Sr. Prefeito do Distrito Federal:
Saiba v. ex.a que, numa dessas claras manhãs, ainda estivais, mas sem a brasa de fevereiro, estava a ancila deste cronista varrendo literalmente a testada, ou seja, removendo para um canto, onde o gari pudesse apanhá-las, as coisas que vulgarmente se encontram no passeio, quando um transeunte a advertiu de que devia munir-se de uma pazinha e recolher as referidas coisas ao nosso domicílio. Respondeu ela (natural de Manhuaçu, mas com o senso holandês da limpeza) que por muitos anos de vida sempre varrera os detritos da calçada sem jamais os guardar para si e os patrões, pelo que não faria tal. O senhor, que era o chefe regional da limpeza urbana in person, insistiu, mas não obteve da minha fiel colaboradora senão a mesma negativa formal e surpresa. Ficou tudo nesse pé, até dois dias depois, quando recebi o documento que passo aos olhos de v. ex.a, em cópia:
“Auto de constatação de infração. O sr. Fulano, morador (ou com escritório) à rua tal, no tantos, cometeu a seguinte infração: por deixar de recolher os detritos da varredura capitulada nos arts. 505 e 804, § 115, do decreto no 6000, de 1 de 7 de 1937, conforme foi por mim, Beltrano, pessoalmente constatado no dia tal, às 9,10 horas. O infrator é passível da multa de Cr$ 100,00 que lhe será aplicada dentro de dez (10) dias pelo sr. Delegado Fiscal do Distrito se não efetuar o pagamento dessa importância com desconto de 30% pela forma indicada no verso deste auto.”
Confesso, ex.mo sr., que o decreto 6000 não é meu livro de cabeceira, e digo livro porque um decreto que tem mais de oitocentos artigos, e do qual um só artigo se desdobra em cento e quinze parágrafos, bem merece tal nome. Confesso também minha rotunda ignorância das leis, embora um princípio de direito estabeleça que a ninguém é lícito ignorá-las. Ouso dizer mais, sr. Prefeito: a população em peso, toda a humanidade, salvo os legisladores, e até esses, as ignoram. (No caso, oitocentos artigos e três mil parágrafos são muita coisa, em comparação com a brevidade da vida.) A lei, por sua vez, nos ignora a todos, dispondo isso e aquilo sem nos consultar se podemos cumpri-la; e até se ignora a si mesma, deixando de aplicar-se. Assim, manuseando com cautela e temor o famoso 6000, obtido por artes mágicas, pois está esgotadíssimo, li no art. 505 que “a população deve cooperar com a prefeitura na conservação da limpeza da cidade”. Deve, como? Tomando a seu cargo um pouco desse serviço? Não. Deixando de sujar, simplesmente, tanto que os parágrafos, ao especificarem a cooperação, quase todos são proibitivos: é proibido varrer de dentro das casas para fora, é proibido tocar águas de lavagem para a via pública etc. Apenas uma coisa se permite, vamos dizer, se tolera aos particulares, no § 2o: eles poderão fazer a varredura do passeio “no trecho correspondente à testada do prédio de sua propriedade, de sua residência ou de sua ocupação”. Podem; não devem. E mesmo assim, observando estas normas: a) em hora de pouco trânsito; b) sem levantar poeira; c) “com a condição expressa de serem imediatamente recolhidos ao depósito próprio, no interior do prédio, todos os detritos e a terra acaso apurados na varredura”.
Por isso fui multado, sr. Prefeito: porque não recolhi com velocidade ao interior de minha humilde e desaparelhada residência os detritos e a terra apurados na varredura. E que detritos eram esses? Folhas amarelas da amendoeira que me conforta a vista e que começa a despi-las numa avant-première de outono; casquinhas de sorvete que as moças primaveris e de maiô de uma ou duas peças vão jogando no rumo do Arpoador (a rua é de trânsito reduzido, mas seleto); e algum vago resíduo de passarinho, domiciliado na dita amendoeira. Terra não havia, sr. Prefeito; v. ex.a já viu terra na Zona Sul? Nem eu.
Aprendi, pois (e aprenda a população carioca, se o não sabia), que ninguém se meta a varrer o seu passeio, pois tem de levar para dentro de casa aquilo que apurar nessa operação. Pode apurar só o que foi dito, mas há outros logradouros mais produtivos, e se passa na calçada um elefante fugido do circo, e deixa uma lembrança (o 6000, que tudo prevê, não figura essa hipótese para proibi-la), o morador tem de recolher, numa grande pá, o souvenir do elefante. E como o lixeiro às vezes leva dias sem passar (oh, não muitos, apenas três ou quatro), o souvenir, em seu depósito interno, continuará ensinando a todos que a população “deve” cooperar para a limpeza da cidade.
De como paguei a multa (com trinta por cento de abatimento) e do que se seguiu, contarei a v. ex.a na próxima.
De v. ex.a, multado e admirador.
— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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