sábado, novembro 2, 2024

Tu, só tu, puro amor – Machado de Assis

Arte da capa: ©Leonid Afremov 

Tu só, tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga…
– Camões, Lusíadas, 3, CXIX.

O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catarina de Ataíde é o objeto da comédia, desfecho que deu lugar à subseqüente aventura de África, e mais tarde à partida para a Índia, donde o poeta devia regressar um dia com a imortalidade nas mãos. Não pretendi fazer um quadro da corte de D. João II, nem sei se o permitiam as proporções mínimas do escrito e a urgência da ocasião. Busquei sim haver-me de maneira que o poeta fosse contemporâneo de seus amores, não lhe dando feições épicas, e, por assim dizer, póstumas.

Na primeira impressão escrevi uma nota, que reproduzi na segunda, acrescentando-lhe alguma coisa explicativa. Como na cena primeira se trata da anedota que motivou o epigrama de Camões ao duque de Aveiro, disse eu ali que, posto se lhe não possa fixar data, usaria dela por me parecer um curioso rasgo de costumes. E aduzi: “Engana-se, creio eu, o Sr. Teófilo Braga, quando afirma que ela só podia ter ocorrido depois do regresso de Camões a Lisboa, alegando, para fundamentar essa opinião, que o título de duque de Aveiro foi criado em 1557. Digo que se engana o distinto escritor, porque eu encontro o duque de Aveiro, cinco anos antes, 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa d. Joana, noiva do príncipe d. João (Veja Mem. e Doc. Anexos aos Anéis de d. João III, págs. 440 e 441); e, se Camões só em 1553 partiu para a Índia, não é impossível que o epigrama e o caso que lhe deu origem fossem anteriores.”

Temos ambos razão, o Sr. Teófilo Braga e eu. Com efeito, o ducado de Aveiro só foi criado formalmente em 1557, mas o agraciado usava o título desde muito antes, por mercê de D. João III: é o que confirma a própria carta régia de 30 de agosto daquele ano, textualmente inserta na Hist. Geneal… de D. Antônio Caetano de Souza, que cita em abono da asserção o testemunho de Andrade, na Crônica d’el-rei d, João III. Naquela mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na transladação dos ossos d’el-rei D, Manuel estivera presente o duque de Aveiro. Não é pois impossível que a anedota ocorresse antes da primeira ausência de Camões.

MACHADO DE ASSIS.

PERSONAGENS

CAMÕES
ANTÔNIO DE LIMA
CAMINHA
D. MANUEL DE PORTUGAL
D. CATARINA DE ATAÍDE
D. FRANCISCA DE ARAGÃO

Sala no paço
CENA I

CAMINHA, D. MANUEL DE PORTUGAL

(Caminha vem do fundo, da esquerda; vai a entrar pela porta da direita, quando lhe sai Manoel de Portugal, a rir).

CAMINHA — Alegre vindes, senhor D. Manuel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma coisa graciosa, de certo…

D. MANUEL — Não; não foi El-rei. Adivinhai o que seria, se é que o não sabeis já.

CAMINHA — Que foi?

D. MANUEL — Sabeis o caso da galinha do duque de Aveiro?

CAMINHA — Não.

D. MANUEL — Não sabeis? — Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz um gesto de má vontade.) Uns versos como ele os sabe fazer. (À parte.) Doe-lhe a noticia. (Alto.) Mas, deveras não sabeis do encontro de Camões com o duque de Aveiro?

CAMINHA — Não.

D. MANUEL — Foi o próprio duque que mo contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei…

CAMINHA — Que houve então?

D. MANUEL — Eu vo-lo digo; achavam-se ontem, na igreja do Amparo, o duque e o poeta…

CAMINHA, com enfado. — O poeta! O poeta! Não é mais que engenhar aí uns poucos versos, para ser logo poeta! Desperdiçais o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas…

D. MANUEL — Parece-vos então…?

CAMINHA — Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presunção dele e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E canções… Digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com boa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que pode vir a ser…

D. MANUEL — Acabe.

CAMINHA — Está acabado: um poeta sofrível.

D. MANUEL — Deveras? Lembra-me que já isso mesmo lhe negastes.

CAMINHA, sorrindo. — No meu epigrama, não? E nego-lho ainda agora, se não fizer o que vos digo. Pareceu-vos gracioso o epigrama? Fi-lo por desenfado, não por ódio… Dizei, que tal vos pareceu ele?

D. MANUEL — Injusto, mas gracioso.

CAMINHA — Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo supus que me desdenháveis. Não era impossível que assim fosse. Intrigas da corte dão azo a muita injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes desse rixoso… Juro-vos que ele me tem ódio.

D. MANUEL — O Camões?

CAMINHA — Tem, tem…

D. MANUEL — Por quê?

CAMINHA — Não sei, mas tem. Adeus.

D. MANUEL — Ides-vos?

CAMINHA — Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta da direita. D. Manuel dirige-se para o fundo.)

D. Manuel, andando.

Eu já vi a taverneiro
vender vaca por carneiro…

CAMINHA, volta-se. — Recitais versos?… São vossos?… Não me negueis o gosto de os ouvir.

D. MANUEL — Meus não; são de Camões… (Repete, descendo a cena.)

Eu já vi a taverneiro
Vender vaca por carneiro…

CAMINHA, sarcástico. — De Camões?… Galantes são. Nem Virgílio os daria melhores. Ora, fazei o favor de repetir comigo:

Eu já vi a taverneiro
Vender vaca por carneiro…

— E depois vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor.

D. MANUEL — O duque de Aveiro e o poeta encontraram-se ontem na igreja do Amparo. O duque prometeu ao poeta mandar-lhe uma galinha de sua mesa, mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir:

Eu já vi a taverneiro,
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi, por vida minha,
vender vaca por galinha,
senão ao duque de Aveiro.

— Confessai, confessai senhor Caminha, vós que sois poeta, confessai que há aí certo pico, e uma simpleza de dizer… Não vale tanto de certo como os sonetos dele, alguns dos quais são sublimes, aquele por exemplo:

De amor escrevo, de amor trato e vivo…

ou este

Tanto de meu estado me acho incerto…

— Sabeis a continuação?

CAMINHA — Até lhe sei o fim:

Se me pergunta alguém porque assim ando
respondo que não sei, porém suspeito
que só porque vos vi, minha senhora.

— (Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora… Sabeis vós, de certo, quem é esta senhora do poeta, como eu o sei, como o sabem todos… Naturalmente amam-se ainda muito?

D. Manuel, à parte. — Que quererá ele?

CAMINHA — Amam-se por força.

D. MANUEL — Cuido que não.

CAMINHA — Que não?

D. MANUEL — Acabou, como tudo acaba.

CAMINHA, sorrindo. — Anda lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossível que também vós… Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão?

D. MANUEL — Que tem?

CAMINHA — Vede: um simples nome vos faz estremecer. Mas sossegai, que não sou vosso inimigo; mui ao contrário, amo-vos, e a ela também… e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sai pela direita.)

CENA II

DOM MANUEL DE PORTUGAL

— Este homem!… Este homem!… Como se os versos dele, duros e insossos… (Vai à porta por onde Caminha saiu e levanta o reposteiro.) Lá vai ele; vai cabisbaixo; rumina talvez alguma coisa. Que não sejam versos! (Ao fundo aparecem D. Antônio de Lima e D. Catarina de Ataíde.)

CENA III

D. MANUEL DE PORTUGAL, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. ANTÔNIO DE LIMA

D. ANTÔNIO DE LIMA — Que espreitais aí, senhor D. Manuel.

D. MANUEL — Estava a ver o porte elegante do nosso Caminha. Não vades supor que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhai, lá vai ele a desaparecer. Vai a El-rei.

D. ANTÔNIO — Também eu. Tu, não, minha boa Catarina. A rainha espera-te. (D. Catarina faz uma reverência e caminha para a porta da esquerda.) Vai, vai, minha gentil flor… (A D. Manuel.) Gentil, não a achais?

D. MANUEL — Gentilíssima.

D. ANTÔNIO — Agradece, Catarina.

D. CATARINA — Agradeço; mas o certo é que o senhor D. Manuel é rico de louvores…

D. MANUEL — Eu podia dizer que a natureza é que foi conosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal aquilo que só poetas podem dizer bem. (D. Antônio fecha o rosto.) Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D. Antônio… (Corteja-os e sai. D. Catarina vai a entrar, à esquerda. D. Antônio detém-na.)

CENA IV

D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE

D. ANTÔNIO — Ouviste aquilo?

D. CATARINA, parando. — Aquilo?

D. ANTÔNIO — “Que só poetas podem dizer bem” foram as palavras dele. (D. Catarina aproxima-se.) Vês tu, filha? tão divulgadas andam já essas coisas, que até se dizem nas barbas de teu pai!

D. CATARINA — Senhor, um gracejo…

D. ANTÔNIO, enfadando-se. — Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que me dói… “Que só poetas podem dizer bem!” E que é poeta! Pergunta ao nosso Caminha o que é esse atrevido, o que vale a sua poesia… Mas, que seja outra e melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te às mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te.
D. CATARINA, procurando moderá-lo. — Meu pai…

D. ANTÔNIO — Teu pai e teu senhor!

D. CATARINA — Meu senhor e pai… juro-vos que… Juro-vos que vos quero e muito… Por quem sois, não vos irriteis contra mim!

D. ANTÔNIO — Jura que me obedecerás.

D. CATARINA — Não é essa a minha obrigação?

D. ANTÔNIO — Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pai que sou. Agora, anda, vai.

CENA V

D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO

D. ANTÔNIO — Mas não, não vás sem falar à senhora D. Francisca de Aragão, que aí nos aparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou, como dizia a farsa do nosso Gil Vicente, que eu ouvi há tantos anos, por tempo do nosso sereníssimo senhor D. Manuel… Velho estou, minha formosa dama…

D. FRANCISCA — E que dizia a farsa?

D. ANTÔNIO — A farsa dizia:

É bonita como estrela,

Uma rosinha de Abril,

Uma frescura de maio,

Tão manhosa.

Tão sutil!

— Vede que a farsa adivinhava já a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil…

D. FRANCISCA — Manhosa, eu?

D. ANTÔNIO — E sutil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vai a sair pela porta da direita; aparece Camões.)

CENA VI

OS MESMOS, CAMÕES

D. CATARINA, à parte. — Ele!

D. FRANCISCA, baixo a D. Catarina. — Sossegai!

D. ANTÔNIO — Vinde cá, senhor poeta das galinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigrama. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazê-lo do que eu a dizer-vos que me divertiu muito… E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Há de emendar, que não é nenhum mesquinho.

CAMÕES, alegremente. — Pois El-rei deseja o contrário…

D. ANTÔNIO — Ah! Sua Alteza falou-vos disso?… Contar-mo-eis em tempo. (A D. Catarina, com intenção). Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? Eu vou falar a El-rei. (D. Catarina corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. Antônio sai pela direita.)

CENA VII

OS MESMOS, menos D. ANTÔNIO DE LIMA

(D. Catarina quer sair, D. Francisca de Aragão detém-na.)

D. FRANCISCA — Ficai, ficai…

D. CATARINA — Deixe-me ir!

CAMÕES — Fugis de mim?

D. CATARINA — Fujo… Assim o querem todos.

CAMÕES — Todos quem?

D. FRANCISCA, indo a Camões. — Sossegai. Tendes, na verdade, um gênio, uns espíritos… Que há de ser? Corre a mais e mais a notícia dos vossos amores… e o senhor D. Antônio, que é pai, e pai severo…

CAMÕES, vivamente a D. Catarina. — Ameaça-vos?

D. CATARINA — Não; dá-me conselhos… bons conselhos, meu Luís. Não vos quer mal, não quer… Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas passou. Dizei-nos lá esses versos de que faláveis há pouco. Um epigrama, não é? Há de ser tão bonito como os outros… menos um.

CAMÕES — Um?

D. CATARINA — Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé.

CAMÕES, com desdém. — Que monta? Bem frouxos versos.

D. FRANCISCA — Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os piores versos deste mundo são os que se fazem a outras damas. (A D. Catarina.) Acertei? (A Camões.) Ora, andai, vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigrama, não a mim, que já o sei de cor, porém a ela que ainda não sabe nada… E que foi que vos disse El-rei?

CAMÕES — El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: — «Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com galinhas, por que assim nos alegrareis com versos tão chistosos.

D. FRANCISCA — Disse-vos isto? é um grande espírito El-rei!

D. CATARINA, a D. Francisca. — Não é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes?

CAMÕES — Eu? nada… ou quase nada. Era tão inopinado louvor que me tomou a fala. E, contudo, se eu pudesse responder agora… agora que recobrei os espíritos… dir-lhe-ia que há aqui (leva a mão à fronte) alguma coisa mais do que simples versos de desenfado… dir-lhe-ia que… (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quais se acha.) Um sonho… às vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu século… Sonhos… sonhos! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da cristandade, e que o amor é a alma do universo!

D. FRANCISCA — O amor e a espada, senhor brigão!

CAMÕES, alegremente. — Por que me não dais logo as alcunhas que me hão de ter posto os poltrões do Rocio? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria… Não sabeis? Naturalmente não; vós gastais as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz do espírito.

D. CATARINA, com intenção. — Nem sempre.

D. FRANCISCA — Isto é convosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.)

D. CATARINA — Vinde cá…

D. FRANCISCA — Vou-me… vou a consolar o nosso Caminha, que há de estar um pouco enfadado… Ouviu ele o que El-rei vos disse?

CAMÕES — Ouviu; que tem?

D. FRANCISCA — Não ouviria de boa sombra.

CAMÕES — Pode ser que não… dizem-me que não. (A D. Catarina.) Pareceis inquieta…

D. CATARINA, a D. Francisca. — Não, não vades; ficai um instante.

CAMÕES, a D. Francisca. — Irei eu.

D. FRANCISCA — Não, senhor; irei eu só. (Sai pelo fundo.)

CENA VIII

CAMÕES, D. CATARINA DE ATAÍDE

CAMÕES, com uma reverência. — Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catarina de Ataíde! (D. Catarina dá um passo para ele.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda.

D. CATARINA — Não… vinde cá… (Camões detém-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (Camões aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidais de mim?

CAMÕES — Cuido que me quereis ausente.

D. CATARINA — Luís! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes… falarmos a sós… Duvidais de mim?

CAMÕES — Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura: da vossa firmeza é que eu duvido.

D. CATARINA — Receais que fraqueie algum dia?

CAMÕES — Receio; chorareis muitas lágrimas, muitas e amargas… mas, cuido que fraqueareis.

D. CATARINA — Luís! juro-vos…

CAMÕES — Perdoai, se vos ofende esta palavra. Ela é sincera: subiu-me do coração à boca. Não posso guardar a verdade; perder-me-ei algum dia por dizê-la sem rebuço. Assim me fez a natureza; assim irei à sepultura.

D. CATARINA — Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a afrontar tudo, até a cólera de meu pai. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém… (Camões dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo há pouco, já não tenho medo… amor sim… O que eu tenho é amor, meu Luís.

CAMÕES — Minha boa Catarina.

D. CATARINA — Não me chameis boa, que eu não sei se o sou… Nem boa, nem má.

CAMÕES — Divina sois .

D. CATARINA — Não me deis nomes que são sacrilégios.

CAMÕES — Que outro vos cabe?

D. CATARINA — Nenhum.

CAMÕES — Nenhum? — Simplesmente a minha doce e formosa senhora D. Catarina de Ataíde, uma ninfa do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem se lembrar que seu pai a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mor. Tudo isso havereis, enquanto que o coitado de Camões irá morrer em África ou Ásia…

D. CATARINA — Teimoso sois! Sempre essas idéias de África…

CAMÕES — Ou Ásia. Que tem isso? Digo-vos que, às vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginai agora…

D. CATARINA — Não imagino nada; vós sois meu, tão só meu, tão-somente meu. Que me importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixáveis, para ir às vossas Áfricas… E os meus sonetos? Quem mos havia de fazer, meu rico poeta?

CAMÕES — Não faltará quem vo-los faça, e da maior perfeição.

D. CATARINA — Pode ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos… como aquele da Circe, o meu retrato, dissestes vós.
CAMÕES, recitando.

Um mover de olhos, brando e piedoso.
Sem ver de que; um riso brando e honesto,
Quase forçado um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso…

D. CATARINA — Não acabeis, que me obrigareis a fugir de vexada.

CAMÕES — De vexada! Quando é que a rosa se vexou, por que o sol a beijou de longe?

D. CATARINA — Bem respondido, meu claro sol.

CAMÕES — Deixai-me repetir que sois divina. Natércia minha, pode a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixai-me crê-lo, ao menos; deixai-me crer que há um vínculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria natureza poderia já destruir. Deixai-me crer… Não me ouvis?

D. CATARINA — Ouço, ouço.

CAMÕES — Crer que a última palavra de vossos lábios será o meu nome. Será? Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-ei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que todos os demais homens.

D. CATARINA — Acabai!

CAMÕES — Que mais?

D. CATARINA — Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabai, acabai, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; falai sempre, deixai-me ficar perpetuamente a escutar-vos.

CAMÕES — Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam sós nesta sala! (D. Catarina afasta-se rapidamente.) Olhai; só a idéia do perigo vos arredou de mim.

D. CATARINA — Na verdade, se nos vissem… Se alguém aí, por esses reposteiros… Adeus…

CAMÕES — Medrosa, eterna medrosa!

D. CATARINA — Pode ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato?

Um encolhido ousar, uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente sofrimento…

CAMÕES –

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

D. CATARINA, indo a ele. — Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis dela, que lhe perdoeis os medos, tão próprios do lugar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ela às vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam escutá-la. Entendeis? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta… e agora… (Estende-lhe a mão.) Adeus!

CAMÕES — Ides-vos?

D. CATARINA — A rainha espera-me. Audazes fomos, Luís. Não desafiemos o paço… que esses reposteiros…

CAMÕES — Deixa-me ir ver!

D. CATARINA, detendo-o. — Não, não. Separemo-nos.

CAMÕES — Adeus! (D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda; Camões olha para a porta da direita.)

D. CATARINA — Andai, andai!

CAMÕES — Um instante ainda!

D. CATARINA — Imprudente! Por quem sois, ide-vos meu Luís!

CAMÕES — A rainha espera-vos?

D. CATARINA — Espera.

CAMÕES — Tão raro é ver-vos!

D. CATARINA — Não afrontemos o céu… podem dar conosco…

CAMÕES — Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e a que o faria respeitar!

D. CATARINA, aflita pegando-lhe na mão. — Reparai, meu Luís, reparai onde estais, quem eu sou, o que são estas paredes… domai esse gênio arrebatado, peço-vo-lo eu. Ide-vos em boa paz, sim?

CAMÕES — Viva a minha corça gentil, a minha tímida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus!

D. CATARINA — Adeus!

CAMÕES, com a mão dela presa. — Adeus

D. CATARINA — Ide… deixai-me ir!

CAMÕES — Hoje há luar; se virdes um embuçado diante das vossas janelas, quedado a olhar para cima, desconfiai que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrela.

D. CATARINA — Cautela, não vos reconheçam.

CAMÕES — Cautela haverei; mas, que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno.

D. CATARINA — Sossegai. Adeus!

CAMÕES — Adeus!

(D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda, e pára diante dela, à espera que Camões saia. Camões corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e aparece Caminha. — D. Catarina dá um pequeno grito, e sai precipitadamente. — Camões detém-se. Os dois homens olham-se por um instante.)

CENA IX

CAMÕES, CAMINHA

CAMINHA, entrando. — Discreteáveis com alguém, ao que parece…

CAMÕES — É verdade.

CAMINHA — Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava há pouco com alguns fidalgos. Sois o bem-amado, entre os últimos de Coimbra. — Com que, discreteáveis… Com alguma dama?

CAMÕES — Com uma dama.

CAMINHA — Certamente formosa, que não as há de outra casta nestes reais paços. Sua Alteza cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pai. Damas formosas, e, quanto possível, letradas. São estes, dizem, os bons costumes italianos. É vós, senhor Camões, por que não ides à Itália?

CAMÕES — Irei à Itália, mas passando por África.

CAMINHA — Ah! Ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho… Não, poupai os olhos, que são o feitiço dessas damas da corte; poupai também a mão, com que nos haveis de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupai…

CAMÕES — Uma palavra, senhor Pero de Andrade. Uma só palavra, mas sincera.

CAMINHA — Dizei.

CAMÕES — Dissimulais algum outro pensamento. Revelai-mo… intimo-vos que mo reveleis.

CAMINHA — Ide à Itália, senhor Camões, ide à Itália.

CAMÕES — Não resistireis muito tempo ao que vos mando.

CAMINHA — Ou à África, se o quereis… ou à Babilônia… À Babilônia melhor; levai a harpa do desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escritura, cantar-nos-eis a linda copla da galinha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem:

Perdigão perdeu a pena,

Não há mal que lhe não venha.

Ide à Babilônia, senhor Perdigão!

CAMÕES, pegando-lhe no pulso. — Por vida minha, calai-vos!

CAMINHA — Vede o lugar em que estais.

CAMÕES, solta-o. — Vejo; vejo também quem sois; só não vejo o que odiais em mim.

CAMINHA — Nada.

CAMÕES — Nada?

CAMINHA — Coisa nenhuma.

CAMÕES — Mentis pela gorja, senhor camareiro.

CAMINHA — Minto? Vede lá; ia-me deixando arrebatar, ia conspurcando com alguma vilania esta sala de El-rei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? — Pode ser que sim, porque eu creio que efetivamente vos odeio, mas só há um instante, depois que me pagastes com uma injúria o aviso que vos dei.

CAMÕES — Um aviso?

CAMINHA — Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas.

CAMÕES — Não serão; mas eu as farei caladas.

CAMINHA — Pode ser. Essa dama era…?

CAMÕES — Não reparei bem.

CAMINHA — Fizestes mal; é prudência reparar nas damas; prudência e cortesia. Com que, ides à África? Lá estão os nossos em Mazagão, cometendo façanhas contra essa canalha de Mafamede; imitai-os. Vede, não deixeis lá esse braço, com que nos haveis de calar as paredes os reposteiros. É conselho de amigo.

CAMÕES — Por que sereis meu amigo?

CAMINHA — Não digo que o seja; o conselho é que o é.

CAMÕES — Credes, então…?

CAMINHA — Que poupareis uma grande dor e um maior escândalo.

CAMÕES — Percebo-vos. Imaginais que amo alguma dama? Suponhamos que sim. Qual é o meu delito? Em que ordenação, em que rescrito, em que bula, em que escritura, divina ou humana, foi já dado como delito amarem-se duas criaturas?

CAMINHA — Deixai a corte.

CAMÕES — Digo-vos que não.

CAMINHA — Oxalá que não!

CAMÕES, à parte. — Este homem… que há neste homem? Lealdade ou perfídia? (Alto.) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da cena). Por que não tratamos de versos?… Fora muito melhor…

CAMINHA. — Adeus, senhor Camões. (Camões sai.)

CENA X

CAMINHA, logo D. CATARINA DE ATAÍDE
CAMINHA – Ide, ide, magro poeta de camarins… (Desce ao proscênio.) Era ela, de certo, era ela que aí estava com ele, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos… Oh temeridade do amor! Do amor? ele… ele… Mas seria ela deveras?… Que outra podia ser?

D. CATARINA, espreita e entra. — Senhor… senhor…

CAMINHA — Ela!

D. CATARINA — Ouvi tudo… tudo o que lhe dissestes… e peço-vos que não nos façais mal. Sois amigo de meu pai, ele é vosso amigo; não lhe digais nada. Fui imprudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Caminha não diz nada.) Então? falai… poderei contar convosco?

CAMINHA — Comigo? (D. Catarina inquieta, aflita, pega-lhe na mão; ele retira-lha com aspereza.) Contar comigo! para que, minha senhora D. Catarina? Amais um mancebo digno, por que vós o amais… muito, não?

D. CATARINA — Muito.

CAMINHA — Muito, dizeis… E éreis vós que estáveis aqui, com ele, nesta sala solitária, juntos um do outro, a falarem naturalmente do céu e da terra… ou só do céu, que é a terra dos namorados. Que dizeis?…

D. CATARINA, baixando os olhos. — Senhor…

CAMINHA — Galanteios, galanteios, de que se há de falar lá fora… (Gesto de D. Catarina.) Ah! cuidais que estes amores nascem e morrem no paço? — Não; passam além; descem à rua, são o mantimento dos ociosos e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que se há de ocupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra… E confessais que lhe quereis muito. Muito?

D. CATARINA — Pode ser fraqueza; mas crime…onde está o crime?

CAMINHA — O crime está em desonrar as cãs de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por vielas e praças; o crime está em escandalizar a corte, com essas ternuras, impróprias do alto cargo que exerceis, do vosso sexo e estado… esse é o crime. E parece-vos pequeno?

D. CATARINA — Bem; desculpai-me, não direis nada…

CAMINHA — Não sei.

D. CATARINA — Peço-vos… de joelhos até… (Faz um gesto para ajoelhar-se, ele impede-lho.)

CAMINHA — Perderíeis o tempo; eu sou amigo de vosso pai.

D. CATARINA — Contar-lhe-eis tudo?

CAMINHA — Talvez.

D. CATARINA — Bem mo diziam sempre; sois inimigo de Camões.

CAMINHA — E sou.

D. CATARINA — Que vos fez ele?

CAMINHA — Que me fez? (Pausa.) D. Catarina de Ataíde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só a sua soberba que me afronta; fosse só isso, e que me importava um frouxo cerzidor de palavras, sem arte nem conceito?

D. CATARINA — Acabai.

CAMINHA — Também não é porque ele vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D. Catarina de Ataíde, vós o amais… eis o crime de Camões. Entendeis?

D. Catarina, depois de um instante de assombro. — Não quero entender.

CAMINHA — Sim, que também eu vos quero, ouvis? — E quero-vos muito… mais do que ele, e melhor do que ele; porque o meu amor tem o impulso do ódio, nutre-se do silêncio, o desdém o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor…

D. CATARINA — Calai-vos! Pela Virgem, calai-vos!

CAMINHA — Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverência.) Mandais alguma outra coisa?

D. CATARINA — Não, ficai, ficai. Jurai-me que não direis nada…

CAMINHA — Depois da confissão que vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei tudo a vosso pai. Não sei se a ação é má ou boa; sei que vos amo, e que detesto esse rufião, a quem vadios deram foros de letrado.

D. CATARINA — Senhor! É demais!

CAMINHA — Defendei-o, não é assim?

D. CATARINA — Odiai-o, se vos apraz; insulta-o, é que não é de cavaleiro…

CAMINHA — Que tem? O amor desprezado sangra e fere.

D. CATARINA — Deixai que lhe chame um amor vilão.

CAMINHA — Sois vós agora que me injuriais. Adeus, senhora D. Catarina de Ataíde! (Dirige-se para o fundo.)

D. CATARINA, tomando-lhe o passo. — Não! Agora não vos peço… intimo-vos que vos caleis.

CAMINHA — Que recompensa me dais?

D. CATARINA — A vossa consciência.

CAMINHA — Deixai em paz os que dormem. Quereis que vos prometa alguma coisa? Uma só coisa prometo; não contar a vosso pai o que se passou. Mas, se por denúncia ou desconfiança, for interrogado por ele, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: — não faltarei à verdade, que é dever de cavaleiro; e depois… chorareis lágrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angústia será a minha consolação. Onde falecerdes de pura saudade, ai me glorificarei eu. Chamai-me agora perverso, se o quereis; eu respondo que vos amo, e que não tenho outra virtude. (Vai a sair, encontra-se com D. Francisca de Aragão; corteja-a e sai.)

CENA XI

D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. FRANCISCA — Vai afrontado o nosso poeta. Que terá ele? (Reparando em D. Catarina. ) Que tendes vós? Que foi?

D. CATARINA — Tudo sabe.

D. FRANCISCA — Quem?

D. CATARINA — Esse homem. Achou-nos nesta sala; eu tive medo; disse-lhe tudo.

D. FRANCISCA — Imprudente!

D. CATARINA — Duas vezes imprudente; deixei-me estar ao lado do meu Luís, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas… e o tempo corria… e podiam espreitar-nos… Credes que o Caminha diga alguma coisa a meu pai?

D. FRANCISCA — Talvez não.

D. CATARINA — Quem sabe? Ele ama-me.

D. FRANCISCA — O Caminha?

D. CATARINA — Disse-mo agora. Que admira? Acha-me formosa, como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada às ocultas, odiada às escancaras, e, talvez… Se meu pai vier a saber… que fará ele, amiga minha?

D. FRANCISCA — O senhor D. Antônio é tão severo!

D. CATARINA — Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o castigue, que o encarcere, não? E por minha causa… Não; primeiro irei eu… (Dirige-se para a porta da direita.)

D. FRANCISCA — Onde ides?

D. CATARINA — Vou falar a El-rei… Ou, não… (Encaminha-se para a porta da esquerda.) Vou ter com a rainha; contar-lhe-ei tudo; ela me amparará. Credes que não?

D. FRANCISCA — Creio que sim.

D. CATARINA — Irei, ajoelhar-me-ei a seus pés. Ela é rainha, mas é também mulher… e ama-me. (Sai pela esquerda.)

CENA XII

D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTÔNIO DE LIMA, depois, D. MANUEL DE PORTUGAL

D. FRANCISCA, depois de um momento de reflexão. — Talvez chegue cedo demais. (Dá um passo para a porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale… mas, se se aventa a notícia? Meu Deus, não sei… não sei… Ouço passos… Entra D. Antônio de Lima. Ah!

D. ANTÔNIO — Que foi?

D. FRANCISCA — Nada, nada… não sabia quem era. Sois vós… (Risonha.) Chegaram galeões da Ásia; boas notícias, dizem…

D. ANTÔNIO — Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se.) Permitis?…

D. FRANCISCA — Jesus! Que tendes? Que ar é esse? (Vendo entrar D. Manuel de Portugal.) Vinde cá, senhor D. Manuel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo, que me não quer… (Segurando na mão de D. Antônio ). Então, eu já não sou a vossa frescura de maio?

D. ANTÔNIO, sorrindo a custo. — Sois, sois. Manhosamente sutil, ou sutilmente manhosa, à escolha; eu é que sou uma triste secura de dezembro, que me vou e vos deixo. Permitis, não? (Corteja-a e dirige-se para a porta.)

D. MANUEL, interpondo-se. — Deixai que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides ter com Sua Alteza, suponho?

D. ANTÔNIO — Vou.

D. MANUEL — Ides levar-lhe notícias da Índia?

D. ANTÔNIO — Sabeis que não é o meu cargo…

D. MANUEL — Sei, sei; mas dizem que… Senhor D. Antônio, acho-vos o rosto anuviado, alguma coisa vos penaliza ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoai se vos interrogo. Que foi? Que há?

D. ANTÔNIO, gravemente. — Senhor D. Manuel, tendes vinte e sete anos, eu conto sessenta; deixai-me passar. (D. Manuel inclina-se, levantando o reposteiro. D. Antônio desaparece.)

CENA XIII

D. MANUEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO

D. MANUEL — Vai dizer tudo a El-rei.

D. FRANCISCA — Credes?

D. MANUEL — Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antônio; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janela, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia: “Não vos nego, senhor D. Antônio, que os achei naquela sala, a sós e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei.”

D. FRANCISCA — Ouvistes isso?

D. MANUEL — D. Antônio ficou severo e triste. “Querem escândalo?…” foram as suas palavras. E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá… Penso que foi pedir alguma coisa a El-rei. Talvez o desterro.

D. FRANCISCA — O desterro?

D. MANUEL — Talvez. Camões há de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D. Antônio. Para quê? Que outros lhe falem, sim; mas o meu Luís que não sabe conter-se… D. Catarina?

D. FRANCISCA — Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe proteção.

D. MANUEL — Outra imprudência. Foi há muito?

D. FRANCISCA — Pouco há.

D. MANUEL — Ide ter com ela, se é tempo, dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D. Francisca vai a sair, e pára ) Recusais?

D. FRANCISCA — Vou, vou. Pensava comigo uma coisa. (D. Manuel vai a ela.) Pensava que é preciso querer muito aqueles dois para nos esquecermos assim de nós.

D. MANUEL — É verdade. E não há mais nobre motivo da nossa mútua indiferença. Indiferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angústia que nos cerca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Poderíeis vós esquecer-me. Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sai pela esquerda.)

CENA XIV

D. MANUEL DE PORTUGAL, logo D. ANTÔNIO DE LIMA

D. MANUEL — Se perco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas… Não é impossível. — El-rei concederá o que lhe pedir D. Antônio. A culpa, — força é confessá-lo, — a culpa é dele, do meu Camões, do meu impetuoso poeta; um coração sem freio… (Abre-se o reposteiro, aparece D. Antônio.) D. Antônio!

D. ANTÔNIO, da porta, jubiloso. — Interrogastes-me há pouco; agora hei tempo de vos responder.

D. MANUEL — Talvez não seja preciso.

D. ANTÔNIO, adianta-se — Adivinhais então?

D. MANUEL — Pode ser que sim.

D. ANTÔNIO — Creio que adivinhais.

D. MANUEL — Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões.

D. ANTÔNIO — Esse é o nome da pena: a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassalo, e a paz a um ancião.

D. MANUEL — Senhor D. Antônio…

D. ANTÔNIO — Nem mais uma palavra, senhor D. Manuel de Portugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural que vos ponhais do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até à vista, senhor D. Manuel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair.)

D. MANUEL — Se matais vossa filha?

D. ANTÔNIO — Não a matarei. Amores fáceis de curar são esses que aí brotam no meio de galanteios e versos. Versos curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei austero, em pai inflexível… Até à vista, senhor D. Manuel. (Sai pela esquerda.)

CENA XV

D. MANUEL DE PORTUGAL, logo CAMÕES

D. MANUEL — Perdido… está tudo perdido.(Camões entra pelo fundo.) Meu pobre Luís! Se soubesses…

CAMÕES — Que há?

D. MANUEL — El-rei… El-rei atendeu às súplicas do senhor D. Antônio. Está tudo perdido.

CAMÕES — E que pena me cabe?

D. MANUEL — Desterra-vos da corte.

CAMÕES — Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi…

D. MANUEL, aquietando-o. — Não direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem; deixai que os vossos amigos façam alguma coisa; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não fareis mais do que agravá-la.

CAMÕES — Desterrado! E para onde?

D. MANUEL — Não sei. Desterrado da corte é o que é certo. Vede… não há mais demorar no paço. Saiamos.

CAMÕES — Aí me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos dele fiquem assim melhores. Se nos vai dar uma nova Eneida, o Caminha? Pode ser, tudo pode ser… Desterrado da corte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crede, senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me ficam.

D. MANUEL — Tornareis, tornareis…

CAMÕES — E ela? Já o saberá ela?

D. MANUEL — Cuido que o senhor D. Antônio foi dizer-lho em pessoa. Deus ! Aí vem eles.

CENA XVI

OS MESMOS, D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE

D. Antônio aparece à porta da esquerda, trazendo D. Catarina pela mão. — D. Catarina vem profundamente abatida.

D. CATARINA, à parte, vendo Camões. — Ele! Dai-me força, meu Deus! (D. Antônio corteja os dois, e segue na direção do fundo. Camões dá um passo para falar-lhe, mas D. Manuel contém-no. D. Catarina, prestes a sair, volve a cabeça para trás.)

CENA XVII

D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES

CAMÕES — Ela aí vai… talvez para sempre… Credes que para sempre?

D. MANUEL — Não. Saiamos!

CAMÕES — Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, de onde não sei se a levantarei mais… Nem eu… (Voltando-se para D. Manuel.) Nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguém.

D. MANUEL — Desanimais depressa, Luís. Por que ninguém?

CAMÕES — Não saberia dizer-vos; mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez.

D. MANUEL — Confiai em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com eles; induzi-los-ei a….

CAMÕES — A quê? A mortificarem um camareiro-mor, a fim de servir um triste escudeiro que já estará a caminho de África?

D. MANUEL — Ides à África?

CAMÕES — Pode ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer… África, disse eu? Pode ser que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação.

D. MANUEL — Saiamos.

CAMÕES — E agora, adeus, infiéis paredes; sede ao menos com passivas; guardai-ma, guardai-ma bem, a minha formosa D. Catarina! (A D. Manuel.) Credes que tenho vontade de chorar?

D. MANUEL — Saiamos, Luís!

CAMÕES — Eu não choro, não; não choro… não quero… (Forcejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia é melhor; lá rematou a audácia lusitana o seu edifício, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta quimera, esta coisa que me flameja cá dentro, quem sabe se… Um grande sonho, senhor D. Manuel… Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa glória, é a nossa glória que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo ocidental. E nenhum lhe vai dar o ósculo que a fecunde; nenhum filho desta terra, nenhum que empunhe a tuba da imortalidade, para dizê-la aos quatro ventos do céu… Nenhum… (Vai amortecendo a voz.) Nenhum… (Pausa, fita D. Manuel, como se acordasse, e dá de ombros.) Uma grande quimera, senhor D. Manuel. Vamos ao nosso desterro.

– Machado de Assis, ‘Tu, só tu, puro amor’/ contos ‘Páginas Recolhidas’. in: Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol II, 1994. (Publicado originalmente em Revista Brasileira , Rio de Janeiro, 1880).

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