Demorei a arrumar minha mudança de casa, visto que transporto pelas andanças muitos e muitos e muitos cds. Sei que boa parte deles talvez nunca mais venha a ouvir novamente, mas entre as prateleiras lotadas deixo em destaque e do lado de fora das pilhas na estante “Tom e Elis”, disco considerado entre os maiores do mundo sob a crítica apaixonada de meu pai. Tom e Elis é um álbum que me acompanha em várias versões, desde o vinil arranhado de meu pai, até os sucessivos vinis comprados em sebos para substituir o inaugural. Mais adiante na época do florescimento dos cds, Tom e Elis foi o que inaugurou nossa discoteca.
Ouso falar sobre esse disco que foi eleito um dos melhores do mundo na década. Conheço toda a ordem das canções sem que necessite recorrer a ficha técnica. Comecemos pela beleza do encarte, Elis e Tom no centro da fotografia em sépia. O disco fora feito como presente da gravadora Philips para Elis, assim que completara dez anos de contrato. Elis Regina tinha o direito de escolher o que desejasse, um carro, uma mega viagem, no entanto a maior cantora do Brasil propôs fazer um disco com o maestro soberano Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. “Nos meus dez anos de gravadora ganhei de presente um encontro com Tom. Foram momentos vividos por duas pessoas muito tensas, que só conseguem se descontrair através da música. Ficou a saudade de um passado recente, em que as cores eram outras e as pessoas mais felizes.”
Aos vinte e nove anos Elis já era reconhecida como a mais talentosa cantora brasileira e estava pronta para encarar Jobim e a regência criteriosa de Bill Hitchcock. Cerca de duas décadas após o lançamento do disco, a TV Bandeirantes (1) soltou o registro da gravação em estúdio, numa noite memorável para o expectador e com direito ao comentário do jornalista e escritor Ruy Castro.
Elis chega no aeroporto em Los Angeles sendo recebida por Tom com uma florzinha, ato de candura calorosa do amigo que sabe que deve se desvestir da figura mítica e ser ele apenas, simples e claro como as iniciais de seu nome, simplesmente Tom. Dois gênios fortes e mentes criativas singulares se encontraram e geraram gravações iluminadas e atemporais como: “Águas de março”, “Pois é”, “Só tinha de ser com você”, “Modinha”, “Triste”, “Corcovado”, “O que tinha de ser”, “Retrato em Branco e Preto”, “Brigas, nunca mais”, “Por toda a minha vida”, “Fotografia”, “Soneto de separação”, “Chovendo na roseira”, “Inútil paisagem”.
Antes de iniciar a gravação, destacável momento de descontração entre Elis, Cesar Camargo Mariano e Tom Jobim. Tom ao violão toca “Céu e mar” de Johny Alf e expande em emoção para falar do grandioso Ary Barroso e atacar de “Na batucada da vida”. Elis faz os contracantos sentada num sofá e o clima é de pura descontração e alegria.
“Águas de março” abre o antológico disco e esta consiste na versão que mais me toca, mesmo com a existência de Elis solo em “Águas de março” no álbum de 72, o gênio João Gilberto, a Joagilbertiana Rosa Passos, e mais tantos e tantos na terra Brasílis e no mundo. A magnitude dos versos de Tom que se casam em absoluta sintonia com a música explicitam a grandeza da composição: “É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho/ é um caco de vidro, é a vida, é o sol/é a noite, é a morte, é um laço, é um anzol/ É peroba do campo, é o nó da madeira// É o mistério profundo é o queira ou não queira”. A estrutura aparentemente monocórdica ao ouvidos leigos contrasta com o passeio amplo que as palavras realizam pelo reino dos mistérios da natureza e os recônditos da ânima. Natureza e cultura se alternam em harmônica dialética nesta que pode ser considerada uma das mais belas músicas de nosso cancioneiro. Tom cria uma mundividência por meio da sucessão de objetos, atos, bichos , paisagens. A impressão de movimento é intensa, tal qual ele criara para o poema de Bandeira “Trem de ferro”, por ele musicado. A locomotiva em velocidade percorre o espaço da música, assim como metaforicamente há uma espécie de câmera veloz que perpassa as águas de março. O permanente movimento de gerar epifanias curtas no nascer e renascer : “É uma ave no céu, é uma ave no chão / É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão / É o fundo do poço, é o fim do caminho/ No rosto desgosto, é um pouco sozinho”.
“Pois é”, de Tom Jobim e Chico Buarque chega com apenas 1,45 após os 3,29 de Águas de março. Uma canção de fim de amor, mas despida de qualquer melodrama. O piano econômico de César, o baixo encorpado e singular de Luizão Maia, a guitarra de Hélio Delmiro e a bateria de Paulinho Braga formam uma banda que traz uma concepção jazzística com uma sonoridade que funde o que havia de mais moderno na época, como o piano elétrico e arranjos de cordas. Importante destacar que a união poesia e música se faz presente desde a primeira faixa. O lirismo que permeia “Pois é” enuncia a força do substrato poético da canção. Elis Regina não desperdiça sequer uma sílaba, interpretações que ganham assinatura de definitiva: “Pois é/ fica o dito e o redito por não dito/ E é difícil dizer que ainda é bonito/ Cantar o que me restou de ti/ daí nosso mais que perfeito está desfeito”.
“Só tinha de ser com você” é azulada como um céu, ou um mar que compõe a atmosfera de amor pleno e suave. Tem gosto de encantamento amoroso, se formos até Roland Barthes podemos dizer que o amor está em fase de descoberta entre tantos fragmentos de amor a ser vividos. Elis Regina é softy nesta interpretação, a cantora que já quis ser anti-bossa nova nesse caso se rende a elegância do canto cool.
Há gravações mínimas que soam quase como vinhetas que deixam no ouvinte sempre um gosto de quero mais, dada a perfeição com que se apresentam. “Triste” e “Corcovado” são composições gravadas por uma vastidão de intérpretes no mundo inteiro. Contudo, o arranjo de cordas para “Corcovado” soa atemporal e paradigmático para muitas outras leituras que sucederam Elis e Tom. – por Daniela Aragão **
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DISCO ‘ELIS & TOM’ (Elis Regina e Tom Jobim)
Contendo as músicas:
1. Águas de março (Tom Jobim)
2. Pois é (Tom Jobim e Chico Buarque)
3. Só tinha de ser com você (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira)
4. Modinha (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
5. Triste (Tom Jobim)
6. Corcovado (Tom Jobim)
7. O que tinha de ser (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
8. Retrato em branco e preto (Tom Jobim e Chico Buarque)
9. Brigas nunca mais (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
10. Por toda a minha vida (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
11. Fotografia (Tom Jobim)
12. Soneto da separação (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
13. Chovendo na roseira (Tom Jobim)
14. Inútil paisagem (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira)
– ficha técnica –
Arranjos: César Camargo e Mariano (fx. 5, 6, 8, 10, 12, 13), Tom Jobim (fx. 4) || Regência: Bill Hitchcock (fx. 4, 6, 8, 10, 12) || Músicos: Tom Jobim (piano – fx. 1, 4, 6, 7, 8, 12, 13, 14; violão – fx. 6, 13; voz – fx. 1, 6, 12, 14), Elis Regina (voz – fx. 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14), Paulinho Braga (bateria – fx. 1, 2, 3, 5, 6, 9, 11, 13), Hélio Delmiro (guitarra elétrica – fx. 2, 3, 5, 9, 11; violão – fx. 1), Oscar Castro Neves (violão – fx. 1, 3, 5, 9, 13), Luizão Maia (baixo – fx. 1, 2, 3, 5, 11, 13), César Camargo e Mariano (piano – fx. 1, 2, 5, 6, 13; piano elétrico – fx. 3, 9, 11), Chico Batera (percussão – fx. 11) / Quarteto de flautas: Hubert Laws, Jerome Richardson, … / Sexteto de cordas: ? || Direção de produção: Aloysio de Oliveira || Engenheiro técnico de gravação: Humberto Gatica || Mixagem: César Camargo e Mariano Layout (capa): Lobianco || Encarte: Aldo Luiz || Fotografia: Nelson Mascarenhas
Selo: Philips
Ano: 1974
Formato: LP
# Gravações realizadas no MGM Studios em Los Angeles (EUA), nos Estados Unidos, de 22 de fevereiro a 9 de março daquele ano de 1974.
– Lançado em CD/1990, pela Verve Records / Universal Music
– Em 2004, “Elis & Tom” foi remixado no Estúdios Trama pelo engenheiro Luis Paulo Serafim sob a supervisão de Cesar Camargo Mariano, a partir dos masters originais de 8 canais das sessões de gravação. O DVD Áudio, que roda em aparelhos de DVD vídeo, traz naturalmente uma mixagem em 5.1 e, como opção para aparelhos de CD, uma nova mixagem estereofônica, além de duas faixas bônus: “Fotografia”, em versão alternativa, e “Bonita” | Produção (2004): André Szajman, João Marcello Bôscoli e supervisão de Cesar Camargo Mariano
♪♫ Ouça o álbum no Spotify | YouTube.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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*Imagem (capa): Tom Jobim e Elis Regina, em 1974 – foto: Nelson Mascarenhas
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