O Brasil semimoderno vem criando um conjunto de artifícios conceituais para escamotear a velhice e a condição de velho. Os velhos foram empurrados para baixo do tapete dos pseudoconceitos como o de “terceira idade”, “idoso” ou “inativo”. O Brasil tem vergonha de dizer que velho é velho porque como velho o trata e sabe que nisso há muita injustiça. Sobretudo porque muitíssimos dos que são definidos como velhos continuam trabalhando, produzindo e criando, até muito mais do que os definidos como jovens. Informação que não aparece nas estatísticas.
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Muitos dos classificados como velhos são brasileiros clandestinos, cujas funções por conveniência do Estado e dos que mandam não são reconhecidas pela lei nem valorizadas. Essa conveniência está presente nas “interpretações” sobre as carências da Previdência Social. Culpa dos aposentados.
A verdade é que ser velho é cada vez mais complicado num país como o nosso. Os que mandam em nosso destino econômico e em nossa velhice estão, compreensivelmente, preocupados com a modernização econômica, mas nada preocupados com a modernização social e menos ainda com a modernização política.
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Somos capazes de fazer projeções refinadas sobre o futuro dos que estão nascendo hoje, mas somos completamente incapazes de prever o futuro dos que estão sobrevivendo hoje. Os que usurparam a fala das vítimas do descarte social gerado pela modernização econômica e técnica, os que falam como intérpretes da cambiante questão social, há muito foram engolfados por uma visão ideológica das coisas e nenhuma visão política do que nos aflige.
As providências em andamento para postergar a idade de aposentadoria dos brasileiros são, na verdade, meios legais e truques conceituais para desenvelhecer os velhos e distanciá-los da idade de se aposentarem. Ao contrário do que se diz, e do que sugerem todas as artimanhas técnicas, trata-se de baratear a velhice. Se o preço da velhice fosse medido não por aquilo que a Previdência paga aos aposentados, oficialmente velhos, mas por aquilo que o velho pode comprar e consumir com o que recebe, descobriríamos que os velhos brasileiros são baratos e não caros.
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Como de cada três aposentados dois recebem apenas salário mínimo, fica difícil convencer quem quer que seja que os aposentados estão arruinando as finanças do Estado brasileiro. Na verdade, é o Estado e é a Previdência que estão arruinando a vida dos velhos e de muitos aposentados. Muitos se aposentam precocemente porque sabem que não conseguirão sobreviver com o que lhes pagará a Previdência. Assim, acabam arrumando outro emprego, geralmente sem direitos reconhecidos, para os danos do empobrecimento relativo e forçado. Barateiam a Previdência, barateiam o trabalho, aumentam o PIB e aumentam os lucros dos que de lucros vivem.
Curiosamente, nem o governo nem suas excelências os deputados e senadores que legislam sobre a vida alheia, até agora, abriram a boca para mencionar em que idade os brasileiros começam a trabalhar. E, portanto, quanto tempo trabalharam de fato antes de baterem à porta da imprevidente Previdência Social para dizer que estão cansados e que querem descansar. Ninguém diz que as estatísticas oficiais, em décadas passadas, quantificavam crianças de 7 anos de idade e até menos já no trabalho, na população economicamente ativa. Essa informação já não aparece nas estatísticas oficiais.
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Posso exemplificar com meu próprio caso, que é o caso de muitos brasileiros. Comecei a trabalhar com 11 anos de idade, quando ingressei na primeira fábrica, uma oficina clandestina num fundo de quintal. Aposentei-me com 65 anos de idade, depois de 54 anos de trabalho. Considerando que a economia brasileira me roubou sete anos da infância e da adolescência, que alguém ganhou dinheiro às minhas custas e muito dinheiro, enquanto recebi por mês apenas de 1/6 a 1/3 do salário mínimo do menor de idade. Se, por lei, a idade para começar a trabalhar é 18 anos, comecei sete anos antes. Ao me aposentar, meu tempo de trabalho e meu cansaço me diziam que tinha de fato 72 anos de idade.
Recorro ao neoliberalismo da sra. Thatcher, o mesmo que justifica o desenvelhecimento dos velhos, para que trabalhem mais por menos. Ela berrava: “Quero meu dinheiro de volta”. Eu berro: “Quero minha infância de volta”. O mesmo berro pode ser dado por todos os brasileiros que começaram a trabalhar antes do tempo e no trabalho perderam sua infância. Posso negociar, mas não me confisquem a velhice. Nos países civilizados, os velhos e aposentados, mesmo com a significativa redução dos ganhos em decorrência da aposentadoria, vivem bem. E aqui, o que os fazedores de regras para os outros oferecem às vítimas de suas decisões?
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* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).
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Fonte: Valor Econômico
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