quinta-feira, novembro 21, 2024

Um moço muito branco – João Guimarães Rosa

Na a noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córregos a 60 palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos, fazendas sovertidas sem resto rolamentos de pedra e.lama tapando o estado do chão. Mesmo a distância do astroso arredor, a muita criatura e criação pereceu, soterradas ou afogadas. Outros vagavam ao deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos de outrora.

Donde, no termo de semana, dia de São Félíx, confessor, o caso de vir ao pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, com. sede quase dentro da rua do Arraial do Oratório, um coitado fugitivo desses, decerto persuadido da fome: o moço, pasmo. O que foi quando subitamente, e era moço de distintas formas, mas em lãs-tinia de condições, sem o restante de trapos com que se compor, pelo que enrolado em pano, espécie de manta de cobrir cavalos, achada não se supõe onde; e, assim em acanho, foi ele avistado, de muito manhã, aparecendo e se escondendo por detrás do cercado das vacas. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto, pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.

Hilário Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres, temente e bom, e mais ainda nesse pós-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido morte e arrasos totais, não duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de comer. E o que era mister de benemerência, porquanto o moço, com os sustos e baques, passara por desgraça extraordinária: perdida a completa memória de si, sua pessoa, além do uso da fala. Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo, não respondia, nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e lamentosa.

Nem fizesse por entender, isto é, entendia, às vezes ao contrário, os gestos. Dado que uma graça já devia de ter, não se lhe podia pôr outro nome, não adivinhado; nem se soubesse de que geração fosse — o filho de nenhum homem.
De tanto que chegou lá, e nos dias, compareceram os vários moradores, por sua causa, de há-de o que achassem. Tonto, não era. Só aquela intenção sonhosa, o certo cansaço do ar. Surpreendente, contudo, o que assaz observava, resguardado, até espreitasse por miúdo os vezos de coisas e pessoas; o que, porém, melhor se viu pelo depois. Gostou-se dele. Quiçá mais o preto José Kakende, escravo meio alforriado de um músico sem juízo, e ele próprio de Ideia conturbada; por último, então, delirado varrido, pelo fato de padecidos os grandes pavores, no lugar do Condado girava agora por aqui e ali, a pronunciar advertências e desorbitadas sandíces — querendo pôr em pé de verdade portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do rio do Peixe, na véspera das catástrofes. Do moço, pois, só não se engraçou, antes já de abínícío o malquerendo — e o reputando por vago e malfeitor a. rebuço, digno, noutros tempos, de degredo em África e nos ferros de el-rei — um chamado Duarte Dias, pai da mais bela moça, por nome Víviana; e do qual se sabia ser homem de gênio forte, além de maligno e injusto, sobre prepotências: naquele coração não caía nunca uma chuvinha. Não se lhe deu exata atenção.

Mas levaram o moço à missa, e ele portou-se, não fez modos de crer nem increr.
Cantoria e músicas do coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito, não; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas, saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa maior alegria — coração de cão com dono. Seu sorriso às vezes parava, referido a outro lugar, outro tempo.

Sorrindo mais com o rosto, senão com os olhos; suposto que nunca se lhe viram os dentes. Padre Bayão, antes de com ele bondosamente conferir, de improviso lhe representou diante o signo-da-cruz: e ele não mostrou o desagrado da matéria.

Estava nas altas atmosferas, aumentava sua presença. “Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má fadiga constante.” Traços estes consignados pelo mesmo padre, em carta de punho e firma, para testemunho do esquisito, ao cônego Lessa Cadaval, da ,Sé de Mariana. Na qual igualmente dá menção do preto José Kakende, que na mesma’ ocasião se lhe acercou, com altas e despauteradas falas, por impor sua visão da beira do rio: … “o rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplandor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores”. E, com o mesmo risonho José Kakende, veio Hílário Cordeiro trazendo de volta para casa o moço, num extrato de desvelo, como se o vero pai dele fosse.

Mas à porta da igreja se achava um cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente contam que seus olhos eram corde-rosa! E foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira. Ora, estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a almas cristãs devia de causar meditação o contraste de tanto padecer o calor do astro-rei aquele que nem as belezas da luz podia gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de cogitar em que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo que nenhuma, a levou prestes à boca; ao que, seu menino guia o advertiu: que não seria artigo de se comer, mas espécie de caroço de árvore. Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foi plantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da mais rara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas de maneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século; definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, e nem os ‘insetos a sabiam procurar.

No que, porém, acabada de se passar aquela cena, surgia no adro Duarte Dias, mais uns companheiros e serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer problema: queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela brancura da tez e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes, seus parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois, até o reconhecimento de alguma notícia, competia-lhe o ter em custódia, pelo costume, Sendo que Hilárío Cordeiro pronto contestou o postulado, e o argumento por um nada terminava em desavença séria, Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que só tornou em si ‘ante o parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na política e provedor da irmandade.
E, todavia, de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão, eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de feito, nem pudesse dar descargo de si — com as mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não embargando que grandes partes tivesse, para o que fosse de funções de engenhos, ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas invenções e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuídoso e acordado.
De estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite — espiador de estrelas. Que vezes, porém, mais lhe prouvesse o divertimento de acender fogos, sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e tamanhas fogueiras de festa.

Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O que foi quando ele já apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui bonita, mas que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a ela, gentil e espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio, delicadamente. Ora, sendo assim a moça Vivlana a mais formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não servisse para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas, Duarte Dias, o pai, e que a isso assistia, prorrompeu em pleiteantes brados de: — “Tem que casar! Agora, tem de casar!” — com instância. Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda mancebo, e lhe infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar com o estado de casado.

O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a grita de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos mais velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez. Também a moça Viviana, com radiosos sorrisos, o serenava.

Ela, que, a partir dessa hora, despertou em si um enfim de alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom. Apenas que, Duarte Dias — o que não se entende — ia produzir ainda outros lances de estupefação, eis-aqui.

De tal guisa que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do Casco, requerendo falar com Hilãrio Cordeiro. Também o moço lá estava.

Outrovisto, e nunca desairoso — a gente espiava, e pensava num logo luar. Então, Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. Que queria assim, e necessitava, muito, não por ambícíoneiro ou impostor, nem por interesse somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de escrúpulo, a fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras, alterado, enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um homem que, para manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos arrebatados meios e modos da violência. Mas, o moço, claro como o olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi conduzindo pelos campos — depois se soube que a terras dele mesmo, Duarte, aonde à tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou um panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual prodíglo, Duarte Dias pensou que ia virar ríquíssímo, e mudado de fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, Virtuoso e bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado dos coevos.

Mas, por conta, no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele se soube: o moço, plácido. Disse-se, que safra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de seus desapareceres; era um tempo de trovoadas secas. José Kakende contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões — de nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas.

Todos singularmente se deploraram, para nunca, mal em pensando. Duvidavam dos ares e montes; da solidez da terra. Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a moça Vivíana, conservou sua alegria. José Kakende conversou muito com o cego. Hilário Cordeiro, e outros, diziam experimentar uma saudade e meia-morte, só de imaginarem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada.

– João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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