Gilles Lipovetsky, filósofo francês, tem a habilidade de tornar visíveis as relações existentes entre diversos fenômenos da atualidade. A temática do consumo, central em sua obra, é abordada pelo pensador sob perspectivas variadas, de modo que suas teorias contribuem com discussões nos campos da sociologia, da economia, da psicologia, da política, da comunicação, entre tantos outros.
Em entrevista ao jornalista Juremir Machado (Correio do Povo) durante sua passagem pelo Brasil, em junho de 2017, para o debate especial com Eduardo Giannetti no Fronteiras do Pensamento, o teórico falou sobre valores éticos e morais na atualidade, aplicados à esfera privada e política. Lipovetsky fez ainda relações com o consumo, a cultura da leveza e os paradoxos da sociedade de hoje.
Passados alguns anos a entrevista segue atualíssima.
“Cada um se sente honesto e rigoroso. Acha que seus ilícitos não são graves. O politicamente correto deve regular a vida dos outros, não a minha”, afirmou o filósofo.
Confira a entrevista completa!
Brasil e Espanha estão nas manchetes por causa de escândalos envolvendo políticos. Nos seus livros, a questão da moral e da ética está muito presente. A corrupção tornou-se um fenômeno generalizado com novas exigências de rigor ou apenas mais midiatizado?
A corrupção não é uma invenção do nosso tempo. No século XIX são muitos os exemplos de corrupção global, inclusive na imprensa, que se vendia. Não temos instrumentos para comparar. Não sei se há mais corrupção agora. O que mudou foi a cobrança cada vez maior da sociedade em relação aos políticos. Isso não quer dizer que as pessoas se tornaram padrões de moralidade e de ética. Para mim é o resultado do desabamento dos grandes sistemas políticos. O vazio de projetos coletivos é preenchido com a exigência de moralidade e de honestidade. Durante a Guerra Fria, a questão ética não importava. O essencial era o combate entre o campo ocidental capitalista e o campo soviético. Há, porém, um paradoxo: o cidadão cobra do eleito uma moralidade que ele mesmo nem sempre pratica. Não somos modelos de transparência e ética.
Há hipocrisia?
Prefiro a palavra esquizofrenia. Exigimos mais dos outros do que de nós mesmos. Sim, há hipocrisia. Há dois anos, na França, o ministro das Finanças, Jérôme Cahuzac, jurou no Parlamento que estava limpo, mas se descobriu que tinha uma conta secreta no estrangeiro. Quase todo mundo pede notas frias para tentar enganar o fisco ou pratica outras pequenas ou grandes ilegalidades a cada dia como as infrações de trânsito. Não somos missionários da moralidade. A novidade do nosso tempo, enfim, é a forte cobrança de ética em relação aos políticos.
Em relação a todos os políticos ou aos adversários?
No caso francês, não parece haver seletividade. François Fillon perdeu a eleição por causa do escândalo de emprego fictício envolvendo a sua esposa. Eleitores de direita também deixaram de votar nele por causa disso. Temos o seguinte: desencanto com as grandes ideologias, descrença no poder do Estado de reformar o mundo e dominação do mercado. Se o Estado não pode mudar o mundo, deve, ao menos, ser honesto. As desigualdades crescem, mas as pessoas não aceitam isso. A guerra à corrupção é uma forma de combater o fosso social existente. Nessa dinâmica cada um quer afirmar a sua individualidade, mostrar que é capaz de ser autônomo, crítico e atuante. Tudo se tornou muito complexo. Não entendemos a globalização e o universo financeiro, mas sabemos dizer se alguém é honesto ou desonesto. Isso dá uma autonomia aos indivíduos, a satisfação de ter uma opinião própria e de julgar os outros.
Emmanuel Macron foi eleito na França em nome da moralidade?
Não foi o determinante. O governo de François Hollande foi um desastre. Os extremos cresceram: extrema-direita com Marine Le Pen e extrema-esquerda com os trotskistas e Jean-Luc Mélénchon. O populismo ascendente mostra que a França digere mal o liberalismo. A globalização liberal provoca desgostos em muitos franceses. A direita tropeçou nos escândalos envolvendo François Fillon e sua mulher. A direita se suicidou. Macron ocupou o campo aberto apresentando-se como o novo, jovem, nem de direita nem de esquerda, querendo valorizar o mérito. Ele era o homem certo na hora em que tudo deu errado para os outros.
A corrupção brasileira repercute na França?
Não muito. Sai nos jornais impressos. Mas não ocupa grande espaço nos telejornais noturnos. A concorrência é grande com a situação europeia, com as crises locais e com os atentados terroristas. Nesse sentido, o Brasil não chega a interessar muito à mídia francesa.
O seu livro mais recente se chama ‘‘Da Leveza’’. Em tempos de leveza há uma exigência pesada de moralidade? Esse é mais um paradoxo do nosso tempo?
Sim, queremos leveza, mas ela pesa sobre nós. Temos pesquisas sobre educação. Os pais ensinam cada vez menos valores éticos aos filhos. Cobram, no entanto, dos outros que esses valores sejam ensinados e obedecidos. Os pais só se preocupam com a felicidade dos filhos. Nesse sentido, tornam mais leves as imposições e obrigações. O problema é que as pessoas não admitem essa contradição. Cada um se sente honesto e rigoroso. Acha que seus ilícitos não são graves. O politicamente correto deve regular a vida dos outros, não a minha. De um médico, exigimos competência para uma cirurgia. De um político, honestidade. Como foi possível chegar a esse critério como padrão? Certamente pelo fato de que os políticos são vistos como incompetentes.
A procura pela felicidade enfraquece a exigência ética?
Falo disso nos meus livros “A Sociedade Pós-Moralista” e “Metamorfoses da Cultura Liberal”. Uma pesquisa da época mostrava que o ensino da moral em casa ocupava os últimos lugares possíveis. Quase nada de lições de solidariedade ou de altruísmo. Pouco até mesmo em relação à honestidade nas pequenas coisas. Na vida privada, a busca da felicidade passa por cima de tudo. O dever tornou-se um peso insuportável. Só o prazer conta. A ética é um discurso imponente para consumo externo.
Não há relação direta entre essa educação privada leve e o peso contraditório da exigência ética e moral na vida pública atual?
A relação é evidente. Ela nos remete ao niilismo abordado por Nietzsche e Heidegger na filosofia. Os ideais éticos possuem cada vez mais uma menor força de imposição. Eles existem. Mas já não agem sobre as pessoas. As normas vacilam. A perda de influência da religião tem um peso nisso. A crise dos valores ideológicos também. O modo de vida hedonista, por fim, conta muito. Tudo converge para a leveza de valores. Não digo que estamos num niilismo radical, mas temos uma ética indolor, de geometria variável, segundo os interesses e pessoas.
Qual a relação entre consumo e leveza? Desejo e decepção?
A leveza é uma estrutura, não apenas um sentimento. É o sistema da moda, da sedução, do consumo, do modo de vida, a necessidade de novidade permanente, o prazer, a lógica da publicidade, os gadgets, tudo. Saltamos da economia pesada da sociedade industrial, com o aço e as ferrovias, para a economia leve da nanotecnologia e dos objetos de consumo e de entretenimento. É o novo capitalismo do gozo e do prazer. Antes, a leveza era a arte e o imaginário. Agora, é tudo, das finanças à tecnologia. Uma estrutura concreta. Um modelo esmagador e total.
A leveza tem um peso?
O paradoxo é esse: a leveza pesa como uma obsessão. A leveza do corpo, ser magro, é um peso que provoca doença. O consumo tem um peso enorme. Não se pode ficar de fora. Cria dependência. A ansiedade é a doença da sociedade da leveza. Ser feliz pesa como uma dura obrigação. Passamos boa parte do tempo navegando na internet para ter os melhores preços de maneira a continuar consumindo. É um trabalho pesado. A alimentação se tornou um peso na busca pela leveza e pela qualidade. Não por acaso precisamos tanto de terapias para diminuir a pressão. Passamos da ideia de mudar a vida para o desejo de mudar a própria vida.
Fonte: Correio do Povo | Fronteiras do Pensamento
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