As vogais claras sobem como balões.
.
Morning song
Love set you going like a fat gold watch.
The midwife slapped your footsoles, and your bald cry
Took its place among the elements.
Our voices echo, magnifying your arrival. New statue.
In a drafty museum, your nakedness
Shadows our safety. We stand round blankly as walls.
I’m no more your mother
Than the cloud that distills a mirror to reflect its own slow
Effacement at the wind’s hand.
All night your moth-breath
Flickers among the flat pink roses. I wake to listen:
A far sea moves in my ear.
One cry, and I stumble from bed, cow-heavy and floral
In my Victorian nightgown.
Your mouth opens clean as a cat’s. The window square
Whitens and swallows its dull stars. And now you try
Your handful of notes;
The clear vowels rise like balloons.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Os mensageiros
Palavra de lesma em prato de folha?
Não é minha. Não a aceite.
Ácido acético em lata selada?
Não o aceite. Não é genuíno.
Anel de ouro e nele o sol?
Mentiras. Mentiras e uma dor.
Geada numa folha, o imaculado
Caldeirão, estalando e falando
Sozinho no topo de cada um
Dos nove Alpes negros,
Um distúrbio nos espelhos,
O mar estilhaçando seu cinza –
Amor, amor, minha estação.
.
The couriers
The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.
Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.
A ring of gold with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.
Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and crackling
All to itself on the top of each
Of nine black Alps.
A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one —-
Love, love, my season.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Talidomida
Oh, semilua –
Semicérebro, luminosidade –
Negro, mascarado de branco,
Suas escuras
Amputações rastejam e assustam –
Aranhiças, inseguras.
Que luva
Que espécie de couro
Me protegeu
Daquela sombra –
Os botões indeléveis,
Nós nas omoplatas, os
Rostos que
Empurram para ser, arrastando
O podado
Âmnio sangrento das ausências.
Toda noite eu teço
Um espaço para o que me é dado,
Um amor
De dois olhos úmidos e um grito.
Branca secreção
Da indiferença!
Os frutos escuros giram e caem.
O vidro se espatifa,
A imagem
Foge e aborta como gotas de mercúrio.
.
Thalidomide
O half moon—-
Half-brain, luminosity—-
Negro, masked like a white,
Your dark
Amputations crawl and appall—-
Spidery, unsafe.
What glove
What leatheriness
Has protected
Me from that shadow—-
The indelible buds.
Knuckles at shoulder-blades, the
Faces that
Shove into being, dragging
The lopped
Blood-caul of absences.
All night I carpenter
A space for the thing I am given,
A love
Of two wet eyes and a screech.
White spit
Of indifference!
The dark fruits revolve and fall.
The glass cracks across,
The image
Flees and aborts like dropped mercury.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Mulher estéril
Vazia, ecôo até o mínimo passo,
Museu sem estátuas, grandioso, com pilares, pórticos, rotundas.
Em meu pátio uma fonte salta e mergulha em si mesma,
Casta e cega para o mundo. Lírios de mármore
Exalam sua palidez feito perfume.
Me imagino com um grande público,
Mãe de uma branca Nike e vários Apolos de olhos nus.
Em vez disso, os mortos me ferem com atenções, nada pode acontecer.
A lua pousa a mão em minha testa,
Pálida e silenciosa como uma enfermeira.
.
Barren woman
Empty, I echo to the least footfall,
Museum without statues, grand with pillars, porticoes, rotundas.
In my courtyard a fountain leaps and sinks back into itself,
Nun-hearted and blind to the world. Marble lilies
Exhale their pallor like scent.
I imagine myself with a great public,
Mother of a white Nike and several bald-eyed Apollos.
Instead, the dead injure me with attentions, and nothing can happen.
Blank-faced and mum as a nurse.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Lady Lazarus
Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —
Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito
Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.
Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —
O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.
Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.
E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.
Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.
Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver
Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,
Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,
No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.
Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada
Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.
Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.
Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.
E muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral
Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:
“Milagre!”
Que me deixa mal.
Há um preço
Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.
E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue
Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.
Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro
Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.
Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —
Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.
Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.
Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.
.
Lady Lazarus
I have done it again.
One year in every ten
I manage it —
A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot
A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.
Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —
The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.
Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me
And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.
This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.
What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see
Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies
These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,
Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.
The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut
As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.
Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.
I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I’ve a call.
It’s easy enough to do it in a cell.
It’s easy enough to do it and stay put.
It’s the theatrical
Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:
“A miracle!”
That knocks me out.
There is a charge
For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.
And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood
Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.
I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby
That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.
Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —
A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Tulipas
Tulipas são excitáveis demais, é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, tão silencioso, coberto de neve.
Aprendo a paz, deitada sozinha em silêncio
Enquanto a luz se espalha nessas paredes brancas, nesta cama, nestas mãos.
Não sou ninguém; não tenho nada a ver com as explosões.
Dei meu nome e minhas roupas às enfermeiras
Minha história ao anestesista e meu corpo aos cirurgiões.
Apoiaram minha cabeça entre o travesseiro e a dobra do lençol
Como um olho entre duas pálpebras brancas que ficassem abertas.
Pupila tola, tudo ela tem que engolir.
As enfermeiras não se cansam de passar, não me incomodam,
Passam como gaivotas no interior, em seus chapéus brancos,
Fazendo coisas com as mãos, uma igual à outra,
Por isso é impossível dizer quantas são.
Fazem de meu corpo um seixo, que elas cuidam como a água
Cuida dos seixos por onde corre, alisando-os com carinho.
Trazem-me o torpor em suas agulhas brilhantes, trazem-me o sono.
Perdida de mim, estou cansada da bagagem toda —
Meu estojo de couro noturno, caixa preta de comprimidos,
Meu marido e minha filha sorriem na foto de família;
Seus sorrisos fisgam minha pele, pequenos anzóis sorridentes.
Deixei coisas escaparem, navio de carga com trinta anos
Teimosamente se prendendo a meu nome e endereço.
Eles me lavaram de minhas associações amorosas.
Assustada e nua sobre a cama de rodas com travesseiros de plástico verde,
Assisti meu aparelho de chá, minhas roupas de linho, meus livros
Submergirem e sumirem, e a água cobrir minha cabeça.
Sou freira agora, nunca fui tão pura.
Não queria flores, só me deitar
De mãos pra cima e completamente vazia.
Quanta liberdade, você não faz idéia —
A paz é tão imensa que entorpece,
E não pergunta nada, um crachá, coisinhas de nada.
É do que se aproximam os mortos, enfim; e os imagino
Fechando suas bocas sobre ela, como hóstia de comunhão.
Tulipas são vermelhas demais, me machucam.
Mesmo através do celofane as ouço respirando
De leve, através de suas faixas brancas, como um bebê terrível.
Sua vermelhidão conversa com minha ferida, elas combinam.
São tão sutis: parecem flutuar, embora sinta seus pesos,
Me aborrecendo com suas súbitas cores e línguas,
Uma dúzia de chumbadas vermelhas presas no pescoço.
Antes ninguém me observava, agora sou observada.
As tulipas se viram para mim, e para a janela às minhas costas
Onde, uma vez por dia, a luz lentamente se dilata e lentamente se dilui,
E me vejo, estendida, ridícula, uma silhueta de papel
Entre o olho do sol e os olhos das tulipas,
E não tenho face, eu que tanto quis me apagar.
As tulipas vívidas devoram meu oxigênio.
Antes de chegarem havia sossego no ar,
Indo e vindo, a cada alento, sem alvoroço.
Mas as tulipas o ocuparam por inteiro, como um alarme.
Agora o ar se enrosca e redemoinha ao seu redor como o rio
Ao redor de um motor enferrujado e submerso.
Elas concentram minha atenção, foi divertido
Brincar e descansar sem compromisso.
As paredes também parecem se aquecer.
Tulipas deviam estar atrás das grades, como feras perigosas;
Elas se abrem como a boca de um grande felino africano,
E estou consciente de meu coração: ele se abre e se fecha,
Seu bojo vermelho viceja de total amor por mim.
A água que provo é morna e salgada, como a do mar,
E vem de um país distante como a saúde.
.
Tulips
The tulips are too excitable, it is winter here.
Look how white everything is, how quiet, how snowed-in.
I am learning peacefulness, lying by myself quietly
As the light lies on these white walls, this bed, these hands.
I am nobody; I have nothing to do with explosions.
I have given my name and my day-clothes up to the nurses
And my history to the anesthetist and my body to surgeons.
They have propped my head between the pillow and the sheet-cuff
Like an eye between two white lids that will not shut.
Stupid pupil, it has to take everything in.
The nurses pass and pass, they are no trouble,
They pass the way gulls pass inland in their white caps,
Doing things with their hands, one just the same as another,
So it is impossible to tell how many there are.
My body is a pebble to them, they tend it as water
Tends to the pebbles it must run over, smoothing them gently.
They bring me numbness in their bright needles, they bring me sleep.
Now I have lost myself I am sick of baggage——
My patent leather overnight case like a black pillbox,
My husband and child smiling out of the family photo;
Their smiles catch onto my skin, little smiling hooks.
I have let things slip, a thirty-year-old cargo boat
stubbornly hanging on to my name and address.
They have swabbed me clear of my loving associations.
Scared and bare on the green plastic-pillowed trolley
I watched my teaset, my bureaus of linen, my books
Sink out of sight, and the water went over my head.
I am a nun now, I have never been so pure.
I didn’t want any flowers, I only wanted
To lie with my hands turned up and be utterly empty.
How free it is, you have no idea how free——
The peacefulness is so big it dazes you,
And it asks nothing, a name tag, a few trinkets.
It is what the dead close on, finally; I imagine them
Shutting their mouths on it, like a Communion tablet.
The tulips are too red in the first place, they hurt me.
Even through the gift paper I could hear them breathe
Lightly, through their white swaddlings, like an awful baby.
Their redness talks to my wound, it corresponds.
They are subtle : they seem to float, though they weigh me down,
Upsetting me with their sudden tongues and their color,
A dozen red lead sinkers round my neck.
Nobody watched me before, now I am watched.
The tulips turn to me, and the window behind me
Where once a day the light slowly widens and slowly thins,
And I see myself, flat, ridiculous, a cut-paper shadow
Between the eye of the sun and the eyes of the tulips,
And I have no face, I have wanted to efface myself.
The vivid tulips eat my oxygen.
Before they came the air was calm enough,
Coming and going, breath by breath, without any fuss.
Then the tulips filled it up like a loud noise.
Now the air snags and eddies round them the way a river
Snags and eddies round a sunken rust-red engine.
They concentrate my attention, that was happy
Playing and resting without committing itself.
The walls, also, seem to be warming themselves.
The tulips should be behind bars like dangerous animals;
They are opening like the mouth of some great African cat,
And I am aware of my heart: it opens and closes
Its bowl of red blooms out of sheer love of me.
The water I taste is warm and salt, like the sea,
And comes from a country far away as health.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Ariel
Estase no escuro.
E um fluir azul sem substância
De rochedos e distâncias.
Leoa de Deus,
Como nos unimos,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O sulco
Divide e passa, irmão do
Arco castanho
Do pescoço que não posso pegar,
Olhinegras
Bagas lançam escuros
Ganchos —
Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais
Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.
Godiva
Branca, me descasco —
Mãos mortas, asperezas mortas.
E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O choro da criança
Dissolve-se no muro.
E eu
Sou a flecha,
Orvalho que voa
Suicida, e de uma vez avança
Contra o olho
Vermelho, caldeirão da manhã.
.
Ariel
Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.
God’s lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow
Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,
Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —
Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else
Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.
White
Godiva, I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.
And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child’s cry
Melts in the wall.
And I
Am the arrow,
The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red
Eye, the cauldron of morning.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
A coragem de calar
A coragem da boca fechada, apesar da artilharia!
A linha rósea e quieta, um verme, exposto ao sol.
E há discos negros por trás, discos do ultraje,
E o ultraje de um céu, e os discos de seu cérebro.
Os discos giram, querem ser ouvidos,
Carregados, como estão, de adultérios.
Adultérios, maus-tratos, deserções e hipocrisia,
A agulha viajando em sua ranhura,
Fera prateada entre dois cânions escuros,
Um grande cirurgião, um tatuador agora,
Tatuando mais e mais as mesmas tristes queixas,
As cobras, os bebês, as tetas
Nas sereias e garotas de sonho.
O cirurgião está calado, não fala nada.
Já viu muitas mortes, suas mãos estão repletas.
Assim giram os discos do cérebro, como bocas de canhão.
E há aquela foice antiga, a língua,
Incansável, roxa. Deve ser cortada fora?
Tem nove caudas, é perigosa.
E o barulho que rouba do ar, quando começa.
Não, a língua também foi deixada de lado
Pendurada na biblioteca entre gravuras de Rangoon
E cabeças de raposas, lontras e coelhos mortos.
É um objeto maravilhoso –
Quantas coisas penetrou em outros tempos!
Mas e os olhos, os olhos, os olhos?
Espelhos matam e conversam, são quartos terríveis
Onde a tortura prossegue e só se pode olhar.
O rosto que habitava este espelho é o de um homem morto.
Não se preocupe com os olhos –
Podem ser brancos e tímidos, não são delatores,
Seus raios mortais se dobraram como bandeiras
De um país que não se conhece mais,
Uma independência obstinada
Insolvente entre as montanhas.
.
The courage of shutting-up
The courage of the shut mouth, in spite of artillery!
The line pink and quiet, a worm, basking.
There are black disks behind it, the disks of outrage,
And the outrage of a sky, the lined brain of it.
The disks revolve, they ask to be heard—
Loaded, as they are, with accounts of bastardies.
Bastardies, usages, desertions and doubleness,
The needle journeying in its groove,
Silver beast between two dark canyons,
A great surgeon, now a tattooist,
Tattooing over and over the same blue grievances,
The snakes, the babies, the tits
On mermaids and two-legged dreamgirls.
The surgeon is quiet, he does not speak.
He has seen too much death, his hands are full of it.
So the disks of the brain revolve, like the muzzles of cannon.
Then there is that antique billhook, the tongue,
Indefatigable, purple. Must it be cut out?
It has nine tails, it is dangerous.
And the noise it flays from the air, once it gets going!
No, the tongue, too, has been put by,
Hung up in the library with the engravings of Rangoon
And the fox heads, the otter heads, the heads of dead rabbits.
It is a marvelous object—
The things it has pierced in its time.
But how about the eyes, the eyes, the eyes?
Mirrors can kill and talk, they are terrible rooms
In which a torture goes on one can only watch.
The face that lived in this mirror is the face of a dead man.
Do not worry about the eyes—
They may be white and shy, they are no stool pigeons,
Their death rays folded like flags
Of a country no longer heard of,
An obstinate independency
Insolvent among the mountains.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Gulliver
Sobre seu corpo as nuvens passam
Altas, altas e geladas
E um tanto finas, como se
Flutuassem num vidro invisível.
Diferentes dos cisnes,
Não têm reflexos;
Diferentes de você,
Sem cordas para te prender.
Tudo bem, tudo azul. Diferentes de você –
Você aí, de costas,
Olhos grudados no céu.
Os homens-aranhas te pegaram,
Lançando e enrolando suas frágeis algemas,
Suas seduções –
Tantas sedas.
Como eles te odeiam.
Eles conversam no vale dos seus dedos, minúsculos vermes.
Fariam você dormir em seus armários,
Este dedo e aquele, uma relíquia.
Cai fora!
Cai fora, sete-léguas, como aquelas distâncias
Que se movem num Crivelli, intocáveis.
Deixe que este olho vire águia,
A sombra de seu lábio, um abismo.
.
Gulliver
Over your body the clouds go
High, high and icily
And a little flat, as if they
Floated on a glass that was invisible.
Unlike swans,
Having no reflections;
Unlike you,
With no strings attached.
All cool, all blue. Unlike you—
You, there on your back,
Eyes to the sky.
The spider-men have caught you,
Winding and twining their petty fetters,
Their bribes—
So many silks.
How they hate you.
They converse in the valley of your fingers, they are inchworms.
They would have you sleep in their cabinets,
This toe and that toe, a relic.
Step off!
Step off seven leagues, like those distances
That revolve in Crivelli, untouchable.
Let this eye be an eagle,
The shadow of his lip, an abyss.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Medusa
Longe dessa península de boquilhas petrificadas,
Olhos revirados por varetas brancas,
Orelhas absorvendo as incoerências marinhas,
Você abriga sua cabeça débil — bola divina,
Lente de piedades,
Seus parasitas
Abastecem suas células selvagens à sombra de minha quilha,
Empurradas como corações,
Estigmas vermelhos bem no centro,
Cavalgando a contracorrente até o ponto de partida mais próximo,
Arrastando seus cabelos de Jesus.
Escapei, me pergunto?
Minha mente sopra até você,
Umbigo de velhos mariscos, cabo Atlântico,
Se mantendo, parece, em estado de milagrosa conservação.
Em todo caso, você está sempre ali,
Respiração trêmula no fim da minha linha,
Curva de água pulando
Em meu caniço, ofuscante e agradecida,
Tocando e sugando.
Não chamei você.
Não chamei você mesmo.
No entanto, no entanto
Você navegou em minha direção,
Obesa e vermelha, uma placenta
Paralisando amantes impetuosos.
Luz de naja
Espremendo o hálito das rubras campânulas
Da fúcsia. Sem poder respirar,
Morta e sem dinheiro,
Superexposta, como num raio x.
Quem você pensa que é?
Hóstia de comunhão? Maria Carpideira?
Não vou tirar nenhum pedaço desse seu corpo,
Garrafa aonde vivo,
Vaticano terrível.
O sal quente me mata de enjôo.
Imaturos como eunucos, seus desejos
Sibilam para meus pecados.
Fora, fora, coleante tentáculo!
Não há mais nada entre nós.
.
Medusa
Off that landspit of stony mouth-plugs,
Eyes rolled by white sticks,
Ears cupping the sea’s incoherences,
You house your unnerving head—God-ball,
Lens of mercies,
Your stooges
Plying their wild cells in my keel’s shadow,
Pushing by like hearts,
Red stigmata at the very center,
Riding the rip tide to the nearest point of departure,
Dragging their Jesus hair.
Did I escape, I wonder?
My mind winds to you
Old barnacled umbilicus, Atlantic cable,
Keeping itself, it seems, in a state of miraculous repair.
In any case, you are always there,
Tremulous breath at the end of my line,
Curve of water upleaping
To my water rod, dazzling and grateful,
Touching and sucking.
I didn’t call you.
I didn’t call you at all.
Nevertheless, nevertheless
You steamed to me over the sea,
Fat and red, a placenta
Paralyzing the kicking lovers.
Cobra light
Squeezing the breath from the blood bells
Of the fuchsia. I could draw no breath,
Dead and moneyless,
Overexposed, like an X-ray.
Who do you think you are?
A Communion wafer? Blubbery Mary?
I shall take no bite of your body,
Bottle in which I live,
Ghastly Vatican.
I am sick to death of hot salt.
Green as eunuchs, your wishes
Hiss at my sins.
Off, off, eely tentacle!
There is nothing between us.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
A lua e o teixo
Esta é a luz da mente, fria e planetária.
As árvores da mente são negras. A luz, azul.
Gramados descarregam suas mágoas em meus pés como se eu fosse Deus,
Arranhando meus tornozelos, murmurando sua humildade.
Névoas vaporosas e espitituais habitam este lugar
Separado de minha casa por uma fileira de lápides.
Simplesmente não posso ver onde vão dar.
A lua não tem porta. É uma face em seu pleno direito,
Branca como os nós dos dedos, terrivelmente incomodada.
Arrasta o mar atrás de si como um crime sujo; está quieta,
A boca aberta em total desespero. Moro aqui.
Duas vezes aos domingos os sinos assustam o céu –
Oito grandes línguas afirmam a Ressurreição.
E no final, sobriamente, badalam seus nomes.
O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos se elevam e encontram a lua.
A lua é minha mãe. Não é doce como Maria.
Suas vestes azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Se eu ainda acreditasse na ternura –
O rosto da efígie, suavizado por velas,
Derramando, sobre mim, seus olhos meigos.
Tenho caído pelo caminho. Nuvens florescem
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Na igreja, os santos serão todos azuis,
Flutuando sobre bancos frios com delicados pés,
Suas mãos e faces duras de santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é escuridão – escuridão e silêncio.
.
The moon and the yew tree
This is the light of the mind, cold and planetary
The trees of the mind are black. The light is blue.
The grasses unload their griefs on my feet as if I were God
Prickling my ankles and murmuring of their humility
Fumy, spiritous mists inhabit this place.
Separated from my house by a row of headstones.
I simply cannot see where there is to get to.
The moon is no door. It is a face in its own right,
White as a knuckle and terribly upset.
It drags the sea after it like a dark crime; it is quiet
With the O-gape of complete despair. I live here.
Twice on Sunday, the bells startle the sky —
Eight great tongues affirming the Resurrection
At the end, they soberly bong out their names.
The yew tree points up, it has a Gothic shape.
The eyes lift after it and find the moon.
The moon is my mother. She is not sweet like Mary.
Her blue garments unloose small bats and owls.
How I would like to believe in tenderness –
The face of the effigy, gentled by candles,
Bending, on me in particular, its mild eyes.
I have fallen a long way. Clouds are flowering
Blue and mystical over the face of the stars
Inside the church, the saints will all be blue,
Floating on their delicate feet over the cold pews,
Their hands and faces stiff with holiness.
The moon sees nothing of this. She is bald and wild.
And the message of the yew tree is blackness – blackness and silence.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Rival
Se a lua sorrisse, pareceria com você.
Você também deixa a impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são bons em roubar luz alheia.
A boca da lua se lamenta ao mundo; a sua é insensível,
E seu maior dom é fazer tudo virar pedra.
Desperto num mausoléu; você está aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Malicioso como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco para dizer algo irrespondível.
A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas insatifações, por outro lado,
Chegam pelo correio com regularidade encantadora,
Brancas e vazias, expansivas como monóxido de carbono.
Nem um dia se passa sem notícias suas,
Passeando pela África, talvez, mas pensando em mim.
.
The rival
If the moon smiled, she would resemble you.
You leave the same impression
Of something beautiful, but annihilating.
Both of you are great light borrowers.
Her O-mouth grieves at the world; yours is unaffected,
And your first gift is making stone out of everything.
I wake to a mausoleum; you are here,
Ticking your fingers on the marble table, looking for cigarettes,
Spiteful as a woman, but not so nervous,
And dying to say something unanswerable.
The moon, too, abuses her subjects,
But in the daytime she is ridiculous.
Your dissatisfactions, on the other hand,
Arrive through the mailslot with loving regularity,
White and blank, expansive as carbon monoxide.
No day is safe from news of you,
Walking about in Africa maybe, but thinking of me.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
40 graus de febre
Pura? O que significa isso?
As línguas do inferno
São torpes, torpes como as três
Línguas do torpe, obeso Cerberus
Que arfa ao portão. Incapaz
De lamber e limpar
O membro em febre, o pecado, o pecado.
Crepita a chama.
O indelével aroma
De vela apagada!
Amor, amor, a fumaça rola
De mim como a echarpe de Isadora, e temo
Que uma das portas se ancore na roda.
Uma fumaça tão amarela e sombria
Faz de si seu elemento. Não vai subir,
Mas girar ao redor do globo
Asfixiando o idoso e o humilde,
O indefeso
Bebê na estufa de seu berço,
Orquídea pálida
Suspensa em seu jardim suspenso no ar,
Diabólico leopardo!
A radiação o embranqueceu
E o matou em uma hora.
Engordurando os corpos dos adúlteros
Como as cinzas de Hiroshima que os devoram.
O pecado. O pecado.
Meu bem, passei a noite
Me virando, indo e vindo, indo e vindo.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.
Três dias. Três noites.
Limonada, canja
Aguada, água me deixa enjoada.
Sou pura demais para você ou qualquer outro.
Seu corpo
Me magoa como o mundo magoa Deus. Sou uma lanterna –
Minha cabeça uma lua
De papel japonês, minha pele folheada a ouro
Infinitamente delicada e infinitamente cara.
Meu calor não te choca. Nem minha luz.
Sou, sozinha, uma camélia imensa
Ardendo e indo e vindo, gozo a gozo.
Acho que estou subindo,
Acho que posso levantar –
Contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu
Sou uma virgem pura
De acetileno
Cuidada por rosas,
Por beijos, por querubins,
Por qualquer dessas coisas róseas.
Não você, nem ele
Nem ele, nem ele
(Meus eus se dissolvem, anáguas de puta velha) –
Ao Paraíso.
.
Fever 103°
Pure? What does it mean?
The tongues of hell
Are dull, dull as the triple
Tongues of dull, fat Cerberus
Who wheezes at the gate. Incapable
Of licking clean
The aguey tendon, the sin, the sin.
The tinder cries.
The indelible smell
Of a snuffed candle!
Love, love, the low smokes roll
From me like Isadora’s scarves, I’m in a fright
One scarf will catch and anchor in the wheel,
Such yellow sullen smokes
Make their own element. They will not rise,
But trundle round the globe
Choking the aged and the meek,
The weak
Hothouse baby in its crib,
The ghastly orchid
Hanging its hanging garden in the air,
Devilish leopard!
Radiation turned it white
And killed it in an hour.
Greasing the bodies of adulterers
Like Hiroshima ash and eating in.
The sin. The sin.
Darling, all night
I have been flickering, off, on, off, on.
The sheets grow heavy as a lecher’s kiss.
Three days. Three nights.
Lemon water, chicken
Water, water make me retch.
I am too pure for you or anyone.
Your body
Hurts me as the world hurts God. I am a lantern——
My head a moon
Of Japanese paper, my gold beaten skin
Infinitely delicate and infinitely expensive.
Does not my heat astound you! And my light!
All by myself I am a huge camellia
Glowing and coming and going, flush on flush.
I think I am going up,
I think I may rise——
The beads of hot metal fly, and I love, I
Am a pure acetylene
Virgin
Attended by roses,
By kisses, by cherubim,
By whatever these pink things mean!
Not you, nor him
Nor him, nor him
(My selves dissolving, old whore petticoats)——
To Paradise.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.
§
Espelho
Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro –
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor de rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.
Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Enxerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.
.
Mirror
I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, just truthful –
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.
Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.
23 October 1961
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Papoulas em julho
Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês fazem mal?
Vocês se mexem. Não posso tocá-las.
Meto as mãos entre as chamas. Nada me queima.
E me cansa ficar aqui olhando
Vocês se mexendo assim, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.
Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!
Há fumos que não posso tocar.
Onde estão seus ópios, suas cápsulas que enjoam?
Se eu pudesse sangrar, ou dormir! –
Se minha boca se unisse a essa ferida!
Ou se seus licores me sedassem, nessa cápsula de vidro.
Entorpecendo e acalmando.
Mas sem cor. Incolor.
.
Poppies in july
Little poppies, little hell flames,
Do you do no harm?
You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns
And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.
A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!
There are fumes I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?
If I could bleed, or sleep! –
If my mouth could marry a hurt like that!
Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.
But colorless. Colorless.
20 July 1962
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Lesbos
Safadeza na cozinha!
As batatas sibilam.
Isso é Hollywood, sem janelas,
A luz fluorescente oscila como uma enxaqueca terrível.
Nas portas, tiras de papel –
Cortinas de teatro, o cabelo crespo da viúva.
E eu, Amor, sou uma mentirosa patológica,
E minha filha – olhe só pra ela, de cara no assoalho,
Fantoche sem cordas, tremendo até sumir –
Como é esquizofrênica,
Sua cara corada e pálida, em pânico:
Você botou os gatos dela pra fora da janela
Numa caixa com areia
Onde podem vomitar e cagar e miar sem que ela possa ouvir.
Você diz que não suporta mais,
A putinha.
Você queimou suas válvulas como um rádio velho
Limpo de vozes e história, o ruído novo
Da estática.
Você diz que eu afogaria os gatinhos. Que fedor!
Você diz que eu afogaria minha filha.
Ela vai cortar a garganta aos dez se não pirar aos dois.
O sorriso do bebê, lesma obesa,
Nos losangos lustrados de linóleo laranja.
Você podia comê-lo. É um menino.
Você diz que seu marido não é bom pra você.
Sua mãe judia vigia seu sexo como jóia.
Você tem um bebê, eu tenho dois.
Eu bem podia me sentar numa rocha e me pentear.
Podia usar colã de tigresa e ter um affair.
A gente bem que podia se ver na outra vida, se ver no ar,
Só eu e você.
Porém há um cheiro de banha e cocô de bebê.
Estou dopada e enjoada depois do último sonífero.
Fumaça de cozinha, fumaça infernal
Nos sobrevoa, rivais venenosas,
Nossos ossos, nossos pelos.
Te xingo de Órfã, órfã. Você está doente.
O sol te dá úlcera, o vento, tuberculose.
Um dia você foi bonita.
Em Nova York, em Hollywood, os homens te diziam: “Acabou?
Gata, você é demais!”.
Você servia, servia, servia pro papel.
E o marido brocha sai pra tomar um café.
Tento segurá-lo, não saio,
Relâmpago para um velho pára-raio,
Os banhos ácidos, um céu inteiro cheio de você.
Ele despenca da colina de plástico.
Trem desgovernado. Faíscas azuis se espalham,
Trincando como quartzo em milhões de pedacinhos.
O jóia! Ó valiosa!
Naquela noite a lua
Arrastou seu saco de sangue, animal
Doente
Por sobre as luzes do cais.
Então voltava ao crescente,
Dura, branca e ausente.
Na areia o brilho das escamas me matava de medo.
A gente as apanhava aos montes, curtindo,
Modelando-as como massa, um corpo mulato,
Grãos de seda.
Um cachorro pegou seu marido cachorro. E se mandou.
Agora estou quieta, ódio
Até o pescoço,
Grosso, grosso
Não falo nisso. Empacoto batatas como roupas finas,
Empacoto os bebês,
Empacoto os gatos doentes.
Oh, ampola de ácido,
É de amor que você está cheia. Você sabe quem você odeia.
Ele ruge e arrasta as correntes pelo portão
Que se abre pro mar
Onde ele invade, preto e branco,
E o vomita de volta.
Você o enche com seus papos profundos, como um jarro.
Você está um trapo.
Sua voz, meu brinco,
Voa e suga, morcego que ama sangue.
Isso é isso. Aquilo é aquilo.
Você escuta atrás da porta,
Bruxa triste. “Toda mulher é uma puta.
Não consigo dialogar.”
Vejo seu fino décor
Te fechando como o punho de um bebê
Ou uma anêmona, esse mar.
Meu bem, cleptomaníaco.
Ainda estou crua.
Quem sabe um dia eu vou voltar.
Você sabe pra que servem as mentiras
Nem no seu paraíso Zen a gente vai se cruzar.
.
Lesbos
Viciousness in the kitchen!
The potatoes hiss.
It is all Hollywood, windowless,
The fluorescent light wincing on and off like a terrible migraine,
Coy paper strips for doors
Stage curtains, a widow’s frizz.
And I, love, am a pathological liar,
And my child look at her, face down on the floor,
Little unstrung puppet, kicking to disappear
Why she is schizophrenic,
Her face is red and white, a panic,
You have stuck her kittens outside your window
In a sort of cement well
Where they crap and puke and cry and she can’t hear.
You say you can’t stand her,
The bastard’s a girl.
You who have blown your tubes like a bad radio
Clear of voices and history, the staticky
Noise of the new.
You say I should drown the kittens. Their smell!
You say I should drown my girl.
She’ll cut her throat at ten if she’s mad at two.
The baby smiles, fat snail,
From the polished lozenges of orange linoleum.
You could eat him. He’s a boy.
You say your husband is just no good to you.
His Jew-Mama guards his sweet sex like a pearl.
You have one baby, I have two.
I should sit on a rock off Cornwall and comb my hair.
I should wear tiger pants, I should have an affair.
We should meet in another life, we should meet in air,
Me and you.
Meanwhile there’s a stink of fat and baby crap.
I’m doped and thick from my last sleeping pill.
The smog of cooking, the smog of hell
Floats our heads, two venemous opposites,
Our bones, our hair.
I call you Orphan, orphan. You are ill.
The sun gives you ulcers, the wind gives you T.B.
Once you were beautiful.
In New York, in Hollywood, the men said: “Through?
Gee baby, you are rare.”
You acted, acted for the thrill.
The impotent husband slumps out for a coffee.
I try to keep him in,
An old pole for the lightning,
The acid baths, the skyfuls off of you.
He lumps it down the plastic cobbled hill,
Flogged trolley. The sparks are blue.
The blue sparks spill,
Splitting like quartz into a million bits.
O jewel! O valuable!
That night the moon
Dragged its blood bag, sick
Animal
Up over the harbor lights.
And then grew normal,
Hard and apart and white.
The scale-sheen on the sand scared me to death.
We kept picking up handfuls, loving it,
Working it like dough, a mulatto body,
The silk grits.
A dog picked up your doggy husband. He went on.
Now I am silent, hate
Up to my neck,
Thick, thick.
I do not speak.
I am packing the hard potatoes like good clothes,
I am packing the babies,
I am packing the sick cats.
O vase of acid,
It is love you are full of. You know who you hate.
He is hugging his ball and chain down by the gate
That opens to the sea
Where it drives in, white and black,
Then spews it back.
Every day you fill him with soul-stuff, like a pitcher.
You are so exhausted.
Your voice my ear-ring,
Flapping and sucking, blood-loving bat.
That is that. That is that.
You peer from the door,
Sad hag. “Every woman’s a whore.
I can’t communicate.”
I see your cute decor
Close on you like the fist of a baby
Or an anemone, that sea
Sweetheart, that kleptomaniac.
I am still raw.
I say I may be back.
You know what lies are for.
Even in your Zen heaven we shan’t meet.
18 October1962
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Ovelha na névoa
Colinas mergulham na brancura.
Estrelas ou pessoas
Me olham com tristeza, desapontadas comigo.
Um fio de hálito fica no caminho.
Ó, lento
Cavalo cor de ferrugem,
Cascos, sinos doendo –
A manhã toda
Manhã ainda escurecendo,
Essa flor ao relento.
Meus ossos sentem um sossego, os campos
Distantes dissolvem meu coração.
Eles ameaçam
Me abandonar por um céu
Sem estrelas e órfã, água escura.
.
Sheep in fog
The hills step off into whiteness.
People or stars
Regard me sadly, I disappoint them.
The train leaves a line of breath.
O slow
Horse the colour of rust,
Hooves, dolorous bells –
All morning the
Morning has been blackening,
A flower left out.
My bones hold a stillness, the far
Fields melt my heart.
They threaten
To let me through to a heaven
Starless and fatherless, a dark water.
2 December 1962/28 January 1963
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Os manequins de Munique
Perfeição é terrível, ela não pode ter filhos.
Fria feito hálito de neve, sela seu ventre
Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida
Ovula suas luas, mês a mês, sem nenhum motivo.
A seiva do sangue é a seiva do amor,
O sacrifício absoluto.
Ou seja: não ídolos mas eu mesma,
Eu e você.
Então, em sua doçura sulfúrica, seus sorrisos
Esses manequins hoje dormem
Em Munique, um necrotério entre Roma e Paris,
Calvos e nus em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja em palitos de prateados,
Insuportáveis, sem mente.
A neve goteja estilhaços de escuridão,
Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e tirar
Sapatos, para lustrá-los com carbono,
Pois neles dedos gordos partem amanhã.
Ah, essas janelas tão familiares,
O laço do bebê, confeito verde-folha,
Grossos alemães cochilam em seu insondável Stolz.
E nos ganchos, telefones negros
Brilham,
Brilham e digerem
Mas sem voz. A neve não tem voz.
.
The Munich mannequins
Perfection is terrible, it cannot have children.
Cold as snow breath, it tamps the womb
Where the yew trees blow like hydras,
The tree of life and the tree of life
Unloosing their moons, month after month, to no purpose.
The blood flood is the flood of love,
The absolute sacrifice.
It means no more idols but me,
Me and you.
So, in their sulphur loveliness, in their smiles
These mannequins lean tonight
In Munich, morgue between Paris and Rome,
Naked and bald in their turs,
Orange lollies on silver sacks.
Intolerable, without mind.
The snow drops its pieces of darkness,
Nobody’s about. In the hotels
Hands will be opening doors and setting
Down shoes for a polish of carbon
Into which broad toes will go tomorrow.
O the domesticity of these windows,
The baby lace, the green leaved confectionary,
The thick Germans slumbering in their bottomless Stoiz.
And the black phones on hooks
Glittering
Glittering and digesting
Voicelessness. The snow has no voice.
28 January 1963
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Criança
O olho claro é a coisa mais bonita em você.
Quem dera enchê-lo de patos e cores,
Zôo do novo,
Nomes em que você pensa –
Campânula-de-abril, Cachimbo-de-índio,
Pequenino
Caule sem espinhos,
Lago em cujas margens, imagens
Pudessem ser clássicas e imensas
Não esse tenso
Torcer de mãos, esse teto
Escuro e sem estrela.
.
Child
Your clear eye is the one absolutely beautiful thing.
I want to fill it with color and ducks,
The zoo of the new
Whose names you meditate –
April snowdrop, Indian pipe,
Little
Stalk without wrinkle,
Pool in which images
Should be grand and classical
Not this troublous
Wringing of hands, this dark
Ceiling without a star.
28 January 1963
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Balões
Desde o Natal estão com a gente,
Claros e inocentes,
Bichos de alma oval,
Tomando metade do espaço,
Movendo e roçando sua seda
Invisível, o ar os leva,
Gritando e estourando
Quando feridos, murchando até o fim, em convulsão.
Cabeça de gato amarela, peixe azul –
Em vez de uma mobília velha
Com que luas estranhas convivemos:
Esteiras, paredes brancas,
E estes globos peregrinos
Cheios de ar leve, verde ou vinho,
Divertindo
O coração como desejos ou pavões
Livres, abençoando
O antigo chão com suas penas
Folheadas em metal.
Seu irmão caçula
Está fazendo
O balão miar feito um gatinho.
Parece ver
Do outro lado um mundo cor-de-rosa, comestível,
Ele morde,
E cai
Pra trás, jarra cheia,
Contemplando um mundo claro como água.
Um trapo vermelho
Sobra em seus dedinhos.
.
Balloons
Since Christmas they have lived with us,
Guileless and clear,
Oval soul-animals,
Taking up half the space,
Moving and rubbing on the silk
Invisible air drifts,
Giving a shriek and pop
When attacked, then scooting to rest, barely trembling.
Yellow cathead, blue fish –
Such queer moons we live with
Instead of dead furniture!
Straw mats, white walls
And these traveling
Globes of thin air, red, green,
Delighting
The heart like wishes or free
Peacocks blessing
Old ground with a feather
Beaten in starry metals.
Your small
Brother is making
His balloon squeak like a cat.
Seeming to see
A funny pink world he might eat on the other side of it,
He bites,
Then sits
Back, fat jug
Contemplating a world clear as water.
A red
Shred in his little fist.
5 February 1963
– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.
§
Palavras
Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
.
Words
Axes
After whose stroke the wood rings,
And the echoes!
Echoes travelling
Off from the center like horses.
The sap
Wells like tears, like the
Water striving
To re-estabilish its mirror
Over the rock
That drops and turns,
A white skull,
Eaten by weedy greens
Years later I
Encounter them on the road —
Words dry and riderless,
The indefatigable hoof-taps.
While
From the bottom of the pool, fixed stars
Govern a life.
– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.
§
A chegada da caixa de abelhas*
Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.
Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.
Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.
Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu deus, juntas!
Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.
Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.
Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los.
A caixa é apenas temporária.
.
The arrival of the bee box
I ordered this, clean wood box
Square as a chair and almost too heavy to lift.
I would say it was the coffin of a midget
Or a square baby
Were there not such a din in it.
The box is locked, it is dangerous.
I have to live with it overnight
And I can’t keep away from it.
There are no windows, so I can’t see what is in there.
There is only a little grid, no exit.
I put my eye to the grid.
It is dark, dark,
With the swarmy feeling of African hands
Minute and shrunk for export,
Black on black, angrily clambering.
How can I let them out?
It is the noise that appalls me most of all,
The unintelligible syllables.
It is like a Roman mob,
Small, taken one by one, but my god, together!
I lay my ear to furious Latin.
I am not a Caesar.
I have simply ordered a box of maniacs.
They can be sent back.
They can die, I need feed them nothing, I am the owner.
I wonder how hungry they are.
I wonder if they would forget me
If I just undid the locks and stood back and turned into a tree.
There is the laburnum, its blond colonnades,
And the petticoats of the cherry.
They might ignore me immediately
In my moon suit and funeral veil.
I am no source of honey
So why should they turn on me?
Tomorrow I will be sweet God, I will set them free.
The box is only temporary.
– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.
* Tradução Ana Cristina Cesar e Ana Cândida Perez
§
Elmo* **
Para Ruth Fainlight
Eu conheço o fundo, ela diz. Eu conheço com minha mais profunda raiz:
É o que tu temes
Eu não temo: estive lá.
É o mar o que tu ouves em mim,
Sua insatisfação?
Ou a voz do nada, tua loucura?
O amor é uma sombra.
Como mentes e choras por ele.
Ouve: são seus cascos: fugiu como um cavalo.
A noite inteira galoparei assim, impetuosa,
Até que tua cabeça seja uma pedra, teu travesseiro um descampado,
Ecoando, ecoando.
Ou devo trazer-te o som do veneno?
É a chuva este silêncio.
E esse é seu fruto: branco, como arsênico.
Sofri a atrocidade do pôr-do-sol
Calcinada até a raiz
Minhas vermelhas entranhas queimadas como garras de arame
Agora me desfaço em pedaços que voam como projéteis
Vento tão violento
Não tolera nenhum amparo: terei de gritar
…………………………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………………
Esse grito mora em mim
Toda noite ele escapa,
Procurando, com as garras, alguma coisa para amar.
Vivo ameaçado por este ser escuro
Que dorme em mim;
O dia inteiro sinto seus macios, malignos movimentos
Nuvens passam e se dispersam.
Serão essas as faces do amor, essas pálidas irremediáveis?
É para isso que meu coração se agita?
Sou incapaz de mais conhecimento.
Quem é esse, esse rosto
Assassino em seu estrangular de ramos?
Seu beijo ácido de serpente
Petrifica o desejo. São lentos, erros isolados
Que matam, que matam, que matam.
.
Elm
For Ruth Fainlight
I know the bottom, she says. I know it with my great tap root:
It is what you fear.
I do not fear it: I have been there.
Is it the sea you hear in me,
Its dissatisfactions?
Or the voice of nothing, that was your madness?
Love is a shadow.
How you lie and cry after it
Listen: these are its hooves: it has gone off, like a horse.
All night I shall gallop thus, impetuously,
Till your head is a stone, your pillow a little turf,
Echoing, echoing.
Or shall I bring you the sound of poisons?
This is rain now, this big hush.
And this is the fruit of it: tin-white, like arsenic.
I have suffered the atrocity of sunsets.
Scorched to the root
My red filaments burn and stand, a hand of wires.
Now I break up in pieces that fly about like clubs.
A wind of such violence
Will tolerate no bystanding: I must shriek.
The moon, also, is merciless: she would drag me
Cruelly, being barren.
Her radiance scathes me. Or perhaps I have caught her.
I let her go. I let her go
Diminished and flat, as after radical surgery.
How your bad dreams possess and endow me.
I am inhabited by a cry.
Nightly it flaps out
Looking, with its hooks, for something to love.
I am terrified by this dark thing
That sleeps in me;
All day I feel its soft, feathery turnings, its malignity.
Clouds pass and disperse.
Are those the faces of love, those pale irretrievables?
Is it for such I agitate my heart?
I am incapable of more knowledge.
What is this, this face
So murderous in its strangle of branches?——
Its snaky acids hiss.
It petrifies the will. These are the isolate, slow faults
That kill, that kill, that kill.
– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.
* Tradução Ana Cristina Cesar e Ana Cândida Perez
** A tradução encontrada omite os seguintes tercetos: “The moon, also, is merciless: she would drag me/ Cruelly, being barren./ Her radiance scathes me. Or perhaps I have caught her.// I let her go. I let her go/ Diminished and flat, as after radical surgery./ How your bad dreams possess and endow me.”
§
Outono de Rã
O verão envelhece, mãe impiedosa.
Os insetos vão escassos, esquálidos.
Em nossos lares palustres nós apenas
Coaxamos e definhamos.
As manhas se dissipam em sonolência.
O sol brilha pachorrento
Entre caniços ocos. As moscas não chegam a nós.
O charco nos repugna.
A geada cobre até aranhas. Obviamente
O deus da plenitude
Está morando longe daqui. Nosso povo rareia
Lamentavelmente.
.
Frog autumn
Summer grows old, cold-blooded mother.
The insects are scant, skinny.
In these palustral homes we only
Croak and wither.
Mornings dissipate in somnolence.
The sun brightens tardily
Among the pithless reeds. Flies fail us.
he fen sickens.
Frost drops even the spider. Clearly
The genius of plenitude
Houses himself elsewhwere. Our folk thin
Lamentably.
– Sylvia Plath, em “Antologia da nova poesia norte-americana”. [seleção e tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
§
Colher amoras
Ninguém nas veredas e nada, nada além das amoras,
Amoras de ambos os lados, embora mais à direita
Uma aléia de amoras descendo em curva e um mar
Se alçando lá no fim. Amoras
Grandes como o meu polegar e a silenciar como olhos
De ébano nas sebes, gordas
De sumo azul-vermelho. O sumo esbanjam entre meus dedos.
Eu não pedira esta fraternidade de sangue: — elas na certa me amam.
E se acomodam em meu jarro, achatando-se os lados.
No alto, as gralhas negras, revoada cacofônica
— Pedaços de papel queimado girando num céu a pleno.
É delas a única voz protestando, protestando…
Acho que o mar não aparecera.
As campinas altas e verdes resplandecem como acesas por dentro.
Chego a um arbusto cheio de amoras tão maduras que o arbusto é de moscas
Pendentes, suas barrigas verde-azuladas e os vitrais das asas numa tela chinesa.
A festa de mel das amoras alvoroçou-as. Elas acreditam no céu.
Uma curva mais: amoras e arbustos terminam.
Tudo o que vem agora é o mar.
De entre dois morros uma súbita brisa se afunila em direção a mim
E me esbofeteia a face.
Esses montes são muito verdes e doces para quem provou sal.
Entre eles, sigo a trilha das ovelhas. Numa última curva
Alcanço a face norte dos montes, cor de lararja e rocha
E a face olha para nada, nada exceto um grande espaço
De luzes brancas metálicas; nada exceto um ruído de ferramentas sobre a prata,
Os golpes e golpes contra um metal intratável.
.
Blackberrying
Nobody in the lane, and nothing, nothing but blackberries,
Blackberries on either side, though on the right mainly,
A blackberry alley, going down in hooks, and a sea
Somewhere at the end of it, heaving. Blackberries
Big as the ball of my thumb, and dumb as eyes
Ebon in the hedges, fat
With blue-red juices. These they squander on my fingers.
I had not asked for such a blood sisterhood; they must love me.
They accommodate themselves to my milkbottle, flattening their sides.
Overhead go the choughs in black, cacophonous flocks—
Bits of burnt paper wheeling in a blown sky.
Theirs is the only voice, protesting, protesting.
I do not think the sea will appear at all.
The high, green meadows are glowing, as if lit from within.
I come to one bush of berries so ripe it is a bush of flies,
Hanging their bluegreen bellies and their wing panes in a Chinese screen.
The honey-feast of the berries has stunned them; they believe in heaven.
One more hook, and the berries and bushes end.
The only thing to come now is the sea.
From between two hills a sudden wind funnels at me,
Slapping its phantom laundry in my face.
These hills are too green and sweet to have tasted salt.
I follow the sheep path between them. A last hook brings me
To the hills’ northern face, and the face is orange rock
That looks out on nothing, nothing but a great space
Of white and pewter lights, and a din like silversmiths
Beating and beating at an intractable metal.
– Sylvia Plath, em “Antologia da nova poesia norte-americana”. [seleção e tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
§
Apreensões
Existe este muro branco, acima do qual o céu se faz —
Infinito, verde, todo intocável.
Anjos nadam ali, a as estrelas, em indiferença também.
Eles são meu meio. O sol se esvai neste muro, sangrando suas luzes.
Um muro cinza agora, arranhado a sangrento.
Não há como escapar da mente?
Passos atrás de mim espiralam poço adentro.
Não há árvores nem aces neste mundo,
Só existe um azedume.
Este muro vermelho recua continuamente:
Um punho vermelho, abrindo a fechando,
Dois sacos de papel cinza —
É disco que eu sou feita, disco a de um terror
De rodar sob crazes a uma chuva de pietás.
Num muro negro, pássaros inidentificáveis
Giram suas cabeças a gritam.
Não se fala de imortalidade entre eles!
Frios brancos nos alcançam:
Movem-se com pressa.
.
Apprehensions
There is this white wall, above which the sky creates itself –
Infinite, green, utterly untouchable.
Angels swim in it, and the stars, in indifference also.
They are my medium.
The sun dissolves on this wall, bleeding its lights.
A gray wall now, clawed and bloody.
Is there no way out of the mind?
Steps at my back spiral into a well.
There are no trees or birds in this world,
There is only sourness.
This red wall winces continually:
A red fist, opening and closing,
Two gray, papery bags –
This is what I am made of, this and a terror
Of being wheeled off under crosses and a rain of pietas.
On a black wall, unidentifiable birds
Swivel thier heads and cry.
There is no talk of immortality among these!
Cold blanks approach us:
They move in a hurry.
– Sylvia Plath, em “Sylvia Plath – XXI poemas”. [tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves]. Mariana/MG: Editora Livre, 1994.
§
Asilo de velhas
Fendidas em negro, feito besouros,
Frágeis como cerâmica antiga
Que um sopro faria em pedaços,
As velhas se arrrastam aqui
Para o sol nas rochas ou
Se escoram contra o muro
Cujas pedras guardam algum calor.
Agulhas tecem num ave-adunco
Contraponto a suas vozes:
Filhos, filhas, filhas a filhos,
Distantes a frios como fotos,
Netos que ninguém conhece.
A idade gasta o melhor pano negro
Vermelho-ferrugem ou verde como líquens.
Ao grito-da-conga os velhos fantasmas juntam-se
Para enxotá-las da relva.
De camas em fileiras como caixões
As senhoras de touca riem.
E a Morte, aquele abutre de cabeça branca.
Estaca em halls onde o pavio da vela
Encurta quando respiram.
.
Old ladies’ home
Sharded in black, like beetles,
Frail as antique earthenwear
One breath might shiver to bits,
The old women creep out here
To sun on the rocks or prop
Themselves up against the wall
Whose stones keep a little heat.
Needles knit in a bird-beaked
Counterpoint to their voices:
Sons, daughters, daughters and sons,
Distant and cold as photos,
Grandchildren nobody knows.
Age wears the best black fabric
Rust-red or green as lichens.
At owl-call the old ghosts flock
To hustle them off the lawn.
From beds boxed-in like coffins
The bonneted ladies grin.
And Death, that bald-head buzzard,
Stalls in halls where the lamp wick
Shortens with each breath drawn.
– Sylvia Plath, em “Sylvia Plath – XXI poemas”. [tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves]. Mariana/MG: Editora Livre, 1994.
§
As túlipas
As túlipas são demasiado sensíveis; é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apercebendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
[nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
[enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo aos
[cirurgiões.
Apoiaram-me a cabeça entre as almofadas e a dobra do lençol
como um olho entre duas pálpebras brancas que jamais
[se fecham.
Estúpida pupila, ela que tem de estar atenta tudo.
As enfermeiras vão e vêm, não perturbam,
passam com as suas toucas brancas como gaivotas voando
[para terra,
com as mãos sempre ocupadas, todas idênticas,
sendo assim impossível dizer quantas são.
Para elas o meu corpo é um seixo, tratam-no como a água
trata os seixos sobre os quais corre, polindo-os suavemente.
Trazem-me o torpor nas suas agulhas reluzentes,
[trazem-me o sono.
Neste momento perdi-me, estou cansada das minhas bagagens…
A minha maleta de couro como uma caixa de pílulas
[negra,
o marido e a filha sorrindo-me do retrato de família;
os seus sorrisos penetram-me na pele, como pequenos
[anzóis sorridentes.
Deixei a vida correr, um velho cargueiro com trinta anos
agarrando-se obstinadamente ao meu nome e endereço.
Limparam-me de todas as minhas associações afectivas.
Aterrada e nua sobre a maca acolchoada de plástico
[verde
vi o meu serviço de chá, as minhas cómodas de roupa
[branca, os meus livros
afundarem-se até os perder de vista, e a água cobriu-me
[a cabeça.
Sou uma freira agora, nunca fui tão pura.
Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
[toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
[libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
[bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram; imagino-os
introduzindo-as na boca como se fossem hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
[bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
[meu corpo.
Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim como a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
[lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
[recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.
Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
[ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.
Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
[perigosos;
abrem-se como a boca de um felino africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
[me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de um país tão longínquo como a saúde.
.
Tulips
The tulips are too excitable, it is winter here.
Look how white everything is, how quiet, how snowed-in.
I am learning peacefulness, lying by myself quietly
As the light lies on these white walls, this bed, these hands.
I am nobody; I have nothing to do with explosions.
I have given my name and my day-clothes up to the nurses
And my history to the anesthetist and my body to surgeons.
They have propped my head between the pillow and the sheet-cuff
Like an eye between two white lids that will not shut.
Stupid pupil, it has to take everything in.
The nurses pass and pass, they are no trouble,
They pass the way gulls pass inland in their white caps,
Doing things with their hands, one just the same as another,
So it is impossible to tell how many there are.
My body is a pebble to them, they tend it as water
Tends to the pebbles it must run over, smoothing them gently.
They bring me numbness in their bright needles, they bring me sleep.
Now I have lost myself I am sick of baggage——
My patent leather overnight case like a black pillbox,
My husband and child smiling out of the family photo;
Their smiles catch onto my skin, little smiling hooks.
I have let things slip, a thirty-year-old cargo boat
stubbornly hanging on to my name and address.
They have swabbed me clear of my loving associations.
Scared and bare on the green plastic-pillowed trolley
I watched my teaset, my bureaus of linen, my books
Sink out of sight, and the water went over my head.
I am a nun now, I have never been so pure.
I didn’t want any flowers, I only wanted
To lie with my hands turned up and be utterly empty.
How free it is, you have no idea how free——
The peacefulness is so big it dazes you,
And it asks nothing, a name tag, a few trinkets.
It is what the dead close on, finally; I imagine them
Shutting their mouths on it, like a Communion tablet.
The tulips are too red in the first place, they hurt me.
Even through the gift paper I could hear them breathe
Lightly, through their white swaddlings, like an awful baby.
Their redness talks to my wound, it corresponds.
They are subtle : they seem to float, though they weigh me down,
Upsetting me with their sudden tongues and their color,
A dozen red lead sinkers round my neck.
Nobody watched me before, now I am watched.
The tulips turn to me, and the window behind me
Where once a day the light slowly widens and slowly thins,
And I see myself, flat, ridiculous, a cut-paper shadow
Between the eye of the sun and the eyes of the tulips,
And I have no face, I have wanted to efface myself.
The vivid tulips eat my oxygen.
Before they came the air was calm enough,
Coming and going, breath by breath, without any fuss.
Then the tulips filled it up like a loud noise.
Now the air snags and eddies round them the way a river
Snags and eddies round a sunken rust-red engine.
They concentrate my attention, that was happy
Playing and resting without committing itself.
The walls, also, seem to be warming themselves.
The tulips should be behind bars like dangerous animals;
They are opening like the mouth of some great African cat,
And I am aware of my heart: it opens and closes
Its bowl of red blooms out of sheer love of me.
The water I taste is warm and salt, like the sea,
And comes from a country far away as health.
– Sylvia Plath, em “Pela água” (Crossing the Water). Sylvia Plath. [tradução de Maria de Lurdes Guimarães]. Lisboa: Editora Assírio e Alvim, 1990.
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Saiba mais sobre Sylvia Plath:
:: Sylvia Plath – reminiscência e memória
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© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexandre da Silva