terça-feira, dezembro 17, 2024

Violonista André Siqueira lança álbum ‘Aura’

Composição e improvisação emergem como conceito no álbum “Aura”, novo trabalho do violonista e compositor André Siqueira, lançamento da Borandá Música.
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Trazendo músicas compostas recentemente como a “valsa aquariana” e “valsa lunar” misturadas a composições mais antigas como “frevo” e “amendoim na chuva”, o álbum traz novidades em relação a diferentes técnicas de composição e execução como as polimetrias e polirritmias que ao violão são desafiadoras e trazem muito interesse e novidade.
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Dentro do repertório, três peças vencedoras de concursos de composição para violão: “Canto da praia” (concurso Novas 4/2019), “Atento ao tempo” (primeiro lugar no concurso de composição do festival de violão de Teresina/2023) e “Valsa aquariana” segundo lugar no mesmo concurso em 2024)
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É um álbum de violão solo que dribla a sisudez que costuma acompanhar esse tipo de trabalho por trazer diferentes gêneros brasileiros como frevo, chamamé, valsas, samba, moçambique. Um trabalho tocado com muita técnica e sentimento buscando a beleza da música sempre em primeiro lugar.

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André Siqueira – “Aura, uma aventura pelo infinito” por Ranulfo Pedreiro

*AURA, UMA AVENTURA PELO INFINITO*
– por Ranulfo Pedreiro –
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Antes de conhecer o André Siqueira amigo, conheci o André Siqueira músico. Um levou ao outro, uma vez que sua obra estava completamente mergulhada na própria personalidade. Não como um artista egocêntrico, mas como alguém que sabia exatamente o que não queria fazer. Esse filtro foi se afunilando com os anos, e podemos dizer que a obra de André Siqueira (seja musical ou acadêmica) retrata essa coerência preconizada pela prática, antes mesmo de alçar voos mais filosóficos e existenciais.
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Os lastros da música de André foram sedimentando-se na cultura popular e na música considerada erudita, mas de indisfarçável origem plebeia. A inspiração pode ser caipira, oriental ou europeia. André está em busca de verdades e há muito tempo descobriu os terrenos férteis para encontrá-las.

A música popular – não confundir com popularesco – ensinou o músico a conectar-se com o ouvinte. Este segredo, labutado em anos de experiência pelos bares, palcos e rodas, foi incorporado ao processo de composição.
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O improviso caracterizou-se como desafio imediato e rico de aprendizados. Lançar-se à possibilidade do erro abriu muitos caminhos. Mas a inquietação do instrumentista/compositor logo percebeu que os dedos refugiavam-se em abrigos que poderiam facilitar a repetição.
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André passou a estudar o movimento para evitar seu automatismo, quando os caminhos mais fáceis e sedutores aparecem. Ao mesmo tempo, buscou recursos como o uso do quinto dedo da mão direita ou os harmônicos cada vez mais surpreendentes. Percebam que toda essa trajetória, mais do que um instrumentista em formação, revelam a formação de um compositor.

Ou seja, o instrumentista André Siqueira aprimorou-se porque o compositor André Siqueira requer cada vez mais possibilidades. Claro que interpretar o repertório alheio é um convite sedutor e um aprendizado constante, desde que o processo esteja conectado a esta imensa construção do compositor. Quem ouve André tocando obras de outros autores, percebe, de cara, a apropriação. O intérprete caratecteriza-se como compositor.
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Repleto de referências sólidas, André Siqueira consegue aventurar-se além da superfície. Há embasamento prático para que a imaginação voe naturalmente para as fronteiras contemporâneas, permitindo descobertas e conferindo sentido às ousadias. Daí a desconfiança com os “ismos”. Os clichês também se disfarçam de novidade e ousadia, e os terrenos minados acabam por restringir ou padronizar a criação em nome de uma suspeita liberdade.
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Ancoradas em porto seguro desde o tempo das retretas em praça pública, as bases foram ampliadas a ponto de identificar armadilhas e possibilidades, avançando pelas fronteiras contemporâneas em busca de descobertas favoráveis ao ímpeto da criação. É quando o sertanejo, o caipira, o interiorano e aquela vida que ainda permite a troca de olhares mostra sua riqueza.

É como uma bússola calibrada para não permitir nota supérflua. A música do interior é participativa, compartilhada, feita pelas multidões das folias de reis em que todos, à sua própria maneira, são protagonistas. Desta forma, também, não sobra espaço para notas supérfluas, nem penduricalhos ou exibicionismos. Algo parecido se percebe na música pop e no rock mais inventivos, até desembocar no jazz, quando o solista, mesmo com todo o brilho, não prescinde do coletivo. Ou mesmo no choro, onde o solista pode ser simplesmente traído pelo próprio ego ao esquecer-se dos companheiros.
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Toda essa escola ensinou a tocar para e com os outros. O diálogo foi se estabelecendo com o músico ao lado, mas também com o público ouvinte. A experiência em rodas, bares, palcos, concertos e jam sessions despertou para a liberdade artística.
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As composições, por si só, apresentam-se como desafio a ser superado. E só se tornam um desafio porque a linguagem vem se alargando, aprofundando e ganhando complexidade por intermédio do estudo, da prática e da imaginação. O desenvolvimento técnico, que se aproxima do preparo atlético – tanto mental quanto físico -, proporciona uma liberdade autoral amparada pelas possibilidades de expressão e embasada pelo conhecimento. É um caminho longo e tortuoso, que contrasta com a fragilidade do conveniente, do fácil.

Outro ponto a ser notado é a difícil gangorra entre o nível técnico e a espontaneidade. A música de André quer ser ouvida, por mais que o nível autoral evolua a ponto de aceitar complexidades rítmicas e harmônicas pouco difundidas na música ocidental.
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Ou seja, o complicado ganha as feições do simples, sem disfarçar que os caminhos são árduos. Nesse ponto, a música de André recebe a chancela atribuída aos eruditos, termo controverso porque muito do que se considera erudito, deve-se ao camponês e ao plebeu, de indisfarçável origem popular. Mais uma vez os termos restringem a complexidade natural das referências. Afinal, elas, as referências, nem sempre são nítidas. Muitas vezes surgem dos confins da alma, da abstração suscitada por lembranças longínquas. Mais uma vez, Aura revela-se um título definitivo.
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Talvez a relação entre popular e erudito sequer faça sentido para o autor, uma vez que sua obra entrega-se aos ouvidos. A complexidade da construção do universo musical traz as digitais de um apuro constante, a ponto de os fundamentos nem sempre se deixarem identificar. Essa internalização confere liberdade criativa, uma vez que a essência é preservada. Amplos, os caminhos trilhados desprezam cada vez mais os dogmas e os clichês.

Lembro-me de uma fase em que o autor labutava para desvencilhar-se dos hábitos. É uma batalha que talvez permaneça constante, embora mais internalizada por conta dos recursos em expansão. Ou seja, já permite um relaxamento, uma vez que a própria estrutura das composições não abrem muitas brechas para o comodismo.
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Tudo isso faz com que a releitura de uma obra ainda adolescente, porém não menos importante, como Amendoim na Chuva, revele-se melhor. A regravação, enriquecida, mostra, além da relação afetiva, que a obra não pertence ao passado. Reconhecer-se e identificar as próprias transformações é um exercício que nem todo compositor se dispõe. Mas, no caso de André, a regravação, além de coerente com a própria história, ganha o respiro adequado das conquistas do presente, sem perder a leveza.
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Cabe destacar que todo o processo não é apenas musical, mas inseparável da trajetória de vida. Daí também a evolução metafísica, digamos, do autor que procura enxergar além e encontra significado nas esferas que fogem às formas corriqueiras com as quais obedecemos aos sentidos. Música é vida. E vida é transcendência. Há muito mais do que se vê, ouve, cheira, sente ou saboreia-se. A teoria dos cinco sentidos restringe – e há ciência interessada nisso tudo – a nossa compreensão de mundo. Por isso, também, a música revela-se elemento de cura.

Citei Amendoim na Chuva, mas também podemos falar de Valsa Lunar, título auto-explicativo para uma obra de beleza intimista e mística, capaz de enlevar a imaginação como nosso satélite faz há tanto tempo. A harmonia sustenta e sugere as notas curtas da melodia, embalando o voo imaginário pelo céu. Pois o céu não é nada mais do que transcendência, mostra-se pouco e esconde muito, alimenta a alma humana com as dúvidas existenciais para seguirmos adiante, pois, caso fossem respondidas, a vida se esvaziaria de sentido.
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Talvez todas essas observações confundam mais do que esclareçam sobre a obra de André Siqueira. Mas, da mesma forma que há terra debaixo das unhas de todo ser humano, o mistério da arte permanecerá sempre em um degrau acima das palavras. Lá onde as estrelas se escondem, o passado vira futuro e os sentidos se fundem em um brilho ainda pouco compreendido, mas comum a todos nós. Aura está além do que se ouve e se vê.

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Capa do disco ‘Aura’ • André Siqueira • Selo Borandá Música / Distribuição Tratore • 2024

DISCO ‘AURA’ • André Siqueira • Selo Borandá Música / Distribuição Tratore • 2024
Músicas / compositor
1. Atento ao tempo (André Siqueira)
2. Frevo (André Siqueira)
3. Vozear (André Siqueira)
4. Canto da praia (André Siqueira)
5. Flor de lótus (André Siqueira)
6. Serena (André Siqueira)
7. Valsa lunar (André Siqueira)
8. Inhambu (André Siqueira)
9. Valsa aquariana (André Siqueira)
10. Serra abaixo (André Siqueira)
11. Amaranto (André Siqueira)
12. Amendoim na chuva (André Siqueira)
– ficha técnica –
André Siqueira (violão e violão barítono) | Produção artística: Daniele Bronzatti | Capa: Cinthia Camargo | Produção: Borandá Produções | Mixagem e masterização: Thiago Monteiro | Gravado no estúdio da FATEC-Tatuí no dia 27/11/2023 | Equipe de gravação Produção executiva: Raquel Teles | Assistente técnica: Anna Clara de Carvalho | Engenheira de gravação: Karen Barlati | Direção de gravação: Rafael Vieira | Videomakers: Sarah Rodrigues e Antônio Salles | Edição de vídeo: Gustavo Gonçalves | Coordenador do estúdio Fatec Tatuí: José Carlos Pires | Texto: Ranulfo Pedreiro | Violões: André Siqueira usa Violão @fredericoherrmann | Selo: Borandá Música | Distribuição digital: Tratore | Formato: CD digital / físico | Ano: 2024 | Lançamento: 20 de dezembro | Ouça o álbum: clique aqui.

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André Siqueira – foto: Íris Zanetti

FAIXA A FAIXA por ANDRÉ SIQUEIRA
Atento ao tempo é uma peça derivado do movimento pendular da mão esquerda, o próprio gesto traz em si a quantidade de energia para sustentar a melodia realizada com campanellas com o objetivo de gerar ressonância e fazer com que a própria melodia se sustente a partir da interação de seus harmônicos.
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Frevo é uma peça da década de 1990, na qual a ideia rítmica da cultura popular já se faz presente. Com arpejos rápidos, representa um desafio técnico no qual o jogo da melodia precisa estar precisamente encaixado ao ritmo.
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Vozear originalmente composta como canção, esta versão instrumental procura realçar movimentos harmônicos pouco usuais e uma melodia que busca o equilíbrio entre saltos angulosos e linhas contíguas.

Canto da praia composta no dia 31/12/2017 em Itapema – SC esta música traz o sabor do chamamé, ritmo fronteiriço que percorre todo o sul da América Latina e que traz outro elemento presente em vários momentos deste álbum, a polimetria. Aqui uma sobreposição de métrica ternária e quaternária em uma gravação que se diferencia da gravação anterior – realizada para o prêmio Novas 4 – devido ao interlúdio improvisado que se mantém dentro das fronteiras da forma e do ritmo.
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Flor de lótus gravada com o violão barítono (afinado uma quarta abaixo do violão normal) esta peça foi composta em 2020 e traz, além das ressonâncias presentes em todo álbum, movimentos de contraponto e detalhes melódicos que são derivados de arpejos de encadeamentos harmônicos que dialogam com um certo impressionismo.

Serena uma valsa rápida com um movimento melódico amplo que traz duas partes em diferentes tonalidades, a segunda peça mais antiga do álbum, composta em 1995. Ainda com resquícios de cadências tonais simples, mas com uma melodia cativante.
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Valsa lunar outra valsa, esta bem recente, composta em 2023, baseada em três planos bem distintos que se movimentam a partir de acordes nos quais o desafio está em separar radicalmente a melodia de rítmico quase estático do plano intermediário que gera o discurso harmônico. Um fato interessante sobre esta valsa é que, na minha percepção, os acordes isolados nos dizem muito pouco. Assim, o que sustenta esta peça é o fluxo entre estes acordes e o motor rítmico gerado pelos intervalos de segundas que ficam quase escondidos no meio destes acordes.
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Inhambu esta peça surge instrumental mas recebe letra de Brisa Marques, tendo sido gravada pela cantora Silvia Borba com participação de Mônica Salmaso, portanto, esta gravação acabou se impregnando de uma certa vocalidade. De caráter impressionista a melodia conduz por caminhos que remetem a singeleza do campo com suas cores cheiros e sons.

Valsa aquariana dedicada ao amigo e mestre acordeonista Toninho Ferragutti, traz no título uma brincadeira com o que costumam dizer de nosso signo (eu também sou aquariano, do dia de iemanjá), a de que mudamos de opinião a todo tempo. Pois bem, desta brincadeira, para além da dificuldade técnica na execução, com arpejos rápidos, campanellas e ressonâncias, na terceira parte temos a tentativa de gerar uma textura complexa ao violão apresentando três diferentes planos métricos, 5 tempos nas cordas agudas, 3 tempos nas cordas do meio e 4 tempos nos baixos. Se para um percussionista isto já seria um desafio, para um violonista é o trabalho de uma vida!
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Serra abaixo esta música talvez seja uma síntese de minha busca na criação de uma identidade e assinatura ao instrumento. Desde criança fui muito impactado pelas manifestações de cultura popular rural. Tocando há mais de vinte anos com violeiros tive a oportunidade de visitar e assistir de perto muitas destas manifestações. Neste Serra abaixo (sim, o nome da música é exatamente o nome de um tipo de Moçambique – parte do Congado mineiro), a melodia se desprende enquanto o ostinato, tão presente em toda a cultura popular, sustenta a textura. A ideia da polimetria também salta aos ouvidos através da interação da melodia, dos baixos e de um pequeno paiá amarrado aos pés. Mais uma tentativa de ampliar os limites do instrumento através do uso de todo o corpo como fazedor de música.

Amaranto com nome de planta esta música surgiu em um local muito gostoso que temos aqui em Londrina e que serve como refúgio sempre que o mundo mostra os dentes. Com formato de canção, também surge quase concomitantemente à letra. Porém aqui trago a versão instrumental, melodia simples que se inspira em um belo descanso numa rede, debaixo das árvores.
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Amendoim na chuva esta é uma das minhas primeiras composições, criada quando tinha 15 anos e ficava horas com o violão na mão na casa de meus pais na pequena Paraguaçu Paulista. Outro tempo, um tempo estendido, no entanto esta talvez seja a música mais “alegre” do álbum, inocência que trouxe aqui para que se fechasse um ciclo, da infância e adolescência musical até hoje com a possibilidade e o presente que me foi dado pela vida, de ter consciência de cada nota tocada. Espero que o ouvinte aprecie este trabalho, que é uma parte importante de minha alma.

>> Siga: @andrersiqueira @boranda.musica

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Série: Discografia da Música Brasileira / Música instrumental / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske


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