Moonlight: Sob a luz do luar. Tudo o que o título brasileiro tem de redundante o filme de Barry Jenkins tem de enxuto, substantivo, medular. Uma sinopse enganosa diria que se trata do retrato em três tempos de um jovem gay negro da periferia de Miami. Não deixa de ser verdade, mas é uma descrição exterior, que salta afoitamente da aparência ao rótulo, esmagando o singular em favor do genérico. E Moonlight é o contrário disso: é a busca da singularidade de uma experiência, da dolorosa inserção de um corpo e de um espírito no mundo social.
O corpo e o espírito são de Chiron, que na infância é chamado de Little e na idade adulta, de Black – suas características imediatamente mais visíveis. A primeira imagem que temos dele é a de um menino (Alex R. Hibbert) em fuga, acossado por um grupo de garotos valentões. Acuado, ele se esconde numa casa abandonada, de onde será resgatado pelo chefão do tráfico local, Juan (Mahershala Ali), desde então uma espécie de tutor. A mãe de Little (Naomi Harris), logo saberemos, é uma viciada em crack que se prostitui para comprar a droga.
Fricção com o mundo
Mas o filme não se demora nessas circunstâncias sociais e familiares, como seria o caso num melodrama convencional. Seu foco está naquele corpo escuro e franzino, em sua relação difícil com o mundo à sua volta. Uma câmera em constante movimento transmite uma sensação de instabilidade e incerteza. Little caminha por um terreno movediço, e caminhamos com ele.
O sentimento de inadequação se acentua na adolescência, quando Chiron (Ashton Sanders), com seu corpo magrelo e desajeitado como tantos da sua idade, parece suportar nos ombros e nos olhos desconfiados toda a hostilidade do mundo. Ele próprio não compreende seu corpo, capaz de inesperados ímpetos de amor (a cena noturna na praia) e de ira (a explosão na sala de aula). Afinal de contas, quem ou o que sou eu?, ele parece perguntar.
Em travellings hipnóticos, Jenkins filma a aproximação de Chiron aos ambientes sociais (a sala de aula, o pátio da escola, os terrenos baldios onde se praticam jogos cruéis) como quem filma a entrada de um soldado num campo de batalha ou a ida de um animal ao matadouro. O perigo vem de todos os lados, e por momentos somos aquele corpo vulnerável que trafega entre eles.
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Corpo e alma
Na terceira parte, na idade adulta, o corpo está definido, a identidade parece consolidada. Visualmente, os planos se tornam mais estáveis, o campo/contracampo passa a prevalecer. Depois de cumprir um tempo na prisão, Chiron, agora conhecido como Black (Trevante Rhodes), reaparece com os músculos e tatuagens de um Mike Tyson. É, tudo indica, um chefão do tráfico, em tudo semelhante ao seu mentor Juan. Reencontra Kevin (André Holland), velho amigo de infância.
Nesse reencontro com o amigo e o passado, que não convém descrever aqui, o que salta à vista é o descompasso entre o corpo bruto e a alma frágil, e esse hiato é um abismo insondável.
Uma das proezas do diretor Barry Jenkins é a de encontrar em três atores de idades e aspectos inteiramente diferentes o mesmo olhar de perplexidade, dor e solidão. Esses olhos são o cerne de Moonlight. Depois de tudo, Chiron continua se perguntando quem ou o que é. A ausência de resposta é a beleza maior desse filme surpreendente, que não ignora os condicionamentos sociais, mas também não os vê como um determinismo fatalista e nivelador. Afinal, apesar de tudo, e às vezes contra tudo, “todo ser humano é um estranho ímpar”, como diz o verso de Drummond.
Faltou dizer que Moonlight concorre a oito Oscars: filme, direção, fotografia, roteiro adaptado, montagem, música, ator coadjuvante (Mahershala Ali) e atriz coadjuvante (Naomie Harris). Mas isso, a meu ver, é o que menos importa.
Irmãos Dardenne
Outro filme importante que está entrando em cartaz é o mais recente dos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, A garota desconhecida. Escrevi brevemente sobre ele quando foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado. De lá para cá, o que me ficou na memória foi a tentativa angustiada da protagonista, uma jovem médica branca, de compreender a vida e a morte de uma imigrante negra pobre que ela talvez pudesse ter salvado. Essa angústia um tanto culpada é talvez o que resta a um cinema de pretensão humanista num mundo cada vez mais inumano.
* José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: Blog IMS