sexta-feira, dezembro 20, 2024

Tarde de sábado, manhã de domingo – José J. Veiga

O erro começou quando aceitamos o convite de Josias. Mas também pode ser que aceitar era o papel estipulado para nós naquele dia. Quem diz que tudo o que vai acontecendo na vida das pessoas não já aconteceu para elas muito tempo antes, e elas só têm que ir cumprindo as passagens marcadas, sem poderem desobedecer? Pode ser que seja como no cinema: a fita já foi feita, não adianta torcer por um lado nem por outro; a torcida não altera o fim. Mesmo assim, penso que o erro começou quando aceitamos o convite de Josias.
Depois do almoço eu preparei a vara de anzol e a latinha das minhocas e fiquei atento. Quando ouvi o assovio combinado avisei minha mãe e fui encontrar Rosendo e Dorico na esquina. Dessa vez a gente ia experimentar o Poço da Manjerona, lugar fundo, perigoso, mas muito carregado de peixe. Merenda não era preciso, lá não faltava juá, veludinho, amora; mesmo assim passei na venda de Horacinho Conde e comprei seis garrafinhas de cacau com licor dentro, duas para cada um, porque na certa Rosendo e Dorico iam levar doces, biscoitos, e eu não queria ficar só no venha-a-nós.
A areia fina do caminho parece que tinha acabado de sair do forno, era a gente erguer um pé e o outro já estava ardendo pedindo socorro, íamos pulando e catando os poucos tufos de capim que apareciam aqui e ali. Mas foi bom porque ninguém parou para olhar passarinho, jogar pedra em calango, pegar borboletas, essas bobagens que só servem para atrasar pescaria.
A água funda parada, fresca na sombra das folhagens, não era para ser desperdiçada naquele calor. Eu dei a ideia de uma caída, Dorico aprovou e foi tirando a roupa; Rosendo falou em perigo de congestão, mas ele estava era com medo do poço que já tinha matado a Manjerona, isso eu percebi e fiquei meio com medo também. Olhei Dorico marcando pulo e pulando, acabei de tirar a roupa e pulei atrás sem pensar. Por ter medo de doença, quarto escuro e outras coisas Rosendo até que era chamado de Rosinha, e eu não queria que mudassem o meu nome, que era fácil de amulherar.
Demos só uma caída para não espantar os peixes, pulando um pouco para ajudar o corpo a secar e vestimos a roupa, cada um iscou o seu anzol e começamos a pescaria. A bandeja formada na água pela queda do meu anzol ainda não tinha se desmanchado e um peixe já mordia a isca. Fisguei depressa, puxei um lambari, mas tão pequeno que soltei de novo.
— Jogou fora? Tudo serve! — disse Rosendo penalizado. Eu disse que se aquele lambarizinho fosse pegado no meio da pescaria eu não me incomodava de ficar com ele, mas para o primeiro só servia um grande.
Daí a pouco a linha de Rosendo esticou, ele fez força, a vara amolgou. Seria matrinxã?
— Dá um arranco! Está esperando o quê? — disse Dorico nervoso.
Rosendo obedeceu, a vara quase quebrou. Ele pegou pela linha, puxou, saiu uma bainha de facão fisgada pela alça. Eu e Dorico rimos, Rosendo fechou a cara, jogou a bainha no mato atrás dele.

Ficamos ali tirando e jogando o anzol, nenhum peixe mordia. Rosendo disse que a culpa era minha e de Dorico, com a nossa mania de tomar banho tínhamos espantado os peixes. Dorico resmungou que pescaria é assim mesmo, quem não tem paciência não deve se aventurar; pescar não é apanhar jabuticaba.
Eu já estava com vontade de mudar de lugar, mas com essa crítica de Dorico resolvi aguentar um pouco mais. Mudei a minhoca, que já estava branquela de tanto ficar n’água, esperei. De repente a linha de Dorico retesou, ele fez força, e pelo jeito que a linha ia e vinha quando ele puxava e afrouxava eu vi que aquilo não era peixe. Dorico puxou devagar e seguido, com tato para não arrebentar a linha, e tirou uma maçaroca de gravetos.
— É. Os peixes estão ariscos mesmo. Vamos ver noutro lugar — disse ele.
Recolhemos os anzóis, enrolamos a linha e fomos procurar outro poço. Para não entrar no mato fechado da beira do rio voltamos à estrada, me atrasei apanhando uns veludinhos, estava limpando um para comer quando ouvi trote de animal atrás. Dei caminho sem olhar, levei uma chicotada no ombro. Me virei, era Josias montado na besta de sela deles.
— Aí, peba! — disse ele rindo, antes que eu xingasse. — Pensou que era o quê? — Pensei nada. Me assustei.
— Se doeu me desculpe. Pescando? Pegou muito? Expliquei a falta de sorte, a mudança de lugar. Pedi garupa para alcançar os outros. Dei a vara para ele segurar, e quando ia montando Dorico e Rosendo apareceram voltando.
— Ih, rapaz! Você subiu aí sozinho? Não vai poder descer — disse Dorico.
Rosendo caiu na risada, ele achava graça em tudo. Josias vingou-se perguntando se eu e Dorico tínhamos agora um bobo para carregar nosso peixe. Rosendo desmanchou o riso de repente, ele era meio lerdo para arranjar resposta na hora. Josias derrubou uma abelha com uma chicotada e propôs: — Sabem o quê? Vamos comigo no sítio. Vou dar uma olhada ligeira lá e volto logo. É légua e meia só.
Rosendo disse que não podia, não saía para longe sem licença da mãe.
— Então vamos só nós três — disse Dorico. Vendo que Rosendo estava em dúvida, manobrei: -— É mesmo. Rosendo fica aí pescando.
Pois sim que Rosendo tinha coragem de ficar sozinho na beira do rio, e muito menos perto do Poço da Manjerona. Ele olhava para um, para outro, consultando, acuado. Por fim, entregou-se: — Vamos. Mas nada de inventar dormir lá.
— Nem se quisesse — disse Josias. A casa está vazia, não tem ninguém lá.
— Quem é que vai a pé e quem é que vai montado? — Dorico quis saber.
— Vamos revezando — disse Josias. — Um na garupa, outro na sela.
Escondemos as varas numa moita, marcamos o lugar quebrando um pé de caité. Josias encostou a mula num barranco, Dorico subiu para a garupa, Josias picou a mula.
Quando chegou a minha vez de montar com Rosendo eu vi que ele era ainda mais mole do que a gente pensava. Para ele subir na garupa foi um custo, fazia menção de subir, ficava com medo, não ia. A mula percebeu e se mexia quando ele ia montando, até parecia brincadeira. Propus que ele montasse na sela e me desse a garupa, Josias proibiu, disse que a mula podia disparar quando sentisse mão mole na rédea. Finalmente Josias segurou a mula pelo freio, Dorico ajudou Rosendo, só assim ele montou.
Se pra montar Rosendo foi mole, montado piorou. Ele não se firmava na garupa, parecia uma abóbora solta, estava sempre escorregando para um lado ou para o outro, com isso me puxava também, duas vezes quase caímos os dois, outra vez eu tive que catar ele já quase no vazio da mula.
No córrego perto do sítio a mula parou para beber água, afundou o queixo no remanso e parecia que não ia tirar mais. Vendo o gosto dela em chupar a água pelo pescoço acima, fazendo dois pilõezinhos no lugar onde batia o vento da respiração, eu também deitei na beira do córrego e bebi como animal. Os outros fizeram o mesmo, depois molhamos a cabeça para refrescar e deitamos na sombra. Com tanta água balançando na barriga quando a gente mexia o corpo na grama, ninguém tinha vontade de andar nem de conversar. O assovio do rabo da mula espantando mosquito dava vontade de dormir, eu pelo menos cheguei a cochilar. De repente Josias deu aquele grito: — Uma cobra! Me mordeu! Bem aqui no pescoço! Me levantei de um pulo, eu tinha tanto medo de cobra como de assombração. Olhei e ainda vi o resto de uma cobrinha parda sumindo atrás de uma pedra. Procurei um pau para matá-la, Josias falou gemendo: — Deixe a cobra e me acode que ela me pegou feio. Cheguei perto, olhei o lugar que ele mostrava no pescoço, vi os buraquinhos, — dois vermelhos em cima; dois mais apagados embaixo. Rosendo e Dorico vieram correndo afivelando o cinto, cada um saindo de detrás de uma moita.
— Se vocês chuparem o lugar depressa, o veneno sai — disse Josias gemendo. — Mas tem que ser depressa, senão não adianta mais.
Olhei para Dorico, para Rosendo, esperando que um deles chupasse. Ouvi dizer que para chupar veneno de cobra é preciso forrar a boca com fumo, ninguém ali tinha fumo. Josias rolava para um lado e para o outro no capim, chorando, pedindo: — Façam essa caridade, senão eu morro! Camilo! Dorico! Chupem o sangue, pelo amor de Deus! Eu não quero morrer! Não me deixem morrer! — Quem sabe se espremendo o lugar… — disse Dorico. Me abaixei para espremer, Josias gritou que deixasse, estava doendo demais e não ia adiantar. O pescoço dele estava vermelho, o avermelhado se espalhando, para cima já tomava a orelha.
— Não estou enxergando direito. Parece que tem uma peneira na minha frente. Quero beber água — disse Josias com dificuldade, como se tivesse o queixo preso.
Dorico apanhou uma folha grande de inhame, fez cumbuca, trouxe pingando. Josias quis beber, a água escorreu pelo queixo, molhou todo o peito. Eu apanhei uma folha menor, a cumbuca chegou com um tiquinho de nada, nem isso ele bebeu. A testa, o queixo, o lugar do bigode nele porejavam de suor, e notei que os olhos estavam vidrados. Lembrei dos índios, que dizem que conhecem ervas milagrosas; eu não conhecia nenhuma, peguei uma qualquer desejando que fosse milagrosa, esfreguei na palma da mão para tirar o sumo, não saiu sumo nenhum; mastiguei para fazer papa, fiquei com a língua queimando, parecia que eu tinha chupado brasa. Ajoelhei perto de Josias, perguntei se ele podia continuar viagem, ele não respondeu, só gemia.

Perguntei a Dorico o que era que a gente podia fazer, não adiantava consultar Rosendo, ele estava fincado no chão como estaca desde o princípio, os olhos arregalados, olhando para um e para outro.
— Temos que levar para o sítio. Aqui não adianta ficar — disse Dorico. — Um de nós dois monta e leva ele na frente da sela.
Passei a rédea por cima do pescoço da mula, montei. Dorico ergueu Josias e me ajudou a enganchar ele na cabeceira da sela, ele estava molengo como menino dormindo.
Deitamos Josias na mesa da sala, foi mais fácil porque os colchões das camas estavam enrolados e amarrados. Com muito custo encontramos uma caixa de fósforo debaixo de uma panela na prateleira da cozinha, gastamos quase todos os paus e não conseguimos acender fogo. Dorico achou melhor desistir, íamos precisar de fósforo para acender a luz de noite. Josias não gemia mais, só roncava, de vez em quando engrolava umas palavras que ninguém entendia.
Dorico desarreou a mula e mandou Rosendo arranjar milho, Rosendo rodou, rodou e não achou; eu fui ao paiol, tinha milho para uma tropa, descasquei umas espigas e pus no cocho. Rosendo era mesmo um dois-de-paus.
Ficamos sentados no banco da sala vigiando Josias, espantando os mosquitos que queriam pousar na cara dele. Dorico já estava ficando nervoso, disse que era melhor um de nós ir na cidade chamar o pai de Josias com remédio. Rosendo apoiou e pediu que eu fosse, eu entendi que era porque ele não queria ficar sozinho no sítio comigo, Dorico tinha mais paciência com ele.
Arreei a mula, montei — e quem disse que ela saía? Fiz tudo o que eu sabia para forçar um animal a andar, ela levantava a cabeça, dava uns passos de lado, como se aquilo fosse hora de dançar, fungava mas não atendia. Dorico rodou em volta da casa, achou uma vara pontuda, cutucou a mula com ela na anca, nas virilhas, na barriga, ela encolhia o corpo, dava coice de lado, andava para trás, para diante não ia.
— Você bate e eu puxo — disse Dorico.
Ele agarrou as duas bandas da rédea por baixo do queixo da mula, ela fincou as duas mãos no chão e esticava o queixo para diante ao máximo, como quem diz leva-o-queixo-se-quiser, e não dava um passo.
Dorico deu um safanão forte para baixo, largou a rédea, cocou a cabeça.
— Vai não. A desgramada empacou mesmo. Pode descer. Já estava escurecendo e Josias não melhorava, cada vez que eu olhava ele parecia pior, mais largado. Acendemos o candeeiro com os últimos paus de fósforo e ficamos sentados no banco sem saber o que fazer. A nossa esperança era que alguém sentisse a nossa falta, a de Josias principalmente, e se lembrasse de procurar no sítio.
Nas conversas que conversamos, mais eu e Dorico porque Rosendo não abria a boca, descobri que nós dois estávamos ficando com raiva de Josias por ele ter metido na nossa cabeça a ideia daquele passeio. A gente podia estar em casa, ou brincando no largo da igreja, e estava ali naquela situação.
Uma hora eu olhei para Josias e achei ele diferente, assim muito parado, como um boneco de massa que eu vi uma vez jogado num monte de cisco. Senti um arrepio por dentro mas não disse nada, eu não queria ser o primeiro a descobrir.
Dorico levantou para beber água, encheu o copo no pote, enquanto bebia olhou para Josias, parou no meio. Chegou perto da mesa, com a mão esquerda apalpou a testa de Josias. Largou o copo, escutou Josias no peito. Olhou para mim com medo e disse: — Será que ele morreu? Eu acho que ele morreu.
Eu não me assustei muito porque mais ou menos já sabia, mas Rosendo soltou um grito e pulou do banco, olhou para mim, para Dorico, segurou o braço de Josias, falou baixo: — Josia. Josia. Não. Morre não, Josia.
Vendo que Josias não ouvia mais, ele largou o braço de repente e recuou soluçando. O braço caiu largado, a mão bateu na mesa com as costas e fez um barulho fofo. Esse barulho vindo do corpo de Josias como que me acordou, eu sabia que ele estava morto mas ainda não tinha compreendido, ouvindo o barulho compreendi. Olhei para Dorico já sentado no banco, ele chorava baixinho diferente de Rosendo que estava de bueiro aberto. Sentei perto dele, Rosendo sentou também depressa, com medo de ficar em pé.
O vento batendo no candeeiro não deixava a sombra da mesa ficar quieta, e com ela balançando para lá e para cá no chão não era possível pensar firme. Minha vontade era sair dali correndo, para longe, toda a vida, sem parar. De repente Dorico falou alto, zangado: — A culpa foi dele. Quem mandou ele inventar de trazer a gente?
Rosendo olhou espantado para ele, falou pedindo: — Diz isso não! Coitado! Ele morreu!
— Quem mandou? A gente estava tão bem pescando…
Foi ele dizer isso e um vento forte deitou a chama do candeeiro, deitou, eu corri para defendê-la com a mão, foi tarde. A escuridão foi como um mergulho em poço fundo, quando falta o fôlego. Ouvi Rosendo falando baixo: — Camilo… Dorico… Fiquem perto de mim!
Senti uma mão me pegando, gelei de susto. Era Dorico.
— Vamos para fora — disse Dorico.
Saímos agarrados um no outro, tateando pelo encosto do banco, pela parede, encontramos o corredor, avistamos o escuro mais claro da porta.
Sentados no cepo da frente, mais garantidos pela companhia da mula, que cocava as costelas com os dentes ali perto, ficamos esperando a noite passar, falando pouco para não falar muito em Josias, mas não pensar nele era impossível. Eu me lembrei das brigas que tivemos, uma vez chegamos a nos atracar e rolar no chão por causa de uma bobagem de uma lapiseira rachada que ele achou e não quis deixar eu ver; o pior foi que quando ele já estava caído por baixo de mim eu ainda dei um murro no nariz dele e tirei sangue, sem necessidade nenhuma. Depois voltamos a ser amigos, mas será que agora morto ele continuava me perdoando? Para garantia eu pedi perdão em pensamento e prometi rezar por ele na missa.

Aí eu me lembrei que já era quase domingo! A mãe de Josias esperando para a missa e ele não chegando, depois chegando morto… Pensei nisso, na nossa cara na hora de entregar Josias em casa… Criei coragem, dei uma ideia.
— E se a gente deixasse ele aqui e fosse embora? Ninguém sabe que viemos com ele…
No escuro não vi a cara que os outros fizeram; mas ouvi a voz de Rosendo, agora falando alto: — Deixar ele aqui? Sozinho?
Não respondi, esperando Dorico. Ele demorou um pouco, falou.
— A gente podia enterrar ele aqui mesmo e não dizer nada. Deve ter ferramenta aí, quando clarear a gente procura.
— Enterrar aqui? Sem caixão, sem reza? — disse Rosendo, sempre puxando para trás.
— O que é que tem? Já morreu mesmo, e não foi culpa nossa — disse Dorico.
— Isso não. Ele é nosso amigo, não podemos fazer isso. E pode também ser pecado. Temos que levar, de qualquer jeito.
Rosendo falou em pecado, vi logo que não adiantava insistir. Se a gente deixasse o corpo no sítio, ou enterrasse, Rosendo na certa ia contar.
Eu estava muito cansado, recostei na parede e não falei mais, o que eles dois resolvessem eu acompanhava. Pensei na minha cama limpa e arrumadinha, sábado era dia de minha mãe trocar o lençol e a fronha, e só de pensar senti cheiro de pano limpo e da paina do travesseiro. Fiz força para não dormir porque achei que era nossa obrigação ficarmos acordados a noite inteira. Me distraí prestando atenção no cantar dos galos, no berro das vacas, no pio dos curiangos na cerca do curral. De vez em quando eu dava um cochilo e acordava assustado, cuidando ter ouvido a voz de Josias. Com o seria bom se Josias acordasse, assim como quem volta de um desmaio, pulasse da mesa e viesse conversar com a gente, rindo do nosso susto e contando tudo o que tinha passado… Depois nós quatro entrando na cidade como se nada tivesse acontecido…
Finalmente apareceram umas nuvens lanhadas de vermelho por cima do vulto escuro dos morros, sinal de que o dia estava perto. Não demorou muito e a mula levantou-se, abriu as pernas, rolou o corpo entre elas, sacudiu o rabo, estava nova. Levantamos também, esticamos o corpo, esvaziamos a bexiga ali mesmo na frente da casa e entramos na ponta dos pés, evitando de olhar para a mesa. Dorico descobriu um cacho de bananas pendurado em um caibro na despensa, não estavam bem maduras mas comemos algumas, bebemos água por cima.
— Será que a mula desempaca? — disse Dorico.
Arreei a mula sem muita esperança. Dorico montou para experimentar, fizemos de novo tudo aquilo de bater, puxar, cutucar, nada adiantou.
— Tem que ser no pé mesmo — disse Dorico.
Eu disse que a gente podia cortar dois paus grossinhos e arranjar um cobertor ou um lençol para fazer um banguê, Dorico foi contra: — Vamos cortar pau não. Fica tarde. Se tivesse uma rede aí…
Procuramos, não tinha ou estava numa canastra trancada com chave. Na despensa tinha um saco grande com um resto de café. Dorico achou que podia servir; despejamos o café num canto, sacudimos o saco para tirar o cisco, criamos coragem e fomos experimentar se servia.
Enfiamos o saco pelos pés de Josias e fomos puxando pelo corpo acima, ele estava duro como tábua. A cabeça ficou um pouco de fora, tivemos que forçá-la para dentro. Amarramos a boca com uma embira. Dorico pegou pela boca, eu peguei pelas orelhas do fundo, encarregamos Rosendo de dar um jeito de fechar a porta e saímos.
Mas o pano do saco era grosso demais, logo começou a castigar nossas mãos. Eu mudava de mão toda hora, acabei carregando com as duas, e quando fiquei muito cansado chamei Rosendo para ajudar, ele ia atrás sem fazer nada.
Rosendo carregou um pouquinho só, disse que ia largar, largou. Dorico também já não aguentava, mostrou as mãos, estavam mais vermelhas do que as minhas, ele tinha ficado com o lado mais pesado. Descansamos o saco e sentamos na beira da estrada, cada um pensando numa ideia que desse mais certo.
Quem deu solução foi Rosendo, uma solução tão boa que eu fiquei desapontado por ter feito pouco caso dele. Ele apontou um pau comprido no cerrado, guatambu devia ser, e disse que se a gente conseguisse quebrar aquele pau podia prender o saco nele com nossos cintos e carregar no ombro. Dorico olhou o pau, olhou o saco no chão, experimentando a ideia. Depois riu — a primeira vez que um de nós ria depois da chegada no córrego.
— Você até que não é burro não, Rosendo. Vamos ver se quebramos o pau — disse Dorico.
Custou, mas quebramos — pendurando, pisando, torcendo, esfolando as mãos. Depois quebramos a copa, que foi mais fácil, e um ou outro galhinho fino. Prendemos o saco nele com os cintos, como Rosendo disse, amarramos as calças com cipó, fizemos acolchoados de folhas para os ombros e seguimos, nem foi preciso parar para descansar, quando cansava um ombro a gente mudava para o outro.
O nosso medo era encontrar alguém pelo caminho, mas felizmente ninguém achou de andar por aquela estrada naquela hora. Quando íamos chegando na ponte Dorico virou a cabeça para trás e disse: — Vamos combinar. Se alguém perguntar a gente diz que é porco.
Eu achei que não ficava bem, porco sendo um bicho tão sujo. Procurei outro para trocar, vi que nenhum mais servia por causa das pernas.
Quando entramos na cidade eu fui ficando aflito porque nenhum de nós tinha pensado no que dizer na hora de entregar o saco. A minha vontade era largar o saco no corredor da casa de Josias e sair correndo, não dei a ideia porque sabia que Rosendo não ia concordar.
De longe avistamos D. Ritinha na porta olhando para um lado e para o outro. Foi ela nos ver e vir correndo para nós. Se eu pudesse sumir, ficar invisível, virar passarinho…
— Vocês viram o meu Josias? Vocês não estavam juntos? Paramos diante dela, a vara arqueou com a parada. Ninguém teve coragem de responder.
— Ele foi ao sítio para voltar ontem mesmo, e até agora. Pensei que vocês estavam juntos, vocês também sumiram. Estou aflita porque lá não tem ninguém para fazer um chá se ele tiver uma dor. Belmiro quis ir atrás mas não achou animal, e não podia ir a pé por causa do reumatismo.
Rosendo caiu no choro, Dorico caiu no choro. Eu chorei mais forte porque vi a cara de D. Ritinha adivinhando e não querendo acreditar. Com o se fosse uma combinação nossa, baixamos a vara com o saco perto dela e saímos correndo, perseguidos pelo grito dela, até hoje.

— José J. Veiga, no livro “Os melhores contos de J. J. Veiga”. seleção de J. Aderaldo Castelo. São Paulo: Global Editora, 2000.


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