COLUNISTAS

Tonacci e Meliande: sobre a perda de dois cineastas e memória seletiva – André de Paula Eduardo

O que Andrea Tonacci e Antonio Meliande, dois cineastas falecidos em fins do agourento 2016, teriam em comum – além de italianos de nascimento? Sem dúvida, ambos trouxeram uma contribuição imensa ao cinema brasileiro, cada qual a sua maneira. No entanto, a morte dos dois, num espaço curtíssimo de tempo, teve o efeito de mostrar que até em se tratando de nomes low profile da cultura nacional, conseguimos a proeza da seletividade e da injustiça do esquecimento.

Tonacci, autor de Bang bang (1971), destacado autor, é lembrado pela linguagem arrojada e pela capacidade de invenção, associado diretamente ao Cinema Marginal. “Toninho” Meliande é uma figura da Boca do Lixo, homem de cinema do tipo “pau pra toda obra”, também diretor (de filmes tidos, com frequência, como “vulgares”, e não apenas os da “fase terminal” da Boca). Acima de tudo, foi destacado fotógrafo, premiado por sua colaboração com o genial Walter Hugo Khouri em O anjo da noite (1974), além de ter trabalhado com João Batista de Andrade, Cláudio Cunha e outros diversos.

E eis que ambos morrem. A morte de Tonacci repercute imediatamente, seja nas redes sociais, seja no mundo de concreto e gente. Desde o dia de seu falecimento há uma referência ao diretor na página da Cinemateca, que, aliás, acaba de anunciar uma mostra que começa em fevereiro com o resgate da obra do autor de Serras da desordem (2006), talvez o filme brasileiro com a melhor recepção crítica na última década.

As reverências ao Tonacci são mais que merecidas. Mas ninguém, ou quase ninguém, reparou na morte do Meliande. Nem a wikipédia, até este presente janeiro, colocou uma “data de morte”, como se ele estivesse vivo. Nenhuma nota na imprensa, após semanas. Não fosse um texto do pesquisador Matheus Trunk, ninguém mesmo saberia de sua morte. Artista menor? Mero diretor de filmes de encomenda, ou de “sacanagem”?

Carapirú e Andrea Tonacci durante as filmagens de ‘Serras da Desordem’

Falemos um pouco de Meliande. Figura querida da Boca, dirigiu, entre outros, uma pequena pérola do subgênero Woman In Prision, Escola penal de meninas violentadas (1977), algo bem ao gosto das produções da Rua do Triumpho em fins dos setenta. Filme-compêndio do cinema W.I.P., é um registro curioso por sua possível leitura política: ali estão a tortura e a necessidade de “reeducação”, o escracho das autoridades, o moralismo de fachada, a ironia contra o discurso militar no recinto. Se era pretexto para exibir mulheres nuas, também fala de política num momento em que a redemocratização engatinhava.

Meliande sabia trabalhar com poucos recursos. Nesse registro ele está improvisando uma grua. foto: acervo pessoal – fonte: Vice

Meliande realizaria, anos depois, outro filme curioso, Liliam, a suja (1981), com “m” mesmo, cuja protagonista é algo de anti-heroína com psicopata, anjo vingador de saias, terror de machos misóginos. Também dirigiu John Herbert em Bacanal (1980), além de outros nomes famosos, como Jofre Soares, Aldine Muller, Mário Benvenuti, Monique Lafond, Zilda Mayo e Sérgio Hingst. Com a decadência da Boca, ano a ano, se jogaria nas “farsas explícitas” que tomaram as salas “populares” sobretudo após 1984.

No entanto, seu trabalho é mais reconhecido como diretor de fotografia. Onipresente na Boca, foi parceiro de Alfredo Sternheim, e trabalhou com José Miziara, David Cardoso, Cláudio Cunha. Seus filmes mais lembrados são os que rodou com João Batista de Andrade, Doramundo (1978) e A próxima vítima (1983), além, claro, das diversas parcerias com Walter Hugo Khouri, destaque para O anjo da noite (1974), no qual foi premiado em Gramado. Com Khouri ainda fotografou Prisioneiro do sexo (1978), Convite ao prazer (1980), Eros, o Deus do amor (1981), Amor estranho amor (1982), dentre outros.

Talvez seja mera casmurrice. Talvez. Mas fica um ar de que, em matéria de memória, ainda deixamos muito a desejar. Parece que, até ao acertar, erramos; rendemos os louros merecidos a um “marginal” como Tonacci, mas porque uma “marginal” como Meliande não mereceria sequer uma linha na imprensa após sua morte? Ambos, Tonacci e Meliande, são nomes largamente desconhecidos de um “grande público”; no entanto, parece caber apenas ao primeiro certa atmosfera cult, ao passo que Toninho Meliande não passaria de mais um operário da Rua do Triumpho. Associamos o nome de Tonacci ao Cinema Marginal, mas é como se Meliande fosse marginal até nisso em relação ao “marginal”, ao menos em nossa memória. E Meliande é dono de contribuição imensa num capítulo à parte e fundamental da história de nosso cinema.

Sobre a Cinemateca Brasileira, que cumpre o trabalho louvável de prezar pela memória do cinema brasileiro, dentre outras funções, e que anuncia uma retrospectiva do Tonacci: por que não resgatar a obra do Meliande, mesmo que a título de homenagem, incluindo os principais longas que dirigiu, o projeto coletivo As safadas (1982) (com Carlos Reichenbach e Inácio Araújo) e, claro, os diversos trabalhos que fotografou, do Khouri, do Sternheim, do João Batista de Andrade?

Aqui, um texto interessante, da pesquisadora Andrea Ormond, comentando o curiosíssimo Liliam, a Suja.

Em tempo, as homenagens ao Tonacci são mais que justas, e aqui há um dossiê da Abraccine sobre o mestre.

* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

Para saber mais:
ABREU, Nuno César. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas: Unicamp, 2016.
STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca: dicionário de diretores. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.

Revista Prosa Verso e Arte

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