“O que será aquela coisa?”
Foi o que ela quis saber, na Europa, ao ler uma carta de Anita Malfatti sobre a semana de Arte Moderna.
Por Leo Gilson Ribeiro*
Apoiada numa pilha de travesseiros, as mãos inquietas afagando telas minúsculas que está pintando por encomenda, Tarsila do Amaral, 75 anos, tem um sorriso irônico para falar de seus passatempos hoje que está presa a uma cama, depois de uma queda que afetou sua coluna. Levanta o lençol azul florido que cobria dois volumes grossos sobre os quais apoiava os cotovelos: “Eu gosto de ler dicionários, imagine que hoje aprendi a pronúncia exata de ‘exegeta'”. Coquete, prefere não ser fotografada acamada (“Por que não reproduzem as fotos de quando eu era jovem?”). Não conhece bem a música de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque: são nomes que ouve no rádio mas muda o dial, “pois sempre achei a música popular tão banal, às vezes gosto é de Debussy, tão poético e colorista!” Servindo canjas brasileiras a Cocteau em Paris e vinhos da adega do Tour s’Argent a Mário de Andrade em São Paulo, a “musa” (ausente) da Semana de 22 achou-se dividida quando houve a “guerra da lagosta” entre a França (país que adora e cuja língua fala com um sotaque de senhorita aristocrática da alta burguesia parisiense) e o Brasil, mas predominou a veia nacionalista: “Afinal, as lagostas são nossas!”
Não se interessa pela arte moderna, para ela os móbiles de Calder não são arte: “O senhor acha que fazer equilibrar aquelas coisas coloridas é arte?!” Negou-se a ver as peças do seu ex-marido, Oswald de Andrade, porque ouviu dizer que “eram muito indecentes”. Acusada de ter sido uma mulher de muitos amantes, desmente entre amuada e triste essa reputação “Pois se eu sou até puritana, minha Nossa Senhora!”
Desistiu de ler Guimarães Rosa? “Era um escritor que usava uma linguagem tão esquisita!” Não se incomoda com o barulho das serras elétricas das construções que se filtra até pelas janelas fechadas de seu apartamento no bairro paulista de Higienópolis. “Estão construindo um mundo tão diferente do meu! Até a Europa me dizem que hoje é tão diferente, Paris está tão mudada, para pior, que não vale a pena ir até lá. Paris foi a que eu conheci na mocidade.”
Tarsila do Amaral está lúcida embora divague ao responder a uma pergunta. Muitas frases que intercala entre um assunto e outro refere-se a recordações isoladas, que lhe ocorrem no momento. Assistida por dona Anette, sua secretária e enfermeira, que lhe prepara também as telas, a pintora mantém um espírito vivaz, irônico e uma cordialidade fidalga que soa pouco moderna no mundo de hoje. “Grande dame” da sua época, ela é hoje uma excelente dialogadora, cheia de graça e de uma irreverência sutil para om os grandes da Semana ou da Paris eletrizante que conheceu.
Leo Gilson Ribeiro – A senhora estava na Europa, durante a Semana. Mesmo assim, é considerada uma de suas figuras principais. Por que?
Tarsila – Embora eu estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 pela carta que a Anita Malfatti me mandou, contando tudo, com todas as minúcias. Agora nem sei onde essa carta foi parar. Eu fiquei admirada do que ela me contou e com a grosseria do Monteiro Lobato quando falou sobre ela, sem compreender nada, muito reacionário, pois imagine que ele se julgava pintor, o Monteiro Lobato, sabe? Eu fiquei muito admirada: o que será esta coisa? A Anita ficou magoada com toda a razão, o Monteiro Lobato falava dos quadros dela como se fossem feitos por um burro com um pincel amarrado no rabo e conforme as moscas atormentavam o burro ele dava aquelas pinceladas assim na tela, não é?
Leo Gilson Ribeiro – Mas a Semana…
Tarsila – Nas vésperas de ir para a Europa eu aluguei meu atelier para um professor alemão, o professor Elpons, o único impressionista que estava no Brasil. Ele foi o único que me deu uma experiência dos quadros impressionistas porque aqui no Brasil não chegava nada, só através do professor Pedro Alexandrino, que esteve vinte anos em Paris e visitava muito aqueles grandes pintores, que ele conhecia todos. Muita gente dizia: é perder tempo ir trabalhar no atelier de Pedro Alexandrino porque é um passadista; mas ele tinha preparo, pensando bem não era perder tempo não.
Leo Gilson Ribeiro – Como a senhora descobriu o seu talento?
Tarsila – Eu comecei a trabalhar (em São Paulo) sob a direção de Pedro Alexandrino e não me fez nada de mal de ver que era uma coisa antiga, acadêmica, tinha aquele método antigo de copiar “à fusain” para exercitar a mão, fiz até a cabeça de um negro, ele queria que eu tivesse a mão muito firme e me dava então aquele papel muito grande para trabalhar, não é? ele ia me explicando tudo, fazer traços sem régua, sem nada. Comecei com o desenho, eu não era uma colorista no princípio, fazia cópias de gesso também, com sombreado, coisas de anatomia que tinha que copiar, conhecer bem. Ele trabalhava no Liceu de Artes e Ofícios e trazia aqueles modelos e era muito bom porque a pessoa aprendia anatomia e sabia as proporções, não é?
Leo Gilson Ribeiro – São Paulo era muito provinciana nas artes?
Tarsila – Ah, era, o gosto geral era pelas paisagens iguaizinhas à vida, era o reino da natureza morta também, as fulgurações do metal copiadas na tela, tão real! Isso não foi prejudicial para mim, foi uma fase preparatória. Quando cheguei na Europa fui logo para a Académie Julien, academia de nus, num grande salão, eu fui com meus trabalhos: uma cabeço de velho feita a pastel, depois uma holandesa com óleo já e o negro, que foi a carvão. Havia muitos ateliers e a moda era dos nus: punham o modelo só cinco minutos diante do artista para ele fazer rapidamente, eu gostava até porque já tinha prática. Depois fui estudar com um grande professor hors concours, fazia exposições, gostava muito da minha pintura, agora me esqueci do nome dele. Ele chamava a atenção dos alunos para o que eu fazia, sabe? Eram muitos e como eu trabalhava rápido ele gostava e dizia para o atelier grande: “Voyez ce qu’elle fait, comme c’est puissant!” (Olha só o que ela faz, como tem força!) Eu voltei ao Brasil pouco depois da Semana, mas eu não gostava do que a Anita Malfatti fazia, era tudo assim muito deformado. Mas é claro que estava completamente chocada e contra o Monteiro Lobato. Depois, no fim do ano, a Anita foi trabalhar também com Pedro Alexandrino, porque a mãe da Anita era muito passadista e vivia contra a filha e contra as inovações dela na pintura, dizia que aquilo não prestava. A Anita ficava muito desanimada da mãe se zangar por ela não fazer o parecido, a mãe não compreendia nada, era um horror!
Leo Gilson Ribeiro – A senhora achou um ambiente hostil quando voltou?
Tarsila – Eu cheguei nos primeiros dias de junho, vinha de navio, que não tinha a facilidade do avião, o Gago Coutinho é que ia atravessar o Atlântico logo depois. Mas era tão tranquila a travessia por mar!… Eram os navios da Mala Real inglesa, os melhores, e logo passou algum tempo a França fez também o “Lutèce” e o “Marsília”. Não, não achei um ambiente hostil quando voltei. Eu recebi muitas pessoas, poetas, no meu atelier da rua Vitória. Era uma casa que pertencia à minha família mesmo.
Leo Gilson Ribeiro – A senhora era uma mulher muito bonita…
Tarsila – Quem? Eu? Bom, naturalmente, naquele tempo eu estava melhor do que estou hoje. Aí tive o encontro com o Oswald de Andrade, que era muito extravagante, falava mal de todo mundo, quando ele achava que uma coisa era engraçada, tinha que dizer mesmo que ofendesse os amigos, sacrificava tudo por um “bon mot”. Uma vez o Paulo Prado brigou com ele e nunca mais quis falar com ele, sabe? Eu nem sabia por que, no entanto o Paulo Prado tinha feito um prefácio muito bom para o livro de Oswald, “Pau-Brasil”, editado lá em Paris. Quando o Oswald tinha uma coisa para dizer, ele não resistia mesmo e aí falou sobre a dona Veridiana Prado e dizem que ela não era, bem… ariana, que ela tinha uma misturazinha lá e o Oswald falou daquela “gloriosa mulata que é dona Veridiana Prado”. Ora, o Paulo Prado era parente muito próximo, de maneira que nunca mais falou com Oswald.
Leo Gilson Ribeiro – Ele brigou também com o Mário de Andrade?
Tarsila – Brigou também. Depois ficou com saudade dele, pediu que eu escrevesse uma carta para o Mário, o Oswald era muito temperamental, eu já estava casada com ele e escrevi mas o Mário respondeu que era impossível, que o Oswald o tinha ofendido demais, que ele estava muito ressentido, que não era possível, que comigo era diferente, ele sempre foi muito meu amigo, o Mário. Aí, quando o Oswald viu que ele não voltava mesmo as boas, continuou a falar mal do Mário. Era uma pena esse traço do caráter do Oswald… E com uma obra tão séria, não? as ilustrações dos livros fui eu que fiz todas.
Leo Gilson Ribeiro – O famoso “Aba-Puru” partiu daí?
Tarsila – Não, eu quis fazer um quadro que assustasse o Oswald, sabe? que fosse uma coisa mesmo fora do comum. Aí é que vamos chegar no “Aba-Puru”. Eu mesma não sabia por que que eu queria fazer aquilo… depois é que eu descobri. O “Aba-Puru” era aquela figura monstruosa que o senhor conhece, não é? a cabecinha, o bracinho fino apoiado no cotovelo, aquelas pernas compridas, enormes, e junto tinha um cacto que dava a impressão de um sol como se fosse também uma flor e ao mesmo tempo um sol e então quando viu o quadro o Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: “Mas o que é isso? Que coisa extraordinária!” Aí imediatamente telefonou para Raul Bopp, que estava aqui, e disse: “Venha imediatamente aqui que é para você ver uma coisa!” Aí o Bopp foi lá no meu atelier, ali na rua Barão de Piracicaba, um solar muito bonito que meu pai tinha comprado recentemente, o Bopp assustou-se também e o Oswald disse: “Isso é como uma coisa como se fosse um selvagem, uma coisa do mato”, e o Bopp foi da mesma opinião. Aí eu quis dar um nome selvagem também ao quadro, porque eu tinha um dicionário de Montoia, um padre jesuíta que dava tudo. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios era Abá. Eu queria dizer homem antropófago, folheei o dicionário todo e não encontrei, só nas últimas páginas tinha uma porção de nomes e vi Puru e quando eu li dizia “homem que come carne humana”, então achei, ah, como vai ficar bem, Aba-Puru. E ficou com esse nome.
Leo Gilson Ribeiro – Então a senhora foi a origem do movimento antropofágico?
Tarsila – O Raul Bopp achou que devíamos fazer um movimento em torno desse quadro, achou esquisitíssimo, ele gostou muito e depois escreveu um livro interessantíssimo sobre o linguajar indígena do Amazonas. Todos começaram a dizer que o Oswald é que tinha feito o “Aba-Puru” e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que dissessem que era de autoria dele, achou interessante.
Leo Gilson Ribeiro – Daí ele passou a datar documentos a partir do ano em que os índios tinham comido na Bahia aquele bispo, o bispo Sardinha?
Tarsila – É, e fizeram o movimento da antropofagia e aí todas as quartas-feiras o Chateaubriand (com pronúncia francesa) ofereceu uma página no jornal para o movimento. Então vinha o Geraldo Ferraz, que era conhecido como açougueiro, falar de arte, não é? Era, sim, açougueiro porque antropofagia era comer carne, então ele é que contava e distribuía entre os leitores. Mas aí, como havia muita irreverência com as famílias que assinavam o “Diário de São Paulo”, o Chateaubriand viu-se obrigado a pedir que não continuassem porque estava perdendo todos os leitores.
Leo Gilson Ribeiro – O “Aba-Puru” com aquela figura deformada, monstruosa, parece coisa de pesadelo.
Tarsila – Engraçado o senhor falar nisso, eu gosto de inventar formas assim de coisas que e nunca vi na vida, mas não sabia por que que eu tinha feito o “Aba-Puru” daquela forma. Eu me perguntava: “Mas como é que eu fiz isto?” Depois uma amiga minha que era casada com o prefeito me dizia: “Sempre que eu vejo ‘Aba-Puru’ me lembro de uns pesadelos que eu tenho”, e eu então liguei uma coisa a outra, disse que devia ser uma lembrança psíquica ou qualquer coisa assim e me lembrei de quando nós éramos crianças na fazenda. Naquele tempo tinha muita facilidade de empregadas, aquelas pretas trabalhavam para nós na fazenda, depois do jantar elas reuniam a criançada para contar histórias de assombração, iam contando da assombração que estava no forro da casa, eu tinha muito medo, a gente ficava ouvindo, elas diziam: daqui a pouco da abertura vai cair um braço, vai cair uma perna e nunca esperávamos cair a cabeça, abríamos a porta correndo e nem queríamos saber de ver cair a assombração inteira. Quem sabe o “Aba-Puru” é reflexo disso?
Leo Gilson Ribeiro – Assim como o movimento antropofágico tinha relações com as culturas chamadas primitivas, dos índios, da África, etc., o Fernand Léger, com a sua temática de máquinas, fábricas, sociedade moderna, teve influência na sua pintura também?
Tarsila – Eu gostava muito da obra dele, fui muito amiga dele, mas não frequentei o atelier do Léger, eu era amiga da mulher dele também, depois até inventaram que ele tinha desenhado brincos para mim, etc., imagine! Eu me inspirei em São Paulo mesmo, na sociedade fabril e foi uma novidade naquele tempo, no Brasil, o que eu fiz. E fui tão bem aceita, que o governo do Estado comprou a minha obra, sabe, um quadro grande, está em Campos do Jordão, imitando em cima uma fábrica. Na época de minha exposição no Rio tive um amigo pernambucano que me mandou todos os recortes da crítica quando foi exposto lá o “Aba-Puru” inclusive. Havia invenções incríveis, diziam que meu atelier era como o atelier do Renoir, cheio de nus e não sei o que mais e que eu mandava espalhar pelo atelier inteiro divãs cobertos de veludos roxos, cada uma! E me confundiam com Anita Malfatti. Naquela época, o senhor imagina, uma jornalista do Rio chegou a escrever que o Oswald de Andrade nem chegara a se casar comigo! Falava de mim feito de um monumento em São Paulo, vale a pena conhecer Tarsila em São Paulo, virei atração turística, veja só! Quando meu casamento com o Oswald foi até um casamento de luxo, o Washington Luís esteve presente! Falavam de mim, de meus muitos amores!, até de lançadora de modas eu fui chamada. e claro, porque cada vez que eu voltava da Europa eu trazia as novidades, não é mesmo? Eu estava uma vez com um vestido lindíssimo, uma seda meio xadrez, com mangas bufantes e dois laços de fita bem largos, azuis (dona Anette mostra uma edição da “Ilustração Brasileira” e diz que foi em 1924), sabe? Foi o vestido que eu escolhi para o vernissage de obras minhas num conjunto de salas, na rua Barão de Itapetininga, eu estava ali esperando os visitantes. Aí eu vi assim uma porção mesmo de rapazes que vinham na minha direção, como eu estava na porta eu perguntei: “Os senhores querem entrar?” Parecia que era o que eles queriam mesmo, e eu os recebi com muita cordialidade, convidei, mal eu sabia o que eles queriam fazer: todos vieram com giletes no bolso para arrasar com tudo o que eu tinha feito! Mas acho que me estranharam de ver num vestido assim tão bonito e não conseguiram o que pretendias, não.
Leo Gilson Ribeiro – A senhora na sua infância morou em São Paulo ou no interior?
Tarsila – Quando eu era pequena eu morava numa fazenda, meu pai adorava tudo que era fazenda, comprava muitas terras, era um homem muito tico porque o pai dele também era conhecido na genealogia paulista como José Estanislau do Amaral, o Milionário. Ele começou a vida sem nada, fazendo óleo de mamona, tinha um ou dois escravos que o ajudavam a fazer isso e depois foi vendendo, foi melhorando, comprou fazendas, uma porção, vendia café em Santos também, onde ganhava muito com isso. Eu fui criada no campo, acho que é por isso que sou tão forte ainda com a minha idade. Na luta do braço (mostra o braço), até homem é difícil de me vencer, sabe?
Leo Gilson Ribeiro – E na sua pintura também está essa força da terra, do campo?
Tarsila – Exatamente. Sabe? Eu era pequena na fazenda a via minha mãe com muitos santinhos da igreja, já gostava da pintura, tanto que eu fazia as primeiras cópias mal feitas dos santos. São Francisco Xavier eu fiz quando eu tinha uns quatro anos. Adorava desenhar e viver rodeada de galinhas, de pintos e fazia um desenhozinho, de tudo que era animal que eu via. Aí me fizeram presente de uma gatinha branca, eu adorava gatos, chamava-se “Falena”, e ela arranjou muitos maridos e eu fiquei com quarenta gatos que me rodeavam miando, lá na fazenda de Capivari. Mas eu passava tempos também na fazendo de São Bernardo, que papai já tinha comprado naquela época, era uma casa muito grande e bonita e até foi vendo as letras da entrada da fazendo que eu fui aprendendo a ler. Sabe, eram letras quase do tamanho deste armário aqui. Minha mãe me ensinava “Olhe, isto aqui é um B, chama-se B esta letra, aqui é um A” e eu me lembrava logo da forma das letras. Eu nem senti que estava sendo alfabetizada antes de entrar para a escola. E fazia também bonecas de mato: um mato que crescia com uns caules quadradinhos e dava flor, eu pegava e fazia com aqueles matos uma espécie de escultura, eu fazia braços e pernas e brincava com aquilo. Eu cresci nessa fazenda e como meu pai soube que ali perto tinha se estabelecido uma família belga, eram nobres Van Harenberg Valmont, tinham uma filha de dezoito anos e, como eu tinha outros irmãos pequenos, papai mandou perguntar se a moça podia vir nos ensinar francês e ela veio mas não nos ensinou nada, mamãe é que ensinou português para ela. O francês eu aprendi porque papai queria os filhos muitos educados, então fomos para a Europa e nunca nenhum francês soube que eu não era francesa: me diziam sempre que eu falava completamente sem “accent étranger”, sabe?
Leo Gilson Ribeiro – Em Paris a senhora estava em contato com Picasso, com Apollinaire, com Breton?
Tarsila – Ah, estive, o Cocteau também era nosso grande amigo, eu fazia muitos almoços brasileiros no meu atelier em Paris, que o Paulo Prado descobriu que foi o atelier de Cézanne, na rua Moreau, num bairro até não muito recomendável, mas era tão difícil ter um atelier em Paris! Havia muitos artistas americanos, muitos estrangeiros e era difícil achar. O meu era no quinto andar, tinha que subir tudo a pé, não tinha banheiro, era meio primitivo, banho mesmo era só no “bain publique”. Quem ia sempre era o Vila-Lobos e o Cocteau também frequentava, diziam até que ele era muito bom musicista, Vila-Lobos então improvisava num piano de cauda que tinha lá no meu atelier, tocava uma coisa e o Cocteau dizia, fazendo careta de tédio: “Non, ça n’est pas quelque chose de neuf!” (Não, isso não é nada de novo!) Aí o Vila-Lobos tocava outra coisa e o Cocteau balançava a cabeça: “Não isso não é inédito”, até que se sentou embaixo do piado alegando que era “pour mieux entendre” (para ouvir melhor), mas nunca aprovando a música do Vila-Lobos, o folclore brasileiro para ele era “déjà entendu” (já ouvido). O senhor pode imaginar as brigas que se armavam, com o Vila-Lobos muito espalhafatoso, muito exuberante… Era um clima, aliás, de constantes discussões, porque eram de partidos literários, políticos, estéticos diferentes e dava aquelas confusões eternas…
Leo Gilson Ribeiro – A senhora teve uma vida muito rica; quando foi que a senhora se sentiu mais feliz?
Tarsila – Foi quando justamente meu pai comprou o solar que havia lá na rua Barão de Piracicaba, porque minha mãe gostava de casa bem grande, era uma mansão mesmo e lá é que eu dava festas, fazia jantares e tinha dois rapazinhos de quinze para dezesseis anos e que eram garçons, eu trouxe uma adega excelente, que ninguém conhecia igual em São Paulo, escolhida peça por peça por um “sommelier” francês com o nome de um artista conhecido, não me lembro agora, Maurice Chevalier? Não, ele se chamava Charles Boyer, acho que era o nome de um artista do cinema, não era?
Leo Gilson Ribeiro – De onde a senhora tira tanta força para viver? Uma queda a deixou presa na cama a maior parte do dia. Recentemente, perdeu a única filha. Logo depois, morreu sua única neta, afogada. Você é religiosa?
Tarsila – Ih, sou, sim. Sou muito devota do Menino Jesus de Praga, porque alcancei muitas graças com as orações a ele. É uma novena milagrosa, eu sei tudo de cor: “Oh Jesus que dissestes: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e a porta se abrirá”, quando eu li isso eu fiquei arrepiada, sabe? de imaginar assim aquela porta se abrindo, se abrindo… Isso me inspirou um quadro de Jesus Menino com um negrinho, que simboliza os humildes, também com japoneses e índios, eu dei de presente para um padre que dirige um orfanato para crianças. Eu copiada oleografias sacras…
Leo Gilson Ribeiro – O Portinari começou também copiando santos.
Tarsila – Ah, tive uma desilusão com Portinari quando conheci um exegeta do cubismo em Paris e frequentei mais de seis meses esse grande professor e acho que o Portinari não sabia fazer pintura cubista. Por exemplo: ele ia fazer o Tiradentes. Fez com pincel e nanquim, desenhado, e depois colocou pedaços de papel e colou em cima do desenho, isso nunca foi cubismo!
Leo Gilson Ribeiro – Além do sentimento religioso, há um tom de lembrança em sua pintura…
Tarsila – Um dos meus quadros que fez muito sucesso quando eu o expus lá na Europa se chama “A Negra”. Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas, quando eu era menina de cinco ou seis anos, sabe? escravas que moravam lá na nossa fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me contaram depois, naquele tempo as negras amarravam pedra nos seios para ficarem compridos e elas jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas costas. Num quadro que pintei para o IV Centenário de São Paulo eu fiz uma procissão com uma negra em último plano e uma igreja barroca, era uma lembrança daquela negra da minha infância, eu acho. Eu invento tudo na minha pintura. E o que eu vi ou senti, como um belo por-de-sol ou essa negra, eu estilizo.
Leo Gilson Ribeiro – A sua pintura, tão poética, é então uma evocação enternecedora de uma infância feliz?
Tarsila – Acho que o senhor não está longe de ter acertado.
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* Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 23 de fevereiro de 1972 – Edição 181.
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