Uma caixa, dentro de uma caixa, outra caixa, outra caixa, outra caixa, outra caixa. Crianças em geral se encantam por presentes grandes em que a aparência é de muito volume. Caminho na direção das miudezas, pequenos perfumes como a delicada voz de Ana de Hollanda. A cantora com sua voz afinada de timbre muito belo traz suavidade. Seu canto desenha voos ascensionais de intensa beleza que me permite associar a um pássaro.
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Ana de Hollanda é a passarinha de altos voos poéticos como demonstra o conjunto de sua obra que traz os cds “Um filme”, “Só na canção”, “Tão simples” e “Vivemos. Ana é uma cantora de voz inteligente cuja sabedoria do canto extrai poesia como néctar. Passear pela obra desta artista implica adentrar no reino de um lirismo tocante. A cantora possui pleno entendimento do mundo das palavras e presenteia o ouvinte com sua sabedoria interpretativa cuja compreensão das filigranas do verso transforma canções em verdadeiras obras de arte.
Ana trabalhou como diretora do museu da imagem e do som, exerceu o cargo de ministra da cultura e atuou em peças de teatro. Trata-se de uma mulher que traz a cultura como lema de vida. Conheci sua obra a partir do magistral “Só na canção”, que me foi dado pela própria cantora durante uma tarde muito agradável de entrevista em sua casa: “Beija – flor Colibri” é uma espécie de alegoria do universo o qual a cantora flutua como uma passarinha: “Beija- Flor beija -flor pode chegar/ bata as asas flutue-se no ar/ careço de cores sabores de mel/ também não perfumo/ quem zanza no céu/ beija flor colibri venha dizer/ como pode sugar um bem querer/ e faz com carícias pra não o ferir/ trazendo notícias de longe daqui”. Ana ao longo de sua carreira foi maturando o processo de composição de versos, ela costuma dizer que não é poeta, pois versos sobre o papel sem o acompanhamento da música não são sua matéria prima. Ana é autora de letras que nascem a partir de uma melodia de algum parceiro ou de si própria. Ana é essencialmente letrista de versos que falam de temas variados.
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Seu recente disco produzido pelo pianista, compositor e arranjador Cristovão Bastos é uma ode a beleza. Ana de Hollanda colocou versos em todas as faixas e assina a autoria . Passei alguns meses ouvindo incessantemente o álbum “Vivemos,” que saiu pelo selo Biscoito Fino. A maestria do pianista Cristovão Bastos cria arranjos que valorizam cada verso e o colorido do timbre de Ana. A canção que dá título a obra é “Vivemos”, parceria com a compositora e cantora Lucina: Viver um amor tão gostoso/preguiçoso, egoísta /sem barreira, só a dois/ Viver/ e não saber o que virá/ se o momento é agora/ e não haverá depois. O amor é um tema constante que se distribui por situações de esperas, perdas, desilusões, brincadeiras. Amor que se faz pleno em seu carpe diem em “Vivemos”, cujo casal vive a serenidade e simplicidade da partilha da companhia. Valorizar a existência do agora como único e verdadeiro instante.
“Berço vazio” é uma belíssima composição. O pianista Leandro Braga deu para Ana uma melodia a qual a compositora captou instintivamente o tema. Trata-se do quarto vazio de um filho que partiu precocemente. Ana nunca viveu tal situação, mas teve sensibilidade e entrega profunda na construção dos versos que se casam em simbiose de acoplamento com a canção. “Vento que sopra e rasga/ o peito vazio, braços vazios,/ desgarrados, então./ fica a chorar e fica a chamar,/ menino alegria distante”. O piano de Cristovão Bastos preenche toda a paisagem sonora, o arranjo criado para cada música demostra o trabalho apurado do maestro. “Berço vazio” traz a ambiência melancólica de uma mãe que vive sua orfandade .
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“Primeira dama” é mais uma melodia do pianista Leandro Braga. Consiste numa música dedicada a dona Ivone Lara em que a letra de Ana mostra sua reverência a grandiosa cantora e compositora: “Quem no samba nasceu soube logo da vida,/e no samba aprendeu a se harmonizar/batucando no couro, marcando o compasso,/para que as pastoras espalhem o seu cantar”. Desponta acima de tudo um amor pelo próprio ofício de cantar e lapidar os versos como uma ourives. Ao falar de Dona Ivone Lara floresce um exercício de metalinguagem daquela que frui e sorve cada néctar de verso: “Eu contigo toquei a leveza do acorde/ e de ti copiei pura inspiração/ sendo filho de leite, suguei tua fonte”. A consciência sobre a importância da tradição pode ser vista na escolha que Ana sempre faz de clássicos do cancioneiro nacional. Dona Ivone Lara representa a força do legado do samba, vertente trabalhada a fundo por Cristina Buarque de Hollanda, irmã de Ana.
“Era tão claro” é uma composição de caráter impressionista em que Ana de Hollanda superpõe impressões sinestésicas. O fluir do tempo que em “Vivemos” traduz uma contemplação do agora, em “Era tão claro” elucida versos que trazem a tensão do tempo. O fluir das horas e a espera que evolui num jogo cromático: Branca luz assopra tudo hostil/para ofuscar alguma cor/ que nesta noite, em vão, busquei/se era tão lindo o que eu queria te viver / se era tão claro o meu querer.
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Vivemos é uma aquarela de lirismos.
– Daniela Aragão**
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:: ‘Vivemos’, álbum de Ana de Hollanda, lançado pela Biscoito Fino
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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Foto (capa): Ana de Hollanda – foto: Leo Aversa
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