“Carnaval” no Brasil, em primeiríssimo lugar, remete à ideia de alegria, de felicidade passageira. De dias de momentâneo esquecimento dos dissabores da vida. A banda resolve passar por nossas existências tocando coisas de amor, e mesmo que tudo volte ao lugar pouco depois, lá esteve ele, o paliativo Carnaval: pular, foliar, exagerar.
Passados os clichês, é curioso pensar a relação da maior festividade popular brasileira com nosso cinema. Embora o carnaval esteja em diversas produções, o protagonismo do assunto não é tão frequente assim. “Carnaval Atlântida”, dirigido por José Carlos Burle é um dos primeiros nomes que vem à mente, produção típica da antiga Atlântida, no qual o tom paródico prevalecia.
Talvez o exemplo mais notável, justamente por ser, digamos, um tanto inusitado, seja “Quando o Carnaval chegar”, que Carlos Diegues lançou em 1972. “Cacá” Diegues já havia embarcado na nau do Cinema Novo mergulhando de cabeça no filme-manifesto “Cinco vezes favela” (1962), num episódio, aliás, intitulado “Escola de samba, alegria de viver”. Temos aqui uma espécie de prólogo da visão do carnaval de Diegues: antes da alegria, estão a disputa, a pobreza, a rivalidade, a falta de recursos. O problema clássico da cultura em um país subdesenvolvido e seus dilemas face às imposições do capital. Ou ainda: a necessidade de sobrevivência e de lutar pela preservação da tradição, que vai cedendo terreno à força devastadora da grana.
Após realizar “Os herdeiros” (1969), Cacá juntou Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia, já vozes conhecidíssimas da música brasileira para a linha de frente de “Quando o Carnaval chegar”. No filme, são o que são na vida real: três cantores que, com o empresário Lourival, vivido por Hugo Carvana e com o percussionista Cuíca (Antonio Pitanga), viajam num ônibus, em climão de road movie (antecipando “Bye bye Brasil”, sucesso que Diegues rodaria anos depois), embora aqui estejamos – naturalmente – no terreno do musical e do drama.
Chico é Paulo, Nara é Mimi, Bethânia é Rosa. E no começo, festa e canções, e sim, alguma alegria. A trupe está pronta para se apresentar num evento, empresariado por Lourival mas contratado pelo contraventor interpretado por José Lewgoy (acompanhado de um Wilson Grey vestido a la Cosa nostra). Ou seja: não se admite aqui que os mambembes cantores falhem.
Ocorre que, por quase todo o longa, o tom é de desagregação. Paulo se apaixona por Virgínia (Ana Maria Magalhães), moça que surge quase que do nada, mas se revelará com intenções duvidosas, oportunista, querendo algum “lugar ao sol”. Apaixonado, Paulo (ou seria Chico Buarque? É quase impossível assistir e deixar de confundir os personagens com os atores-cantores, figuras tão presentes da cultura brasileira) se dispersa. E “Nara Leão” Mimi, que ama Paulo, cai na tristeza, que ditará o ritmo do filme por um bom tempo. Para piorar, Rosa “Bethânia”, às voltas com questões religiosas, vacila quanto a sua presença no grupo, e Cuíca se engraça com a francesa vivida por Elke Maravilha – que, é claro, o deixará a ver navios.
Não bastasse a tristeza tomar conta do filme, a presença do gangsterismo traz outro componente, a violência. A força bruta, a chantagem, a ameaça entram em cena, a mando de Anjo (Lewgoy). Se Mimi não cantar, perderá sua casa, que a certa altura é depredada. E o ônibus colorido dos cantores, em certo momento, surge em chamas. Para quem observou o cartaz do filme, que também serviu de capa para a trilha sonora (interpretada por Chico, Nara e Bethânia e com canções de outros nomes portentosos como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Assis Valente e João de Barro, além do próprio Chico Buarque), soa no mínimo esquisito. Onde diabos foi parar a alegria que se espera de um filme sobre o Carnaval? A resposta, está, talvez, na relação que o diretor sempre buscou criar entre seus filmes e o momento político do país, e nisso haverá um suave parentesco de “Quando o Carnaval chegar” com seu longa anterior, o intrincado “Os herdeiros”.
Diegues, por excelência, é um cineasta popular. Não apenas pelos assuntos que elege, mas pelas escolhas que faz como realizador. Sua linguagem quase sempre primou pela clareza narrativa, pelo artesanato a serviço da inteligibilidade (uma exceção está em “Os herdeiros”), desde o debut no longametragem com “Ganga Zumba” (1963), cujo elenco principal é todo composto por atores negros (algo inédito no cinema brasileiro até então). Aliás, seu interesse pela cultura negra voltaria no sucesso “Xica da Silva” (1976) e mais tarde em “Quilombo” (1984). “Bye bye Brasil” (1979), outro sucesso de Cacá Diegues, traz novamente o tema de artistas mambembes de “Quando o carnaval chegar”, num road movie pelo norte do país. Talvez “menos populares” e mais “existenciais” ou “introspectivos”, estão o belo “Chuvas de verão” (1978) e “Um trem para as estrelas” (1987).
Assim, a vocação de Cacá Diegues para realizar uma obra sobre o carnaval parece incontestável. Ocorre que o diretor, e certamente Chico Buarque (um dos roteiristas, ao lado de Carvana e do próprio Diegues), tinha plena consciência do momento político do país. Se desde seu episódio em “Cinco vezes favela” a resistência já era a tônica, em “Quando o carnaval chegar” brota o protesto silencioso. O carnaval brasileiro em 1972, filmado por Cacá Diegues, jamais poderia ser feliz. Ao contrário, só poderia ser caótico, confuso, disperso, violento, triste. Não havia aqui, ao menos de forma tão explícita como em outras produções da época (caso de “Os inconfidentes”, que Joaquim Pedro de Andrade rodaria no mesmo ano de 72) referências à política da época, e isso sequer seria necessário. A festa em “Quando o carnaval chegar” se transmuta em um suplício sem fim, e a mensagem estava dada. Após 1964, o AI-5, a censura, os exílios, o que comemorar? E mesmo que, no final do filme um equilíbrio se reestabeleça, não é o suficiente para compensar o tom de desencanto.
Se o Carnaval funciona como um anestésico passageiro para a realidade, podemos dizer que Diegues foi cruel. Realizou seu carnaval sem encanto, sem alegria, de lamentos e desencontros, de violência e intimidação. Lá estávamos no longínquo ano de 1972, e quarenta e cinco anos depois – após um conturbadíssimo 2016 e um processo contínuo de degradação da vida política e social do país, não seria demais perguntar: como comemorar, ou ainda, o que comemorar, neste carnaval de 2017?
* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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