Quanto mais recursos temos no campo da psicologia e dos novos conhecimentos sobre as relações humanas, mais inseguros estamos. Quanto mais civilizados, menos naturais somos. Na época em que mais se fala em natureza estamos mais distantes dela. Ser natural passou a não ser natural. Assim é com criar filho. Perplexos diante das mil teorias que nos batem à porta em toda a mídia, e a proliferação de consultórios com todo tipo de terapias (pelas razões mais singulares), estamos nos convencendo de que ter e criar filho não é lá muito natural. Passamos do extremo antigo de achar que criança não pensa ao outro extremo: criança é complicação. Mil receitas de como tratar do bebê ao adolescente atormentam gerações de pais aflitos. A aflição não é boa conselheira. Afobado, aliás, a gente ama bem mal…
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Esquecemos o melhor mestre: o bom-senso. A escuta do que temos no nosso interior, aquela coisa antiquada chamada intuição, lembram? Claro que para isso precisamos ter bom-senso e ter algo dentro de nós para ser escutado. Ou cada vez que o bebê chorar desafinado, a criança ficar menos ativa (ela em geral está simplesmente pensando, querendo que finalmente a deixem um pouco quieta), vamos correndo procurar um especialista. Para que ele nos ensine a segurar o bebê, dar a mamadeira, olhar no olho, aconchegar ao peito a criança nossa de cada dia. É que somos, além de aflitos, desorientados. Falta-nos o hábito de observar e de refletir. Preferimos evitar o espelho que faz olhar para dentro de nós. Cada vez mais amadurecemos tarde ou mal. Somos crianças tendo crianças. Não gostamos de refletir e decidir: se a gente parar para pensar, tudo desmorona, me disse alguém. Temos receio de encontrar a ponta do fio dissimulada na confusão do novelo, e, puxando por ela, ver tudo se desmontar. Mas pode ser positivo: poderíamos recolher os cacos e recomeçar. Quem sabe criar uma estrutura interior mais natural e boa do que essa em que nos fundamos, e baseados nela dar aos filhos um legado – e um recado – tranquilo e positivo, que não está em livros e nem em consultórios. Ser natural está em crise grave.
Quando a sofisticação de usos e ferramentas se torna quase cotidiana, tendemos a usar de estratégias complexas também quando bastaria apelar para a simplicidade e sensatez. Mesmo em ambientes onde predominam os bons afetos, começa antes do nascimento a confusão gerada por algumas teorias imprecisas ou receitas tolas que nada têm a ver com a psicologia ciência, mas com isso que chamo psicologismo de revista. Quero reafirmar o meu apreço por profissionais da chamada área psi. Quatro anos de terapia me ajudaram a superar um período extremamente difícil.
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Sempre que posso homenageio a extraordinária profissional que me orientou. Mais do que na maioria das profissões, esse é um território ao qual chegamos porque estamos sofrendo. Estamos vulneráveis, e não conhecemos os meandros desse novo lugar. Desamparados, ficamos entregues ao profissional que nos vai cuidar. Tenho observado algumas jovens que atendem seus pacientes, adultos ou adolescentes, em roupas mais adequadas à danceteria do que à gravidade de um consultório. Nunca me canso de comentar que ali vamos fazer algo mais grave ainda do que remendar as entranhas numa mesa cirúrgica: tentamos remendar a nossa pobre alma. Aparência de garotinhas, minissaia, blusa de alcinhas, maquilagem carregada, trejeitos infantis ao falar, podem disfarçar uma bagagem bem respeitável de informações e teorias. Mas eu, que não sou nem pudica nem moralista, imagino se inspiram confiança nos aflitos que as procuram; se lhes podem oferecer apoio, sobretudo orientação. Lembro aqui a história do grupo de médicos residentes que fazia a ronda com seu professor por uma enfermaria de hospital. Uma das jovens médicas, vestida precariamente, procurou o mestre e lhe falou no ouvido: “Professor, quando cheguei perto, o paciente do leito começou a se masturbar.”
O professor olhou-a de alto a baixo, e disse tranquilamente: “Minha filha, cubra-se.” Não acho que as profissionais da área psi devam ser venerandas matronas. Mas não perturbem ainda mais quem a elas recorre, mostrando-lhe sua própria alma de minissaia. Pode parecer engraçado, mas eu levo isso muito a sério. Levo muito a sério ser sério. Levo a sério a seriedade da doença, seja do corpo ou da mente, a necessidade de amparo e socorro que levam as pessoas a procurar médicos do corpo e do coração.
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E tudo isso se aplica às figuras de pai e mãe dentro de casa. Pai não tem de ser carrasco nem irmão: tem de ser pai, ombro e abraço; autoridade, norte e abrigo; camaradagem mas também firmeza. Mãe não tem de ser amiguinha, tem de ser mãe. Tem de ser aquela a quem filhos, mesmo adultos, sabem que podem recorrer quando tudo falhou, até os melhores amigos. Não ser a falsa jovenzinha competindo em maquilagem e roupas com a filha, ou parecendo seduzir colegas do filho – criando constrangimentos que ela ignora como se não vivesse no real. Conceitos pouco simpáticos, severos? A vida pode ser bem mais severa que isso.
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Amar é dar a uma criança os meios para adquirir uma personalidade equilibrada. Perguntarão o que é esse equilíbrio, e responderei que cada um tem o seu. Deve ser o suficiente para não nos afogarmos na primeira onda. Para isso não se exige nem muita instrução nem grandes bens materiais. Não se faz teorizando nem debatendo, mas dando regaço acolhedor, mão firme e ouvido atento. Os buracos no chão de nosso passado não são terem nos dado apenas dois pares de tênis e duas calças, nenhum dos brinquedos eletrônicos modernos, nem aulas de balé ou idiomas. As falhas do terreno onde vamos cair, quebrando coração e cara, são provocadas por um ambiente hostil, pais despreparados ou infelizes. Mais danosos do que pobreza, escola ruim, roupa modesta, casa simples, bairro suburbano ou excesso de trabalho. O solo firme serão as relações amorosas. Bom-humor e carinho.
Interesse. Mas como ter isso se o cotidiano é sacrificado e nem nos comunicamos bem dentro de casa? Um luxo, amar, se muitas vezes não temos tempo nem de ler o jornal, dinheiro para o fim do mês, alegria para começar o dia. Por isso digo que gerar e parir é grave responsabilidade.
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E que vamos continuar parindo, mais do que corpos, seres humanos complexos. A fragilidade do relacionamento familiar ou suas eventuais catástrofes, nossas inseguranças, o dilúvio de informações contraditórias para as quais não temos muito discernimento, tornam cada vez mais difícil educar. Então delegamos isso à creche, ao jardim, à escola, ao psicólogo, à turma de amigos. Como temos pouco tempo, ninguém pode exigir que a gente ainda por cima manifeste emoções e dialogue quando chegamos em casa exaustos de tentar manter a família com as exigências de consumo que ela tem – ou nós pensamos estar obrigados a lhe dar. Até porque, se gerar e parir fisicamente é natural, criar é inserir numa cultura que se sobre põe ao natural. Pode ser repetitivo e tedioso, problemático. Passamos do extremo da educação rígida à deseducação simplista.
Conheci a educação pelo terror que imperava antigamente (antes que conhecimentos de psicologia nos ensinassem a sermos menos cruéis) até em famílias estruturadas e funcionais: “Se você engolir as sementes, essa noite vai nascer uma árvore na sua barriga; se você mentir, seu nariz vai crescer e vem polícia cortar com uma tesoura enorme; se você comer fruta sem lavar, vai ficar com a barriga cheia de vermes horríveis… ”
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Hoje caímos no outro extremo. Pais atônitos com a invasão do psicologismo fácil e nem sempre consistente receiam impor limites aos filhos para que não fiquem “traumatizados”. Pais inseguros ou desinformados levam filhos aos mais variados especialistas para tratamentos nem sempre necessários e oportunos. Sei de pais que procuram a emergência de um hospital para que as enfermeiras cortem as unhas de seu bebê, ou meçam a temperatura simplesmente porque “hoje eu achei ele meio quentinho”. Ou porque “o bebê chora há três horas sem parar, deve estar com alguma dor”… e a médica constata apenas que ele precisava de banho e fraldas limpas. Cortar unhas e botar termômetro não são emergência. Fraldas sujas não são emergência. Falta de amor e de atenção podem ser uma emergência. A psicologia ajuda a entender e aliviar, não a formar a personalidade. Assim a escola, a creche, o jardim-de-infância, não são lar nem família, professoras não são mães ou tias, e não se deveriam incumbir esses terceiros, por mais dignos e respeitáveis que sejam, dos deveres de nosso coração. Que deveres são esses? Abrir um espaço de ternura no cotidiano apressado e difícil, eventualmente cruel. Deixar aberta a porta dos diálogos não convencionais, com hora marcada, mas no fluxo habitual do interesse e do carinho. Amor em família é uma arte, um malabarismo, por vezes um heroísmo. Essencial como o ar que respiramos. Preparar alguém para viver não se faz com frases, mas convivendo. Preparar alguém para futuros relacionamentos, para ter um dia sua profissão, sua família, sua vida, se faz sendo humano, sendo terno, sendo generoso, sendo firme, sendo ético. Sendo gente. A ideia de que a vida é um bem, e que merecemos liberdade e felicidade, se transmite acreditando nisso. Todo o nosso processo futuro se antecipa em casa. O respeito pelos filhos modela o respeito que terão pelos outros e por si. A chegada de mais uma criança ensina a dividir, a competir saudavelmente, a amar com generosidade e a se valorizar. Isso não se incute com frases ensaiadas, mas com uma atitude geral. Isso que se chama clima. Qual o clima que reina em nossa casa?
Se nossa postura for de uma desconfiança geral, não haverá palavras, joguinhos, terapeutas, que convençam a criança de que amar não é mortal, de que confiança é possível, e até de que a chegada de um irmão pode ser um barato. O ambiente em que vive é que vai lhe indicar se é bom ter família, ter irmãos, amigos, amores, se vale a pena – se é possível amar e respeitar sem ser traído.
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Conviver gera problemas e atritos, mas também alegria e crescimento pessoal. Vai haver ciúme entre irmãos? Vai. Também isso é normal, é antecipação de laços futuros. Dividir pode ser ruim, pode ser desagradável: quem não quereria tudo para si: os brinquedos, os pais, a casa, o mundo inteiro? Mas dividindo se reforçam autoestima e capacidade de interação. É positivo, mas tem de nos ser mostrado assim.
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Nada disso exige grandes estudos ou recursos financeiros. Exige dedicação, exige delicadeza, exige ternura: o mínimo que pode esperar quem nasceu de nós.
Nosso legado real aos filhos não é a casa, não é a conta bancária, não é nem mesmo o estudo, como diziam nossos avós. O verdadeiro tesouro do qual eles vão se alimentar (ou terão de se libertar) é o recado que lhes passamos diariamente. Não está em palavras escolhidas para momentos especiais. Não consiste em noites de Natal ou festas de aniversário, não está na hora do sermão ou do elogio. Contudo, frases como essas baixam diante de seu olhar o véu da suspeita: “Você está precisando de um irmão, aí vai aprender a ser menos egoísta)” “Quando seu irmão nascer, vai acabar essa moleza toda.” “Ainda bem que ano que vem você vai pra escola, aí vão lhe ensinar disciplina!” “Quando você crescer, vai ver o que é bom, aproveite agora que só precisa brincar.” “Quando você casar e tiver filhos, aí sim, vai se lembrar com saudade de quando era criança.”
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“Eu bem queria que você já fosse casado e cheio de filhos, pra ver o quanto dói uma saudade.” Somos emocionalmente tão rasteiros que os afetos são um dever? Nós realmente sentimos isso, pensamos isso, temos uma afetividade tão pobre… ou achamos que ameaçar é educativo? E se isso nos foi ensinado, o que fizemos para corrigir essa nossa deficiência? Pior: muito mais do que palavras, falam em nós o gesto, a voz, o olhar, a química que exalamos. Isso que impera em nosso quarto, nossa cama, nossa casa, nossa mesa – essa aura que distingue pessoas e grupos: afeto ou intolerância, parceria ou deslealdade. Atritos fazem parte da realidade e certamente são menos danosos do que a dissimulação. O escondido debaixo do tapete é um tumor mais mortal porque oculto. Todas as relações precisam ser reenquadradas aqui e ali, ainda que aos trancos e com sofrimento. Porém eu sou dos que acreditam que além e acima disso amar é possível, pelo menos amar mais, amar melhor – amar com alegria. As pessoas que nos amam – e a quem amamos – não são necessariamente bonitas, saudáveis, agradáveis. Isso também acontece entre pais e filhos. Nem sempre quem tem filhos gosta de criança. Não é um defeito de personalidade nem algo perverso. Há quem só pegando um filho nos braços pela primeira vez sente toda uma gama de emoções desconhecidas, que de repente o/a inundam e enriquecem. Outros têm a alma ossuda como alguns abraços. Mas há quem simplesmente não nasceu para ser mãe ou pai, embora possa curtir bem outros afetos.
Essas pessoas, homens e mulheres (pois não somos simples feixes de instintos), não têm equipamento emocional para isso. Ou não lhes foi ensinado a amar, por sua vez, quando pequenos.
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“Pai, olha ali que lindo! Para o carro para eu apanhar umas flores para a vovó?” A menina colheu flores-do-campo amarelas e roxas, e as segurava no colo durante o trajeto, olhos brilhando de alegria. Quando chegaram, correu para entregá-las à avó. Esta, num gesto espontâneo portanto sincero, encolheu-se toda e comentou com voz áspera: “Bota isso fora, essas flores de beira de estrada são sujas e têm bichinhos que picam a gente!” Nunca esquecerei a expressão do rosto dessa criança. A mulher que revelava tal frieza não era má pessoa. Não era desprovida de afetos.
Porém sua confiança em coisas e pessoas devia ter sido solapada quando também ela era uma menina com braçadas de flores para algum adulto de alma árida. “Você nasceu por acidente, claro que eu te amo, mas nunca quis ter filhos” ou “eu quis ter só seu irmão, mas seu pai quis tentar uma menina”.., são bofetadas, não na cara mas na autoestima.
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Algumas pessoas não deveriam se sobrecarregar emocionalmente gerando filhos. Não acredito em afetos escravizadores ou escravos, o que para mim é essencial para outro pode ser dispensável ou pesado. Nem por isso ele ou eu seremos alguém melhor ou pior. Ter filhos não garante uma união mais ou menos boa. Mas porque a gente acha que deve, porque a família cobra, porque a sociedade espera, porque o cônjuge sonhava com isso, porque nos exigimos seja como for – mesmo sem gostar particularmente da ideia, temos um filho. Depois, sabe Deus por que (por “descuido”, para segurar o casamento, para consertar coisas, para encher o vazio), teremos mais um ou dois. Preparada a cena para a desestruturação afetiva que se propaga como círculos na água quando ali se joga uma pedra impossível de moer. Quando falei da minha alegria porque nasceriam em minha casa duas menininhas gêmeas, me disseram em tom de reprovação: “Mas então você quer mesmo ser uma velha que cuida de netos?” Outra reação de algumas das pessoas a quem contávamos a novidade, manifestação impensada por isso sincera, era negativa: “Gêmeas? Duaaaas? Que trabalheira! Lá se foi o seu sossego! Ah, pobre da sua filha! E a irmã delas, coitada, já está com muito ciúme?” Trabalhos e alegrias dobraram.
E verdade. Ciúme é o sentimento natural de qualquer criança em cujo universo aparecem competidores e companheiros. Não necessariamente inimigos. Mas ter irmãos é normal, é alegre se a casa for alegre. Tendo irmãos, qualquer criança num ambiente sensato está sendo preparada para compartilhar, respeitar o outro e afirmar-se sem querer destruir esse outro. Até hoje, as gêmeas já tendo alguns meses, às vezes indagam: “E a coitadinha da irmã, como está-se virando?”
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Eu, que a observo diariamente, diria que se vira muito bem. Sendo criança num ambiente amoroso e bastante calmo, ela resolve de várias maneiras o “problema”. Isso transparece em atitudes encantadoras como: Ganhou de presente um enfeite de cabelos com duas bonequinhas iguais.
Alguém perguntou: “São as irmãzinhas?” Resposta dela: “Não, ora, essas somos a minha mamãe e eu.” Tínhamos comprado grandes bonecas de pano para enfeitar os dois berços. A irmã pegou uma delas e por uns dois dias a levava consigo. Indagada, disse: “A mamãe comprou uma boneca pra mim e uma pra Fernanda, e esqueceu da Fabiana, mas já vai comprar.” Não censuramos, não desmentimos. Ela estava armando em seu universo o lugar que caberia a cada criança, e com certeza o seu não era o último nem estava seriamente ameaçado. Em pouco tempo acabou largando a boneca no berço da irmã e voltou para seus brinquedos habituais. De momento a atividade nesta casa requer reajustes, em especial para uma menina de 4 anos. Lidamos ao mesmo tempo com duas pequenas vidas cheias de solicitações. As vezes todas as mulheres da casa rodeiam os dois carrinhos como as fadas de um conto mágico, para admirar, amar, socorrer. Tenho fotos de minha mesa de trabalho com uma mamadeira junto do computador ou dois carrinhos com bebês adormecidos junto desta cadeira onde escrevo. Obrigação, chateação? Escolha amorosa.
Não porque eu seja uma boa pessoa ou sequer uma avó muito convencional.
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Mas porque para todos nós este é um estágio de trabalho e encantamento.
Treinamos mais carinho, paciência e reflexão. Na balança dos dias certamente a alegria pesa muito mais do que todo o resto, e estão-se estabelecendo laços de afeto que o tempo não vai deteriorar. No cenário da família espero ser o que sempre desejei: um ser humano vulnerável e complicado mas amoroso, que curte os outros. Com todos os meus erros, falhas e manias, aprecio laços e afetos, e me ilumina essa sensação de que, afinal, vale a pena. Não vivo pensando que a toda hora alguém vai me trair. Muitas vezes tenho medo. Frequentemente me engano. Devo machucar quem amo, e certamente sem razão me sinto ferida algumas vezes. Todos os pequenos dramas humanos são meus. Nos meus anos e multiplicados afetos, mais de uma vez quando pensei que haveria uma celebração, foi um fiasco. Quando imaginei um encontro, foi solidão.
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Quando quis abraço, fui segregada. Ou muito disso se realizou e foi belo, e bom, muito além de minhas expectativas. Mas aqui, nesta zona de afetos familiares ancestrais – que se restringiu pelo tempo e circunstâncias da vida moderna – mais que perder, continuo ganhando.
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Esperando que dentro das pequenas ou grandes tempestades que ocorrem para todos nós, fique uma memória de esperança, de amor e lealdade.
O homem estava pegando as chaves do carro (a mulher já tinha saído para levar as crianças à escola) quando tocaram a campainha. Vagamente irritado, pois já se atrasara bastante, ele abre a porta: – Sim? O rapaz alto e estranho, andrógino, belo e feio, alto e baixo, negro e louro, faz um sinalzinho dobrando o indicador: – Vim buscar você. Não era preciso explicar, o homem entendeu na hora: o Anjo da Morte estava ali, e não havia como escapar. Mas, acostumado a negociações, mesmo perturbado ele rapidamente pensou que era cedo, cedo demais, e tentou argumentar: – Mas, como, o quê? Agora, assim sem aviso sem nada? Nem um prazo decente? O Anjo sorri, um sorriso bondoso e perverso, suspira e diz: – Mas ninguém tem a originalidade de me receber com simpatia neste mundo, ninguém nunca está preparado? Está certo que você só tem 40 anos, mas mesmo os de 80 se recusam… O homem agarrou mais firme a chave do carro, que afinal encontrara no bolso do paletó, e insistiu: – Vem cá, me dá uma chance. O Anjo teve pena, aquele grandalhão estava realmente apavorado. Ah, os humanos… Então teve um acesso de bondade e concedeu: – Tudo bem. Eu te dou uma chance, se você me der três boas razões para não vir comigo desta vez. (Passava um brilho malicioso nos olhos azuis e negros daquele Anjo?)
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O homem aprumou-se, claro, ele sabia que ia dar certo, sempre fora bom negociador. Mas quando abria a boca para começar sua ladainha de razões, muito mais que três, ah sim, o Anjo ergueu um dedo imperioso: – Espera aí. Três boas razões, mas… não vale dizer que seus negócios precisam ser organizados, sua família não está garantida, sua mulher nem sabe assinar cheque, seus filhos nada sabem da realidade. O que interessa é você, você mesmo. Por que valeria a pena ainda te deixar por aqui algum tempo?
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Contaram-me essa fábula, que já narrei em outro livro, e nele quem abria a porta era uma mulher. A objeção que o Anjo lhe fazia antes de ela começar a recitar seus motivos era: “Não vale dizer que é porque marido e filhos precisam de … … .
Essa historinha fala do quanto valemos para nós mesmos, do quanto valemos por nós mesmos, do que realmente sentimos e pensamos sobre nós.
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Alguém me disse, tranquilamente consciente de suas limitações e suas conquistas: – Se eu hoje aos 61 encontrasse o rapaz idealista que fui aos 18, não me envergonharia de apertar-lhe a mão, e o olharia nos olhos sem ter de baixar os meus. Fez esse comentário sem laivo de solenidade ou autoglorificação, antes bem-humorado. Aquela doce ironia com relação a si mesmo que não é desprezo mas amor. Quantos de nós podemos dizer isso? Com que argumentos persuadiríamos o anjo visitante de ainda não nos levar motivo para refletir sobre a passagem do tempo e nosso crescimento como seres humanos. Em como podemos nos programar, resgatar, desestruturar, reconstruir, boicotar, ou investir nossa cota de humanidade em um projeto pessoal que faça algum sentido. Boa razão para pensar no valor de ter valores; de avaliar a vida, não apenas correr pela sua superfície.
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Interrompemos de vez em quando nossa atividade para isso – ou nos atordoamos na agitação da mídia, da moda, do consumo, da corrida pelo melhor salário, melhor lugar, melhor mesa no restaurante, melhor modo de enganar o outro e subir, ainda que infimamente, no meu ínfimo posto? “Ah, eu sigo meus valores.” “Ensinei meus valores a meus filhos.”
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Usamos esse termo com muita facilidade. Que valores, quais valores?
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Aqueles segundo os quais tento viver, expressos não num eventual sermão ou palavreado, mas na maneira como vivo meu cotidiano em família, no trabalho, com amigos, com meus amores? Tendo consciência de que amando-nos mais poderíamos viver melhor, passaremos a trabalhar nisso.
Começamos tentando mudar de perspectiva: em lugar de enxergar só a parede em frente, contemplar um pedaço que seja de paisagem. Passar de vítima a autor de si mesmo é um bom movimento. Amadurecer auxilia na tarefa de ver melhor a realidade, e não é uma catástrofe. Ler ajuda.
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Abrir os olhos para o belo e o positivo ajuda. Amar e ser amado ajuda.
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Terapia ajuda. No mínimo, ajudará a mantermos a cabeça à tona d’água em lugar de nos afogarmos na autocomiseração. Reinventar-se inteiramente é impossível: o contorno dessas margens, o terreno de que são feitas está estabelecido. Trazemos uma chancela na alma – mas podemos redefinir seus limites. Quem sabe mudamos as cores aqui, ali abrimos uma clareira e erguemos um abrigo.
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Muito vai depender do quanto esperamos e acreditamos. De modo geral acho que nos contentamos com muito pouco. Não falo em dinheiro, carro, casa, roupa, joias, viagens, que esses cobiçamos cada vez mais. Refiro-me aos tesouros humanos: ética, lealdade, amizade, amor, sensualidade boa.
Nossas asas não são tão precárias que tenhamos de voar junto ao chão ou apenas arrastar nosso peso. Nem somos tão covardes que não possamos botar a cabeça fora do casulo e espiar: quem sabe no tempo do qual fugimos nos aguarde, querendo ser colhido, algo chamado futuro, confiança, projeto, vida. Ainda que a gente nem perceba, tudo é avanço e transformação, acúmulo de experiência, dores do parto de nós mesmos, cada dia refeito. Somos melhores do que imaginamos ser. Que no espelho posto à nossa frente na hora de nascer a gente ao fim tenha projetado mais do que um vazio, um nada, uma frustração: um rosto pleno, talvez toda uma paisagem vista das varandas da nossa alma.
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Domesticar para não ser devorado Não é preciso consenso nem arte, nem beleza ou idade: a vida é sempre dentro e agora. (A vida é minha para ser ousada.)
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A vida pode florescer numa existência inteira. Mas tem de ser buscada, tem de ser conquistada.
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— Lya Luft, no livro “Perdas e ganhos”. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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