LITERATURA

Tapiiraiauara – João Guimarães Rosa

Dera-se que Iô Isnar trouxera-me a caçar a anta, na rampa da serra. Sobre sua trilha postávamo-nos em ponto, à espera, por onde havia de descer, batida pelos cães. Sabia-se, a anta com o filhote. Acima, a essa hora, ela pastava, na chapada.

Vistosa, seca manhã, entre lamas, a fim de assassinato; Iô Isnar se regozijava, duro e mau como uma quina de mesa. Eu olhava os topos das árvores. Fizera-me vir. Era o velho desgraçado.

— “A carne é igual à da vaca: lombo, o coração, fígado…” Matava-a, por distração, suponha-se; para esquecer-se do espírito. Iô Isnar tinha problema. — “Ecô”! — deu a soltada dos cachorros, aplicados rumo arriba.

— “Mora no beira-córrego, em capão de mato. Faz um fuxico, ali, uns ramos; nesse enredado, elas dormem.” A anta, que ensina o filhote a nadar: coça-o leve com os dentes, alongando o trombigo.

— “Sai dos brejos, antes do sol. Sobe, para vir arrancar folhas novas de palmeiras, catar frutinhas caídas, roer cascas do ipê, angico, peroba…”

O problema de Iô Isnar era noutro nível, de dó e circunstância, viril compungência. Seu filho achava-se em cidade, no serviço militar. — “Haverá mais guerra? O Brasil vai?”… perguntara, muito, expondo a balda.

A anta, e o filhote — zebrado riscado branco como em novos eles são — tão gentil.

— “Ah, o couro é cabedal bom, rijo, grosso. Dá para rédeas, chicotes, coisas de arreios…”

Sobre lá, a mil passos, a boa alimária fuçava araticuns e mangabas do chão, muricis, a vagem da faveira. Ao meio-dia buscava outros pântanos, lagoas, donde comia os brotos de taquaril e rilhava o coco do buriti, deixada nua a semente. Com pouco ia desastrar-se com os cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda, aventando-lhes o assomar.

Eram horas episódicas.

De tocaia, aqui, no rechego, a peitavento, Iô Isnar comodamente guardava-a, rês, para tiro por detrás da orelha, o melhor, de morte. Dava osga, a desalma. Moeu-me. Merecia maldição mansamente lançada. Iô Isnar, apurado, ladino no passatempo.

Havendo que o obstar?

Levantavam-na quiçá já os cães anteiros afirmados, cruza de perdigueiros e cabeçudos. Acossada, prende às vezes o cachorro com o pé, e morde-o; despistava-os?

— “É peta, qualquer cachorrinho prático segura uma anta!”

Valesse-lhe, nem, andar escondida nos matos, ressabiando os descampados. Sem longe, sem triz, ao grado de um Iô Isnar, em sórdido folguedo: condenada viva.

Mas, que, então, algum azar o impedisse — Anhangá o transtornasse!

Só árvores através de árvores. Doer-se de um bicho, é graça. De ainda aurora, a anta passara fácil por aqui, subindo do rio, de seu brejo-de-buritis, dita vereda. Marcava-se o bruto rastro: aos quatro e três dedos, dos cascos, calcados no sulco fundo do carreiro, largo, no barro bem amarelo, cor que abençoa.

Havia urgência.

Podia-se uma ideia.

À mão de linguagem. A de meneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no dói-lhe-dói, no tintim da moeda!

Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto, temente ao diabo. A pingo de palavras, com inculcações, em ordem a atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.

Ponteiro menor, a anta; ponteiro grande, os cães.

E dependi daquilo.

— “Sim, o Brasil mandará tropas…” — deixei-lhe; conforme à teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.

— “Cruz!?” — ele fez, encolhera elétrico os ombros.

Eu, mais, numa ciciota: — “É grave…” Luta distante, contra malinos pagãos, cochinchins, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos…

Iô Isnar, voz ingrata, já ele em outras oscilações: — “Deveras?” — coçou a nuca, conquanto. Acelerava seu sentir; pôs-se cinco rugas na testa, como uma pauta de música. Vi o capinzal, baixas ervas, o meigo amarelo do lameiro, uma lama aprofundada. Ele era um retrato.

Tomei uns momentos.

Devagar, a ministrar, com opinião de martelo e prego: — “Seu filho único…” Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os suplícios mais asiáticos. — “Se a sorte sair em preto…” — o tema fundamental.

Iô Isnar — a boca aberta ainda maior, porque levantara a cabeça — e um olhar homicida. Malhava-me fogo?

Só futuras sombras não logravam porém o desandamento de um cru caçador, seu coração a desarrazoar-se. Talvez a menção prática de providências vingasse sacudi-lo: — “Ajudo-o… Mas tem de vir comigo à cidade…” — propinei.

Iô Isnar sumiu a cor do rosto, perdera o conselho; o queixo trêmulo. Valha-o a breca! Operava, o método. Vinha-lhe ao extremo dos dedos o pânico, das epidermes psíquicas. Ele estava de um metal. Ele era maquinalmente meu. Obra de uns dez minutos.

No súbito.

A alarida, a pouco e pouco, o re-eco — trupou um galope, em direitura, à abalada, dava vento.

E foi que: mal coube em olhos: vulto, bruno-pardo, patas, pelo estreito passadouro — tapiruçu, grã-besta, tapiira… — o coto de cauda. Com os cães lhe atrás.

Iô Isnar falhara, a cilada, o tiro; desexercera-se de mãos, não afirmara a vista.

Travavam-se, em estafa, os cães, com latidos soluçados.

Embaixo, lá a anta soltara o estridente longo grito — de ao se atirarem à água, o filhote e ela — de em salvo.

Refez-se a tranquilidade.

Iô Isnar rezava, feito se moribundo, se derrubado, tripudiado pelo tapir, que defeca mesmo quando veloz no desembesto: seu esterco no chão parecia o de um cavalo.

— João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: Terceiras estórias”. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

***

EDITORAS

Saiba mais sobre Guimarães Rosa:

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Violonista André Siqueira lança álbum ‘Aura’

Composição e improvisação emergem como conceito no álbum “Aura”, novo trabalho do violonista e compositor…

21 horas ago

Barão Vermelho apresentará o seu novo show ‘Do Tamanho da Vida’ no Circo Voador (RJ)

O Barão Vermelho vai apresentar seu novo show “Do Tamanho da Vida”, título da música…

24 horas ago

Fi Bueno lança ‘Que Clichê’, parceria com Zeca Baleiro

Chegou nas plataformas digitais “Que Clichê”, single de Fi Bueno que estará em seu próximo álbum autoral.…

1 dia ago

Cristina, 1300: A escrita visual e a imemorabilidade poética de Affonso Ávila, por  Clarice Lippmann

Em tempos onde tudo é enquadrado em minutos palatáveis e formatos “acessíveis”, a poesia e…

1 dia ago

O peso das formas, do padrão e o vazio do pertencimento, por Clarice Lippmann

Em um mundo onde as diferenças se dissolvem sob a rigidez das formas, A Outra…

1 dia ago

A ciência, o jogo e o fascínio pela roleta no universo de “The Eudaemonic Pie”

A roleta tem inspirado gerações de jogadores com promessas de vitórias a cada giro e…

1 dia ago