Le monocle de mon oncle
I
“Mater dos céus, regina-mãe das nuvens,
Cetro do sol, ó solidéu da lua,
Não há nada, não, não, nada jamais
Como o choque de dois verbos mortais.”
Era dela que eu ria triunfante-
Mente ou era de mim mesmo que eu ria?
Antes eu fosse uma pedra pensante.
Espumas do pensar trazem à tona a
Radiante bolha que ela foi. E então,
O jato de uma fonte mais salgada
Explode em mim a sílaba de água.
II
A ave vermelha voa em chão de ouro.
Vôo vermelho em busca do seu coro
Entre os coros de ar e água e asa.
Um jorro sai de si quando ele o achar.
Devo desenredar este enredado?
Um grão-senhor saúda os seus herdeiros:
Meu modo de saudar a primavera.
Coros de boas-vindas que me adeusam.
Primavera não há pós-meio-dia.
Mas vais com anedótica alegria
Fingindo connaissance constelar.
III
Foi para nada então que os velhos chins
Miravam-se nos lagos das montanhas
Ou no Iangtsé frisavam suas barbas?
Não quero a escala linear da história.
Sabemos como as damas de Utamaro
Punham fim ao amor nas tranças tristes.
Vide as coiffures monumentais de Bath.
Terão vivido em vão tantos barbeiros
Sem legar um só cacho à Natureza?
Como, sem pena de tão doutas almas,
Acordas com cabelos encharcados?
IV
O impecável, solar fruto da vida
Cai por seu próprio peso sobre a terra.
Quando eras Eva a seiva era suave,
E ele, intacto, em celeste ar de pomar.
A maçã serve tanto quanto um crânio
Para ser livro onde se ler um círculo
Vicioso, por ser feita do que volve
Ao solo, como um crânio, apodrecendo.
Mas o supera por ser, como fruto
Do amor, louca demais para ser lida
Enquanto não se lê por passatempo.
V
Quando no oeste uma furiosa estrela.
É por jovens fogosos que ela estua
E virgens oleolentes a seu lado.
A medida da vibração do amor
Mede, também, a verve que há na terra.
O elétrico pulsar de um pirilampo
Traça com tédio o tempo: mais um ano.
E você? Lembra como os grilos vieram
Da relva-mater, mínimos parentes?
Nas noites nuas, teus primeiros ícones
Liam signos afins em cada pó.
VI
Se os homens pintam lagos aos quarenta,
O que é fugaz no azul deve fundir-se
Num básico matiz, a tinta universal.
Há uma substância em nós que prevalece.
Mas em nossos amores vêem os amoristas
Tanta flutuação que a escrita perde
O fôlego a seguir-lhe as fiorituras.
Quando a calvície ataca os amoristas
Os amores refluem ao currículo
Do exilio introspectivo, circulando.
Um tema para o Hiácintos somente.
VII
As mulas e seus anjos descem lentas
Dos vales reluzentes de além-sol.
Declínios de seus sinos soam longe.
Tais almocreves delicados passam
Enquanto centuriões riem e batem
Copas rinchantes sobre os tabuleiros.
A parábola, em suma, quer dizer:
O mel do céu pode vir ou não vir,
Mas o da terra vem e vai, de pronto.
Suponha que os arcanjos transportassem
Uma donzela eternamente em flor.
VIII
Tedioso scholar, vislumbrei no amor
Módulo antigo de uma nova mente.
Ele vem, flore, gera o fruto e morre.
(Um tropo trivial, porém veraz).
A flor se foi. Somos o fruto agora.
Duas cabaças de ouro em nossas vinhas,
Sob o clima outonal, rugas de neve.
Grotescos de gordura, distorcidos,
Pendemos como abóboras vincadas.
O céu que ri verá a nós ambos, crostas
Rotas sob as borrascas invernais.
IX
Em versos movediços, versos-ruído
Ampliados por gritos, choques, nitidos
Como sonhos mortais de homens que cumprem
Seu destino na guerra, ah! vem, celebra a
Fé dos quarenta, guarda de Cupido!
Dom Coração, a idéia mais lasciva
Fora menos lasciva aos teus anseios.
Texto sons, pensamentos, testo tudo
Para que o som e o tom de um paladino
Justifique a oblação. Onde encontrar
Bravura digna de tão grande hino?
X
Os fãs da fantasia têm nos versos
Memorabília dos seus jorros místicos,
Espontâneo regar das almas áridas.
Sou um escriba diante desses dândis.
Não sei de árvores mágicas, balsâmicas,
Ou frutos rosa-prata, ouro-vermelhos.
Mas há, enfim, uma árvore que evoca
Um pouco da visão que tenho em mente;
Ei-la, monumental, com certa copa
À qual todas as aves vêm um dia.
Quando se vão a copa é a mesma copa.
XI
Se o sexo fosse tudo, qualquer mão
Nos faria gemer robôs-palavras.
Mas é a impérvia traição do acaso
Que nos faz rir, chorar, gemer, grunhir
Doridos versos, percutindo gestos
De deleite ou delírio, independente
Daquela lei primeva Hora-ansiedade!
Ontem à noite, a arfar em lago róseo,
Tosquiados de lís, sob belos cromos,
Já quase estrelas, nós. E eis que um batráquio.
Vomita vis acordes do seu ventre.
XII
Um pombo azul circunda o céu azul,
A asa inclinada, em ronda, à roda, à roda.
Um pombo branco vem até o solo,
Já sem vôo. O rabi negro que eu fui,
Em moço, perquiria a essência do homem.
Dia após dia achei que o homem era
Um naco do meu mundo de pedaços.
Róseo rabi, mais tarde, persegui
E ainda persigo a origem e o curso
Do amor, mas até hoje não sabia
Que as coisas móveis têm sombra tão certa.
1918
.
Le monocle de mon oncle
I
“Mother of heaven, regina of the clouds,
O sceptre of the sun, crown of the moon,
There is not nothing, no, no, never nothing,
Like the clashed edges of two words that kill.”
And so I mocked her in magnificent measure.
Or was it that I mocked myself alone?
I wish that I might be a thinking stone.
The sea of spuming thought foists up again
The radiant bubble that she was. And then
A deep up-pouring from some saltier well
Within me, bursts its watery syllable.
II
A red bird flies across the golden floor.
It is a red bird that seeks out his choir
Among the choirs of wind and wet and wing.
A torrent will fall from him when he finds.
Shall I uncrumple this much-crumpled thing?
I am a man of fortune greeting heirs;
For it has come that thus I greet the Spring.
These choirs of welcome choir for me farewell.
No Spring can follow past meridian.
Yet you persist with anecdotal bliss
To make believe a starry connaissance.
III
Is it for nothing, then, that old Chinese
Sat titivating by their mountain pools
Or in the Yangtse studied out their beards?
I shall not play the flat historic scale.
You know how Utamaro’s beauties sought
The end of love in their all-speaking braids.
You know the mountainous coiffures of Bath.
Alas! Have all the barbers lived in vain
That not one curl in nature has survived?
Why, without pity on these studious ghosts,
Do you come dripping in your hair from sleep?
IV
This luscious and impeccable fruit of life
Falls, it appears, of its own weight to earth.
When you were Eve, its acrid juice was sweet,
Untasted, in its heavenly, orchard air –
An apple serves as well as any skull
To be the book in which to read a round,
And is as excellent, in that it is composed
Of what, like skulls, comes rotting back to ground.
But it excels in this, that as the fruit
Of love, it is a book too mad to read
Before one merely reads to pass the time.
V
In the high west there burns a furious star.
It is for fiery boys that star was set
And for sweet-smelling virgins close to them.
The measure of the intensity of love
Is measure, also, of the verve of earth.
For me, the firefly’s quick, electric stroke
Ticks tediously the time of one more year.
And you? Remember how the crickets came
Out of their mother grass, like little kin…
In the pale nights, when your first imagery
Found inklings of your bond to all that dust.
VI
If men at forty will be painting lakes
The ephemeral blues must merge for them in one,
The basic slate, the universal hue.
There is a substance in us that prevails.
But in our amours amorists discern
Such fluctuations that their scrivening
Is breathless to attend each quirky turn.
When amorists grow bald, then amours shrink
Into the compass and curriculum
Of introspective exiles, lecturing.
It is a theme for Hyacinth alone.
VII
The mules that angels ride come slowly down
The blazing passes, from beyond the sun.
Descensions of their tinkling bells arrive.
These muleteers are dainty of their way.
Meantime, centurions guffaw and beat
Their shrilling tankards on the table-boards.
This parable, in sense, amounts to this:
The honey of heaven may or may not come,
But that of earth both comes and goes at once.
Suppose these couries brought amid their train
A damsel heightened by eternal bloom.
VIII
Like a dull scholar, I behold, in love,
An ancient aspect touching a new mind.
It comes, it blooms, it bears its fruit and dies.
This trivial trope reveals a way of truth.
Our bloom is gone. We are the fruit thereof.
Two golden gourds distended on our vines,
Into the Autumn weather, splashed with frost,
Distorted by hale fatness, turned grotesque.
We hang like warty squashes, streaked and rayed,
The laughing sky will see the two of us
Washed into rinds by rotting winter rains.
IX
In verses wild with motion, full of din,
Loudened by cries, by clashes, quick and sure
As the deadly thought of men accomplishing
Their curious fates in war, come, celebrate
The faith of forty, ward of Cupido.
Most venerable heart, the lustiest conceit
Is not too lusty for your broadening.
I quiz all sounds, all thoughts, all everything
For the music and manner of the paladins
To make oblation fit. Where shall I find
Bravura adequate to this great hymn?
X
The fops of fancy in their poems leave
Memorabilia of the mystic spouts,
Spontaneously watering their gritty soils.
I am a yeoman, as such fellows go.
I know no magic trees, no balmy boughs,
No silver-ruddy, gold-vermilion fruits.
But, after all, I know a tree that bears
A semblance to the thing I have in mind.
It stands gigantic, with a certain tip
To which all birds come sometime in their time.
But when they go that tip still tips the tree.
XI
If sex were all, then every trembling hand
Could make us squeak, like dolls, the wished-for words.
But note the unconscionable treachery of fate,
That makes us weep, laugh; grunt and groan, and shout
Doleful heroics, pinching gestures forth
From madness or delight, without regard
To that first foremost law. Anguishing hour!
Last night, we sat beside a pool of pink,
Clippered with lilacs, scudding the bright chromes,
Keen to the point of starlight, while a frog
Boomed from his very belly, odious chords.
XII
A blue pigeon it is, that circles the blue sky,
On side-long wing, around and round and round.
A white pigeon it is, that flutters to the ground,
Grown tired of flight. Like a dark rabbi, I
Observed, when young, the nature of mankind,
In lordly study. Every day, I found
Man proved a gobbet in my mincing world.
Like a rose rabbi, later, I pursued,
And still pursue, the origin and course
Of love, but until now I never knew
That fluttering things have so distinct a shade.
1918
– Wallace Stevens, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
Tatuagem
A luz é como aranha.
Oscila sobre a água.
Oscila sobre os ângulos da neve.
Oscila sob tuas pálpebras
E estende aí as teias –
As duas teias.
As teias de teus olhos
Estão costuradas
À carne e aos ossos teus
Como à grama ou às vigas.
Há filamentos de teus olhos
À tona da água
E nos ângulos da neve.
.
Tattoo
The light is like a spider.
It crawls over the water.
It crawls over the edges of the snow.
It crawls under your eyelids
And spreads its webs there –
Its two webs.
The webs of your eyes
Are fastened
To the flesh and bones of you
As to rafters or grass.
There are filaments of your eyes
On the surface of the water
And in the edges of the snow.
– Wallace Stevens, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
Os vermes no Portão do Céu
Da tumba vem vindo Baldroubadour,
Nossos ventres são sua carruagem.
Primeiro um olho. Os cílios, um por um,
Desse olho e em seguida a alva pálpebra.
Depois a face em que a pálpebra caía,
E dedo atrás de dedo, após, a mão,
O gênio dessa face. Ei-los, os lábios,
Todo o peso do corpo e os pés então.
. . . . . . . . . . .
Da tumba vem vindo Baldroubadour.
.
The worms at Heaven’s Gate
Out of the tomb, we bring Badroulbadour,
Within our bellies, we her chariot.
Here is an eye. And here are, one by one,
The lashes of that eye and its white lid.
Here is the cheek on which that lid declined,
And, finger after finger, here, the hand,
The genius of that cheek. Here are the lips,
The bundle of the body and the feet.
. . . . . . . . . . .
Out of the tomb, we bring Badroulbadour.
– Wallace Stevens, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
Intradução: vocalissimus
Ao vento ululante
Que sílaba procuras
vocalissimus
nas lonjuras do sono
soletra-
a.
.
To the roaring wind
What syllable are you seeking,
Vocalissimus,
In the distances of sleep?
Speak it.
– Wallace Stevens, no livro “Poesia da recusa”. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
§
O rei do sorvete
Chame o enrolador de grandes charutos,
Aquele dobrado, e diga-lhe que bata
Os coalhos concupiscentes nas xícaras da cozinha.
Que as gurias zaranzem nos vestidos
Habituais, e os rapazes tragam flores
Em cartuchos de jornais do mês passados.
Que ser seja o final de parecer.
Só há um rei e esse é o rei do sorvete.
Tire da cômoda de pinho,
Que já perdeu três puxadores de vidro, aquele lençol
Que ela bordou um dia com caudas de pavão
E estenda-o de modo a cobrir-lhe o rosto.
Se um pé unhudo sair para fora, é
Para mostrar como ela está fria, como está muda.
Que a lâmpada afixe o seu filete.
Só há um rei e este é o rei do sorvete.
.
The emperor of ice-cream
Call the roller of big cigars,
The muscular one, and bid him whip
In kitchen cups concupiscent curds.
Let the wenches dawdle in such dress
As they are used to wear, and let the boys
Bring flowers in last month’s newspapers.
Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.
Take from the dresser of deal,
Lacking the three glass knobs, that sheet
On which she embroidered fantails once
And spread it so as to cover her face.
If her horny feet protrude, they come
To show how cold she is, and dumb.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.
– Wallace Stevens. [tradução de Décio Pignatari]. em “Poesia Pois É Poesia”, de Décio Pignatari. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora Unicamp, 2004.
§
Predomínio do negro
À noite, ao pé do fogo,
As cores dos arbustos
E das folhas no chão
Giravam no quarto
E se repetiam,
Como as próprias folhas
Girando no vento.
Sim: mas a cor intensa dos açafrões
Invadiu o quarto.
E então lembrei o grito dos pavões.
As cores de suas caudas
Eram como as próprias folhas
Girando no vento,
Girando no poente,
Voaram para dentro,
Ao serem varridas dos ramos dos açafrões
E jogadas no chão.
Ouvi-os gritar – os pavões.
Seria um grito contra o poente
Ou contra a cor das folhas
Girando com o vento
Girando como as chamas
Giravam no fogo,
Girando como as caudas dos pavões
Giravam no fogo estridente,
Estridente como os açafrões
Cheios de gritos de pavões?
Ou era um grito contra os açafrões?
Pela janela,
Vi os planetas se juntarem
Como as próprias folhas
Girando no vento.
Vi a noite chegar,
Invadindo o quarto, como a cor intensa dos açafrões.
E tive medo.
E então lembrei o grito dos pavões.
.
Domination of black
At night, by the fire,
The colors of the bushes
And of the fallen leaves,
Repeating themselves,
Turned in the room,
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
Yes: but the color of the heavy hemlocks
Came striding.
And I remembered the cry of the peacocks.
The colors of their tails
Were like the leaves themselves
Turning in the wind,
In the twilight wind.
They swept over the room,
Just as they flew from the boughs of the hemlocks
Down to the ground.
I heard them cry — the peacocks.
Was it a cry against the twilight
Or against the leaves themselves
Turning in the wind,
Turning as the flames
Turned in the fire,
Turning as the tails of the peacocks
Turned in the loud fire,
Loud as the hemlocks
Full of the cry of the peacocks?
Or was it a cry against the hemlocks?
Out of the window,
I saw how the planets gathered
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
I saw how the night came,
Came striding like the color of the heavy hemlocks
I felt afraid.
And I remembered the cry of the peacocks.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
O Céu concebido como Um Túmulo
Que me dizeis, intérpretes, dos que
No túmulo do céu andam à noite,
Fantasmas negros da comédia finda?
Creem, talvez, que vagarão pra sempre
No frio, no escuro, com lanternas altas
Libertos da morte, a buscar sem trégua
O que quer que busquem? Ou a lembrança
Do enterro, portão da espiritual
Chegada ao nada, é antevisão diária
Daquela noite única e abissal
Em que as hostes não mais caminharão,
Nem mais lanternas riscarão a treva?
Gritai essa pergunta aos céus, que a ouçam
Os sombrios comediantes, e a respondam
Do seu longínquo e gélido Élysée.
.
Of Heaven considered as a Tomb
What word have you, interpreters, of men
Who in the tomb of heaven walk by night,
The darkened ghosts of our old comedy?
Do they believe they range the gusty cold,
With lanterns borne aloft to light the way,
Freemen of death, about and still about
To find whatever it is they seek? Or does
That burial, pillared up each day as porte
And spiritous passage into nothingness,
Foretell each night the one abysmal night,
When the host shall no more wander, nor the light
Of the steadfast lanterns creep across the dark?
Make hue among the dark comedians,
Halloo them in the topmost distances
For answer from their icy Élysée.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
Canção
Há coisas esplêndidas acontecendo
No mundo,
Coelhinho.
Há uma donzela,
Mais doce que o som do salgueiro,
Mais suave que água rasa
Correndo sobre seixos.
No domingo,
Ela veste um casaco longo,
Com doze botões.
Conta isso à tua mãe.
.
Song
There are great things doing
In the world,
Little rabbit.
There is a damsel,
Sweeter than the sound of the willow,
Dearer than shallow water
Flowing over pebbles.
Of a Sunday,
She wears a long coat,
With twelve buttons on it.
Tell that to your mother.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
Parvoália
Essa flor estranha, o sol,
É o que você diz que é.
Se é assim que você quer.
O mundo é feio,
E ninguém é feliz.
Esse tufo de plumas de bugre,
Esse olho animal,
É o que você diz que é.
Esse selvagem de fogo,
Essa semente,
Se é assim que você quer.
O mundo é feio,
E ninguém é feliz.
.
Gubbinal
That strange flower, the sun,
Is just what you say.
Have it your way.
The world is ugly,
And the people are sad.
That tuft of jungle feathers,
That animal eye,
Is just what you say.
That savage of fire,
That seed,
Have it your way.
The world is ugly,
And the people are sad.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
Depressão antes da Primavera
O galo canta,
Mas rainha alguma se levanta.
Minha loura tem cabelos
Deslumbrantes,
Como o cuspo das vacas
Costurando o vento.
Uô! Uô!
Mas cocoricó
Não traz curru nenhum,
Nenhum curru-curru.
Mas rainha alguma vem
Com verde chinelinha.
.
Depression before Spring
The cock crows
But no queen rises.
The hair of my blonde
Is dazzling,
As the spittle of cows
Threading the wind.
Ho! Ho!
But ki-ki-ri-ki
Brings no rou-cou,
No rou-cou-cou.
But no queen comes
In slipper green.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
O Homem do Violão Azul
I
Homem curvado sobre violão,
Como se fosse foice. Dia verde.
Disseram: “É azul teu violão,
Não tocas as coisas tais como são”.
E o homem disse: As coisas tais como são
Se modificam sobre o violão”.
E eles disseram: “Toca uma canção
Que esteja além de nós, mas seja nós,
No violão azul, toca a canção
Das coisas justamente como são”.
II
Não sei fechar um mundo bem redondo,
Ainda que o remende como sei.
Canto heróis de grandes olhos, barbas
De bronze, mas homem jamais cantei.
Ainda que o remende como sei
E chegue quase ao homem que não cantei.
Mas se cantar só quase ao homem
Não chega às coisas tais como são,
Então que seja só o cantar azul
De um homem que toca violão.
.
The Man with the Blue Guitar
I
The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.
They said, “You have a blue guitar,
You do not play things as they are.”
The man replied, “Things as they are
Are changed upon the blue guitar.”
And they said to him, “But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,
A tune upon the blue guitar,
Of things exactly as they are.”
II
I cannot bring a world quite round,
Although I patch it as I can.
I sing a hero’s head, large eye
And bearded bronze, but not a man,
Although I patch him as I can
And reach through him almost to man.
If a serenade almost to man
Is to miss, by that, things as they are,
Say that it is the serenade
Of a man that plays a blue guitar.
– Wallace Stevens, Poemas, [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
§
Domingo de manhã
I
Complacências do roupão e café
Tardio e laranjas numa cadeira soalheira
E a verde liberdade de uma catatua
Sobre um tapete misturam-se para dissipar
A quietude sagrada de sacrifício antigo.
Ela sonha um pouco e sente a escura
Insinuação daquela velha catástrofe,
Enquanto uma calma escurece entre luzes de água.
As laranjas pungentes e asas verdes brilhantes
Parecem coisas em um cortejo dos mortos,
Serpenteando através de água imensa, sem som.
O dia está qual água imensa, sem som.
Acalmado para a passagem de seus pés sonhadores
Por cima dos mares, até à Palestina silenciosa,
Domínio do sangue e sepulcro.
II
Porque havia ela de entregar a sua riqueza aos mortos?
O que é a divindade se pode vir
Apenas em sombras silenciosas e em sonhos?
Não encontrará ela em confortos do sol,
Em fruta pungente e asas verdes brilhantes, ou então
Em qualquer bálsamo ou beleza da terra,
Coisas a serem acarinhadas como a ideia de céu?
A divindade tem de viver dentro dela:
Paixões da chuva, ou melancolias ao cair da neve;
Mágoas na solidão, ou exultações
Insubmissas quando o bosque floresce; emoções
Tempestuosas nas estradas molhadas em noites de outono;
Todos os prazeres e todas as dores, lembrando
O ramo do verão e o galho do inverno.
Estas são as medidas destinadas à sua alma.
.
Sunday morning
I
Complacencies of the peignoir, and late
Coffee and oranges in a sunny chair,
And the green freedom of a cockatoo
Upon a rug mingle to dissipate
The holy hush of ancient sacrifice.
She dreams a little, and she feels the dark
Encroachment of that old catastrophe,
As a calm darkens among water-lights.
The pungent oranges and bright, green wings
Seem things in some procession of the dead,
Winding across wide water, without sound.
The day is like wide water, without sound,
Stilled for the passing of her dreaming feet
Over the seas, to silent Palestine,
Dominion of the blood and sepulchre.
II
Why should she give her bounty to the dead?
What is divinity if it can come
Only in silent shadows and in dreams?
Shall she not find in comforts of the sun,
In pungent fruit and bright, green wings, or else
In any balm or beauty of the earth,
Things to be cherished like the thought of heaven?
Divinity must live within herself:
Passions of rain, or moods in falling snow;
Grievings in loneliness, or unsubdued
Elations when the forest blooms; gusty
Emotions on wet roads on autumn nights;
All pleasures and all pains, remembering
The bough of summer and the winter branch.
These are the measures destined for her soul.
– Wallace Stevens, no livro “Ficção Suprema. Wallace Stevens”. antologia bilíngue. [prefácio e tradução Luisa Maria Lucas Queiroz de Campos]. Coleção Gato maltês. Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 1991.
***
BREVE BIOGRAFIA DE WALLACE STEVENS
Wallace Stevens nasce a 2 de outubro de 1879, numa família de classe média alta do estado da Pensilvânia. Apesar de ter estudado Direito em Harvard e na New York Law School, foi como administrador de uma companhia de seguros, em Hartford, que trabalhou quase toda a sua vida. Embora tenha sido sempre respeitado no círculo modernista, autores como e.e. cummings, Marianne Moore e William Carlos Williams consideravam-no o burguês típico, rejeitando o seu estilo de vida.
Contam-se na sua obra, além dos livros de poesia, duas peças de teatro e uma coletânea de palestras, “The Necessary Angel”, um livro essencial na sua obra.
obteve o prêmio National Book Award, em 1954, com a publicação do livro Collected Poems. E prova da importância da obra poética de Wallace Stevens, se fosse necessária uma, seria a atribuição, em 1955, do Prémio Pulitzer para Poesia. Morreu em Hartford, Connecticut, em 1955.
Praticamente inédito no Brasil, Wallace Stevens é um dos maiores poetas norte-americanos do século XX, ao lado de Ezra Pound e T. S. Eliot, William Carlos Williams e Marianne Moore.
“Para nós, a terra é nua e plana.
Não há sombras. A poesia
Mais do que a música há de ocupar
O vazio de um céu sem hinos …”
Obra poética em português
:: Wallace Stevens, Poemas. [Seleção, tradução e introdução de Paulo Henriques Britto]. Edição bilíngue. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
:: Ficção Suprema. Wallace Stevens. antologia bilíngue. [prefácio e tradução Luisa Maria Lucas Queiroz de Campos]. Coleção Gato maltês. Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 1991.
Antologias (participação)
:: Poesia da recusa. [organização e tradução Augusto de Campos]. Coleção signos 42. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
Um cidadão de terno cinzento*
“Los poetas no tienem biografia. Su obra es su biografia.” Assim o poeta mexicano Octavio Paz abre seu conhecido ensaio sobre Fernando Pessoa. A afirmação é também perfeitamente aplicável ao americano Wallace Stevens. O crítico Gabriel Josipovici, autor de um livro intitulado ‘The Lesson of Modernism, que traz também um ensaio sobre Pessoa, deveria ter incluído Stevens naquela estirpe de “cidadãos de terno cinzento” responsáveis por alguns monumentos da literatura moderna. Homens como Konstantinos Kaváfis, Franz Kafka, T. S. Eliot, Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges. Tirante o fato de cada um dos cinco citados por Josipovici ter sua obra intimamente ligada à cidade onde viveu ou vive – Alexandria, Praga, Londres, Lisboa, Buenos Aires -, as outras características enumeradas pelo ensaísta são compartilhadas por Stevens:
Todos os cinco, homens de grande cortesia e grande reserva; homens solitários, com poucos amigos chegados, embora muitos conhecidos, sem famílias, embora com sua cota moderada de esposas, namoradas e amantes; homens, profundamente conscientes das tradições depositadas nas pedras das cidades por onde caminham, embora talvez apenas porque em seu ossos se sintam inteiramente distantes de qualquer tradição, e mesmo da própria história; homens cuja vida não contém nada de dramático ou extraordinário, e que claramente escolheram essa existência de forma consciente e deliberada… São os verdadeiros revolucionários de nossa época. Embora falassem discretamente, fizessem pouco ou nenhum esforço para publicar, fossem todos, à exceção de Eliot, desconhecidos do grande público até bem depois de terem escrito seus melhores trabalhos, foram eles que renovaram a linguagem e nos mostraram um caminho adiante.” ;Mas como ser o poeta de Hartford, Connecticut, cidade onde Stevens viveu a maior parte de sua vida adulta, trabalhando para uma companhia de seguros da qual se tornaria vice-presidente aos 55 anos? Ao contrário de outros poetas americanos de sua geração, que, ou se exilaram na Europa, como Eliot ou Pound, ou, como Williams, Frost ou Cummings, lá passaram ao menos algum período de suas vidas, Stevens jamais pôs os pés naquele continente. Sua biografia pode ser resumida em algumas poucas datas: 1879, nascimento em Reading, Pensilvânia; 1897 – 1900, estudos na Universidade de Harvard; 1903, diploma em advocacia pela New York Law School; 1909, casamento; 1923, nascimento da filha única Holly e publicação do primeiro livro, Harmonium. Na verdade, só com a publicação dos Collected Poems em 1954, contemplado com o National Book Award, é que a poesia de Stevens começa a ser conhecida fora dos círculos especializados, e ele se torna, para alguns (entre os quais o autor deste artiguinho), o maior poeta norte-americano da primeira metade do século. Ainda assim, há a história de um colega de Stevens, como ele um executivo de seguros que trabalha para a Hartford Accident and Indemnity Company. Os dois trocaram alguma correspondência e, depois de morto o poeta, um estudioso de literatura foi procurá-lo, sugerindo-lhe que as cartas eram valiosas. “As cartas de Wally, valiosas?”, retrucou incrédulo. O outro lhe disse que Stevens era um homem importante. “Wally, importante?”, espantou-se o executivo. E, quando o estudioso pacientemente externou sua opinião de que Stevens era um “senhor” poeta: “Wally! Poesia?” p;Poesia, pois é, poesia. Poesia do calcanhar à garganta, comandada por uma inteligência irônica às vezes, às vezes solene, mas sempre luminosa. Harmonium é um primeiro livro que boa parte dos poetas morre sem sequer igualar. Comparável, neste século, como primeiro livro de poesia, a bem poucos — um Ossi di Seppia, do italiano Eugenio Montale, entre eles. É verdade que Stevens o publicou aos 44 anos. E que mais ou menos a metade dos Collected Poems foi composta nos últimos treze anos de vida do poeta, de 1942 a 1955. Assim, a poesia de Stevens, como a de Kaváfis, é a poesia de um homem maduro, o que nem sempre quer dizer uma poesia acompanhada de uma reflexão amadurecida sobre o fazer poético, mas, nestes dois casos, quer. No entanto, aquilo para que a ausência de pressa em publicar aponta, nesses dois e em outros, é o drama do poeta moderno, para quem a poesia deixa de ser mero exercício retórico ou mera confissão para se transformar num problema a ser sempre reequacionado. Problema tão visceral que, como disse Paz, a biografia se apaga ou passa a ser a obra. O poeta moderno, ao contrário de um Camões, de um Cyrano de Bergerac ou de um Byron, é o anti-herói por excelência. De um modo que não acontecia com aqueles, quando a biografia ganha importância, a poesia acaba. Rimbaud é o exemplo típico. Harmonium é, pois, um primeiro-livro serôdio. E é bastante folhear os Collected Poems (que se abrem com aquele livro), do primeiro ao último poema, para se perceber esta obra como um todo harmônico. Não é à toa que Stevens, num primeiro momento, pensou em intitular o volume de 1954 The Whole of Harmonium. O que não significa que não haja evolução, conflitos, diferenças ou mesmo altos e baixos. O vocabulário precioso e a retórica luxuriante do primeiro livro, por exemplo, serão polidos nos posteriores, embora nunca venham a perder uma espécie de brilho peculiar (Stevens, aliás, é um perfeito artesão: do ritmo, do verso, da palavra). Há um movimento nos Collected Poems que alguém definiu como o que vai da poesia concreta, sensorial, meridiana de Harmonium, à poesia abstrata, meditativa, outonal de The Rock, seu último volume. Mas o que dá a essa obra uma unidade fundamental é o tema ou problema que ela obsessivamente persegue: o embate entre imaginação e realidade. É uma relação nuançada demais para ser aqui resumida, em que às vezes um, às vezes outro desses dois pólos leva a vantagem, até que, nos últimos poemas, uma espécie de conciliação parece ter sido atingida, como no belíssimo poema-síntese que é “Notes Toward a Supreme Fiction”. É isso que torna possível ler o conjunto dos poemas de Stevens como uma espécie de autobiografia espiritual, nos moldes do maior edifício poético do Romantismo, The Prelude, que o próprio Wordsworth classificou de “growth of a poet’s mind”. Esse tema, ou embate, insistente (o subtítulo de seu volume de ensaios, The Necessary Angel, é, sintomaticamente, Essays on Reality and the Imagination) fez com que Stevens fosse tachado de poeta-filósofo, e o poeta e ensaísta Randall Jarrell, num ensaio notável pela incompreensão da poesia do outro, disse que o hábito de filosofar em poesia lhe foi prejudicial. Bem mais perceptivo é o inglês A. Alvarez: “Stevens é um poeta filosófico apenas num estilo especificamente moderno: acredita na necessidade de coerência e talvez lhe -agradasse chegar a alguma espécie de finalidade, não fosse o fato de que mal acredita sequer na própria filosofia”.
Um poeta, então, esse Wally. E um poeta obsessivo – uma espécie de João Gilberto da poesia, digamos. Sob esse aspecto, nosso poeta mais próximo dele é um outro João, o pernambucano Cabral. Um crítico falou da “imensa teimosia de Stevens, sua insistência em seguir seu próprio caminho, intensamente preocupado apenas com aquilo que o preocupava”.
—-
(*) Artigo “Um cidadão de terno cinzento” publicado por João Moura Jr. (poeta e jornalista). in: Folhetim, suplemento da Folha de São Paulo, janeiro de 1984 | reproduzida em ‘Cultura Pará’. (acessado em 8.8.3016).
Outras fontes e referências de pesquisa:
Wallace Stevens – Poetry Foundation
O Poema – Wallace Stevens
© Direitos reservados aos herdeiros
© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexandre da Silva
“Pequeno mapa do tempo” reúne duetos do cantor João Fênix com Jonna, Almério, Moreno Veloso,…
Álbum da poeta e letrista Lúcia Santos tem as participações de Anastácia, André Bedurê, Ceumar,…
O cantor e compositor Roger Resende antecipa seu novo EP com a intimista “Cavaco Madeira”.…
Single 'Cabra da Peste' anuncia novo álbum autoral de Fi Bueno, gravado com produção do…
A série, é uma adaptação da obra prima de Gabriel García Márquez “Cem Anos de…
Romântico e quente, novo trabalho abre as comemorações do aniversário de dez anos da banda…