domingo, dezembro 29, 2024

‘Um sonho modesto’ – uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Macunaíma, o “herói” de Mário de Andrade, gabava-se um dia de ter caçado dois veados-mateiros de uma só vez, quando pegara simplesmente dois ratos chamuscados. Como seus irmãos contestassem a proeza, ele “parou assim os olhos” no interlocutor e explicou:
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— Eu menti.

Desde domingo, o cronista se sente um pouco na situação de Macunaíma, embora (ou por isso mesmo) ninguém pusesse em dúvida a veracidade da passagem de Greta Garbo por Belo Horizonte. Pelo contrário, o crédito dispensado à narrativa foi unânime, e até cumprimentos recebeu o narrador, por motivos distintos. Louvaram-lhe uns o ter mantido por tantos anos o sigilo assegurado a Greta Garbo e, generosos, não exprobraram o fato de haver rompido esse silêncio, transcorrido um quarto de século. A atriz não pedira reserva por determinado período, e assim devia entender-se que a desejava para sempre; e sem consulta à Garbo, como quebrar o compromisso? “Você foi formidável, disse-me um amigo; vinte e seis anos com um segredo desses na moita!” Aprendi com isso que, para a virtude da discrição, ou de modo geral qualquer virtude, aparecer em seu fulgor, é necessário que faltemos à sua prática. Morresse eu com o meu segredo, ninguém me acharia formidável.

Outros, e esses me comoveram, vieram trazer-me agradecimentos da sua (ou nossa) geração, pelo bem feito a todos com a revelação do episódio. Afinal, de um grupo numeroso de homens que amaram Greta Garbo espiritualmente e na tela, dois, se não a amaram na realidade, pelo menos tiveram esse privilégio de passeá-la incógnita, pelas alamedas de um parque, num crepúsculo de outono mineiro. Et notre âme depuis ce temps tremble et s’étonne — como diz o poeta Verlaine. Tínhamos, Abgar Renault e o cronista, representado nesse passeio a sensibilidade de muitos.
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Já me sentia disposto a conceder a Pompeu de Sousa a entrevista solicitada para o Diário Carioca, e a ser ilustrada com a ingênua fotografia tirada por um profissional de jardim, com a “estrela” entre os seus dois amigos, e fac-símiles de bilhetes que ela nos escrevera, quando, rebuscando os meus guardados, verifiquei que faltavam bilhetes e foto. E faltavam pela simples e macunaímica razão de que jamais haviam existido.

A essa altura, porém, tornava-se mais fácil provar de diferentes maneiras o intermezzo belo-horizontino do que invalidá-lo. O Grande Hotel, em que jantáramos com a amiga, tanto podia ser o do filme do mesmo nome, por ela interpretado, como o venerando hotel da rua da Bahia, do saudoso Maletta. Os elementos de credibilidade e mesmo de convicção eram tão intensos, que me surpreendi perguntando, intrigado:
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— Onde diabo puseram os papéis que estavam na gaveta de cima? Vai ver que esses capetinhas botaram fogo neles!

Não, não botaram. Lamento desencantar os leitores que acharam não só plausível como até contada “com visível fidelidade” a historinha de Greta Garbo em Minas. Peço desculpas a Abgar Renault pelo incômodo que lhe haja causado o muito afeto em que o tenho, e que me levou a associá-lo a essa aventura imaginária. (Era preciso alguém que falasse inglês, e talvez até sueco, na minha pobre fábula.) Mas tirei uma segunda lição — sempre se tiram algumas, das situações mais insignificantes — e é que, vinte e cinco anos depois, tudo pode ser verdade, e é precisamente verdade. O homem guarda certa desconfiança a respeito de fatos ocorridos diante do seu nariz, presumindo que o estejam enganando; mas acredita piamente, por exemplo, no que lhe contarem a respeito de vultos cujo centenário se comemora, e está disposto a admitir qualquer coisa, desde que traga a chancela do tempo. As consequências a tirar desta disposição, no estudo da história, são óbvias: os manuais devem ser lidos e entendidos pelo avesso. Mas o cronista não quis provar absolutamente nada, imaginando que poderia ter conhecido Greta Garbo, por preguiça, aqui mesmo no Brasil. Quis apenas alimentar um modesto sonho de domingo, e los sueños sueños son.
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— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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