‘A flor da pele’ por Ágatha Abrahão*
Escrita no período da ditadura, a canção “A Flor da Pele” (O que será?), de Chico Buarque de Holanda e interpretação de Milton Nascimento, ainda me causa borboletas e sei lá mais quais tipos de bichinhos na barriga. Mesmo, ela mexe comigo de um jeito lindamente perturbador. Estou aqui, ouvindo a bendita no modo “repeat” há algumas horas, justamente para tentar minimamente, por em palavras o que ela me faz pensar e, juntinho com vocês, pensar em alguma hipótese sobre o que terá sido que a cabecinha genial e apaixonante do nosso amado Chico falava com essa música.
Em 1992, Chico teve acesso ao conteúdo de sua ficha no Dops-DPPS e achou curiosa a interpretação que os censores fizeram da letra. Em declaração ao Jornal do Brasil, o compositor disse: “acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar”.
Pode ter sido uma afronta velada ao regime militar, sim. E aí, vejam vocês: ele ter escrito e gravado essa letra é a prova material de que nem todas as armas e opressões podem domar o desejo. Arrisco dizer, inclusive, que me divido entre acreditar que Chico não respondeu a pergunta por puro cinismo, ou se ele não sabia mesmo nomear exatamente do que falava. Tendo a ficar com a segunda opção, já que segundo ele “mesmo que soubesse, não teria cabimento explicar”. Rá! Acho que esse homem estava falando de desejo, senhoras e senhores. E por desejo, não nos referimos meramente a vontade, não! Era algo imensamente mais profundo, denso e complexo do que isso. Algo que “não tem cabimento explicar”.
A psicanálise de Freud, desde os seus primórdios, com a histéricas de Viena (1893), nos mostra que o psiquismo da sempre o seu jeitinho de se fazer notar. Aquelas mulheres sofriam de gravíssimos adoecimentos físicos nos quais nenhum dos tratamentos empreendidos até então davam jeito. Consigo imaginar perfeitamente uma daquelas mulheres dizendo:
“O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
(…)
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
(…)
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
E nem todos os santos, será que será
(…)
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar…”
Governar, educar e curar – são as tarefas impossíveis que Freud aborda em dois trabalhos: “Prefácio à “Juventude Desorientada” de Aichhorn” (1925) e “Análise Terminável e Interminável (1937); Laplanche e Pontalis (1982) dizem que “A Psicanálise mostrou que o desejo se encontra nos sintomas sob a forma de compromisso”. Esse “compromisso” é lindamente ilustrado na letra de Chico em vários momentos, quando ele descreve tudo aquilo que está, como diz o título, “A Flor da Pele”. É como se, a despeito de todos os esforços, remédios, doutrinas, aquilo que é da ordem do desejo, tentasse forçar passagem.
Imaginem só se sistemas educacionais engessados, internações compulsórias, medicações psicotrópicas, diagnósticos, coaching (…) conseguiriam. Os sofrimentos emocionais da contemporaneidade nos mostram claramente que há cada vez menos espaço para o desejo e para as subjetividades.
Se é impossível, domar, controlar, educar, curar, governar (…), o que diabos devemos fazer com aquilo que força passagem, com aquilo que está “A Flor da Pele”? Circunscrever, se aproximar, ir na direção de. E como fazer isso? Bem, minhas queridas e queridos, permitam-me agora “legislar em causa própria”, além de dar testemunho do modo como conseguir dar conta, minimamente das minhas mazelas emocionais que, aos berros, acabaram afetando também o meu corpo: Fazendo análise, ora bolas! Esta é a maneira mais completa de lidar com aquilo que, ao mesmo tempo em que nos causa angústia, nos move na vida. É colocando palavras, é olhando e nos apropriando daquilo que sentimos, minha gente!
Isso aqui passa anos luz longe de pretender desqualificar o saber médico, as pesquisas das neurociências, da psiquiatria ou da psicofarmacologia. Estes são (ou deveriam ser) auxiliares para conseguirmos criar os recursos necessários para nos haver com nosso desejo, e não a única forma. O perigo de acreditar que medicalização e “pensamento positivo” resolvem angústia, é que estamos criando indivíduos incapazes de se olharem como sujeitos e de responsabilizarem por suas próprias questões.
Isso posto, vou encerrar repetindo indagações de Drummond e de uma das estrelas desse texto: “E agora, José? (Drummond) Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa? (Freud).
*Ágatha Abrahão, psicóloga clínica (adultos e crianças) de orientação psicanalítica, especialista em Psicanálise com crianças, apaixonada por psicologia social e garantia de direitos; Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte; Viciada em aroma de lavanda, amante incondicional de pizza e fã de Caetano.