“Os poetas nos ajudaram a conhecer as paixões e, assim, a nos conhecermos: a inveja, a sensualidade, a crueldade, a hipocrisia e, enfim, todas as complexidades da alma humana”
– Octavio Paz, em “A outra voz”. [tradução Wladir Dupont]. São Paulo: Siciliano, 1993.
A ti, leitor
Tu, leitor, que palpitas de vida e orgulho e amor
assim como eu, a ti, por isso os cantos que se seguem!
– Walt Whitman, em “Folhas de Relva”. [seleção e tradução Geir Campos; ilustrações Darcy Penteado]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964; 2002.
Pleno de vida agora
Pleno de vida agora, consistente, visível,
Eu, quarenta anos vividos, no ano oitenta e três anos dos Estados,
Ao homem que viva daqui a um século, ou dentro de quantos séculos for,
A ti, que ainda não nasceste, dirijo este canto.
Quando leias isto, eu, que agora sou visível, terei me tornado invisível,
Enquanto tu serás consistente e visível, e darás realidade a meus poemas, voltando-te para mim,
Imaginando como seria bom se eu pudesse estar contigo e ser teu camarada:
Faz de conta que eu estou contigo. (E não o duvides muito, porque eu estou aí nesse momento.)
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Full of life now
Full of life now, compact, visible,
I, forty years old the eighty-third year of the States,
To one a century hence or any number of centuries hence,
To you yet unborn these, seeking you.
When you read these I that was visible am become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my poems, seeking me,
Fancying how happy you were if I could be with you and become your comrade;
Be it as if I were with you. (Be not too certain but I am now with you.)
– Walt Whitman, “Pleno de vida agora”. em “O prazer do poema. Uma antologia pessoal”. [tradução e organização Ferreira Gullar]. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.
§
A ti, Ó Democracia
Venha, farei o continente indissolúvel,
Farei a mais esplêndida raça sobre a qual o sol jamais brilhou,
Farei divinas terras magnéticas,
Com o amor dos camaradas,
Com o amor de toda vida dos comadaradas.
Plantarei o companheirismo copioso como árvores ao longo de todos os rios da América e ao longo das margens dos grandes lagos e por todas as pradarias,
Farei cidades inseparáveis, cada uma com os braços em volta do pescoço da outra,
Pelo amor de camaradas,
Pelo másculo amor de camaradas.
A ti, isto de mim, Ó Democracia, a fim de servi-la ma femme!
A ti, a ti estou trinando estas canções.
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For you O Democracy
Come, I will make the continent indissoluble,
I will make the most splendid race the sun ever shone upon,
I will make divine magnetic lands,
With the love of comrades,
With the life-long love of comrades.
I will plant companionship thick as trees along all the rivers of America,
and along the shores of the great lakes, and all over the prairies,
I will make inseparable cities with their arms about each other’s necks,
By the love of comrades,
By the manly love of comrades.
For you these from me, O Democracy, to serve you ma femme!
For you, for you I am trilling these songs.
– Walt Whitman, em “Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX” [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngue – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
§
A base de toda metafísica
E agora cavalheiros,
Uma palavra digo para permanecer em vossas mentes e memórias,
Como base e também finale para toda metafísica.
(Assim para os estudantes o velho professor
Ao término de seu curso repleto.)
Tendo estudado o novo e o antigo, os sistemas Grego e Germânico,
Tendo estudado e exposto Kant, Fichte e Schelling e Hegel,
Exposto o saber de Platão, e Sócrates maior do que Platão,
E, maior que Sócrates pesquisado e exposto, Cristo divino havendo
longamente estudado,
Vejo hoje em reminiscência aqueles sistemas Grego e Germânico,
Vejo os filósofos todos, igrejas cristãs e cédulas de dez dólares vejo,
No entanto sob Sócrates claramente vejo, e sob Cristo o divino vejo,
O caro amor do homem pelo seu camarada, a atração de amigo por amigo,
Dos bem casados marido e mulher, de crianças e pais,
De cidade por cidade e de terra por terra.
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The base of all metaphysics
And now gentlemen,
A word I give to remain in your memories and minds,
As base and finale too for all metaphysics.
(So to the students the old professor,
At the close of his crowded course.)
Having studied the new antique, the Greek and Germanic systems,
Kant having studied and stated, Fichte and Schelling and Hegel,
Stated the lore of Plato, and Socrates greater than Plato,
And greater than Socrates sought and stated, Christ divine having studied long,
l see reminiscent to-day those Greek and Germanic systems,
See the philosophies all, Christian churches and tenets see,
Yet underneath Socrates clearly see, and underneath Christ the divine I see,
The dear love of man for his comrade, the attraction of friend to friend,
Of the well-married husband and wife, of children and parents,
Of city for city and land for land.
– Walt Whitman em “Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX” [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngüe – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
§
Murmúrios da morte celestial
Murmúrios da morte celestial sussurrados ouvi,
Conversa labial da noite, coros sibilantes,
Passos ascendendo suavemente, aragens místicas vogavam amenas e baixo,
Ondulações de rios invisíveis, marés de uma corrente a fluir, sempre a fluir,
(Ou será o salpicar de lágrimas? as ilimitadas águas das lágrimas humanas?)
Vejo, vejo exatamente em direção ao céu, imensas massas de nuvens,
Lugubremente devagar elas flutuam, silenciosamente dilatando-se e mesclando-se,
Com às vezes uma entristecida estrela, remota e semi-eclipsada,
Aparecendo e desaparecendo.
(Provavelmente algum parto, algum nascimento solene e imortal;
Impenetrável sobre as fronteiras para os olhos,
Alguma alma está passando por cima.)
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Whispers of heavenly death
Whispers of heavenly death murmur’d I hear,
Labial gossip of night, sibilant chorals,
Footsteps gently ascending, mystical breezes wafted soft and low,
Ripples of unseen rivers, tides of a current flowing, forever flowing,
(Or is it the plashing of tears? the measureless waters of human tears?)
I see, just see skyward, great cloud-masses,
Mournfully slowly they roll, silently swelling and mixing,
With at times a half-dimm’d sadden’d far-off star,
Appearing and disappering.
(Some parturition rather, some solemn immortal birth;
On the frontiers, to eyes impenetrable,
Some soul is passing over.)
– Walt Whitman, em “Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX” [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngue – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
§
Uma mulher espera por mim
Uma mulher espera por mim, ela tudo contém, nada falta,
No entanto, tudo ficou faltando se o sexo faltou, ou se o orvalho do varão
certo estivesse faltando.
O sexo contém tudo, corpos, almas,
Significados, experiências, purezas, delicadezas, resultados, promulgações,
Canções, mandamentos, saúde, orgulho, o mistério da maternidade, o leite seminal,
Todas as esperanças, benefícios, doações, todas as paixões, amores, belezas,
deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses seguiram pessoas da terra,
Estes estão contidos no sexo como partes de si mesmo e justificativas de si mesmo.
Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura a delícia do seu sexo,
Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura as suas.
Agora vou dispensar-me de mulheres frias,
Vou ficar com ela que espera por mim e com aquelas mulheres que são apaixonadas
e me satisfazem,
Vejo que me compreendem e não me negam,
Vejo que são dignas de mim, serei o marido vigoroso de tais mulheres.
Elas não são em nada menos do que eu,
Têm a face curtida por sóis luzentes e o sopro dos ventos,
A sua carne possui a velha divina maleabilidade e energia,
Sabem como nadar, remar, cavalgar, lutar, atirar, correr, golpear, recuar, avançar,
resistir, defenderem-se,
São irrevogáveis quanto a seus direitos – são calmas, claras, seguras de si próprias.
Trago-as para perto de mim, vocês mulheres,
Não posso deixá-las ir, faria bem a vocês,
Estou para vocês e vocês estão para mim, não apenas para o nosso bem,
mas para o bem de outros,
Envoltos em vocês adormecem os maiores heróis e bardos,
Recusam-se a despertar ao toque de qualquer homem, a não ser eu.
Sou eu, mulheres, faço meu caminho,
Sou duro, amargo, grande, indissuadível, mas amo-as,
Eu não as faço sofrer além do necessário para vocês,
Eu verto a substância para encetar filhos e filhas aptos para estes EUA,
pressiono com o músculo rude e lento,
Eu me abraço efetivamente, não escuto súplicas,
Não ouso me afastar até que deposite o que, há muito, estava acumulado dentro de mim.
Através de vocês faço escoar os reprimidos rios de mim mesmo,
Em vocês contenho mil lágrimas progressivas,
Sobre vocês eu enxerto os enxertos do mais amado de mim e da América,
Os pingos que destilo sobre vocês farão crescer moças impetuosas e atléticas,
novos artistas, músicos e cantores,
As crianças que eu gerar sobre vocês hão de gerar crianças por sua vez,
Hei de exigir homens e mulheres perfeitos do meu consumir amoroso,
Espero que eles se interpenetrem com outros, como eu e vocês nos interpenetramos agora,
Vou contar os frutos das ejeções abundantes deles, assim como conto os frutos
das ejeções abundantes que eu agora dou,
Vou aguardar as colheitas de amor, desde o nascimento, vida, morte, imortalidade,
do que planto tão amorosamente agora.
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A woman waits for me
A woman waits for me, she contains all, nothing is lacking,
Yet all were lacking if sex were lacking, or if the moisture of the right man
were lacking.
Sex contains all, bodies, souls,
Meanings, proofs, purities, delicacies, results, promulgations,
Songs, commands, health, pride, the maternal mystery, the seminal milk,
All hopes, benefactions, bestowals, all the passions, loves, beauties, delights
of the earth,
All the governments, judges, gods, follow’d persons of the earth,
These are contain’d in sex as parts of itself and justifications of itself.
Without shame the man I like knows and avows the deliciousness of his sex,
Without shame the woman I like knows and avows hers.
Now I will dismiss myself from impassive women,
I will go stay with her who waits for me, and with those women that are
warm-blooded sufficient for me,
I see that they understand me and do not deny me,
I see that they are worthy of me, I will be the robust husband of those women.
They are not one jot less than I am,
They are tann’d in the face by shining suns and blowing winds,
Their flesh has the old divine suppleness and strength,
They know how to swim, row, ride, wrestle, shoot, run, strike, retreat, advance,
resist, defend themselves,
They are ultimate in their own right–they are calm, clear, well-possess’d of themselves.
I draw you close to me, you women,
I cannot let you go, I would do you good,
I am for you, and you are for me, not only for our own sake, but for others’ sakes,
Envelop’d in you sleep greater heroes and bards,
They refuse to awake at the touch of any man but me.
It is I, you women, I make my way,
I am stern, acrid, large, undissuadable, but I love you,
I do not hurt you any more than is necessary for you,
I pour the stuff to start sons and daughters fit for these States, I press with
slow rude muscle,
I brace myself effectually, I listen to no entreaties,
I dare not withdraw till I deposit what has so long accumulated within me.
Through you I drain the pent-up rivers of myself,
In you I wrap a thousand onward years,
On you I graft the grafts of the best-beloved of me and America,
The drops I distil upon you shall grow fierce and athletic girls, new artists,
musicians, and singers,
The babes I beget upon you are to beget babes in their turn,
I shall demand perfect men and women out of my love-spendings,
I shall expect them to interpenetrate with others, as I and you interpenetrate now,
I shall count on the fruits of the gushing showers of them, as I count on the fruits
of the gushing showers I give now,
I shall look for loving crops from the birth, life, death, immortality, I plant so
lovingly now.
– Walt Whitman, em “Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX” [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngue – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
§
Broadway
Que apressadas correntes humanas, ou de dia ou de noite!
Que paixões, ganhos, perdas, ardores, nadam em tuas águas!
Que redemoinhos de maldade, alegria e tristeza, te contêm!
Que curiosos olhares interrogativos — cintilações de amor!
Olhar irônico, inveja, desdém, menosprezo, esperança, aspiração!
Tu és portal — tu és arena — tu, da miríade de extensas linhas e grupos!
(Apenas tuas lajes, parapeitos, fachadas podem contar suas histórias inimitáveis;
Tuas ricas janelas e enormes hotéis — tuas amplas calçadas;)
Tu dos infindos pés de passo curto, deslizando, arrastando!
Tu, como o próprio mundo multicolorido — como a infinita, fértil e escarnecedora vida!
Tu disfarçada, grandiosa, indizível exibição e lição!
.
Broadway
What hurrying human tides, or day or night!
What passions, winnings, losses, ardors, swim thy waters!
What whirls of evil, bliss and sorrow stem, thee!
What curious questioning glances — glints of love!
Leer, envy, scorn, contempt, hope, aspiration!
Thou portal — thou arena — thou of the myriad long-drawn lines and groups!
(Could but thy flagstones, curbs, facades tell their inimitable tales;
Thy windows, rich and huge hotel — thy side-walks wide;)
Thou of the endless sliding, mincing, shuffling feet!
Thou, like the parti-colored world itself — like infinite, teeming, mocking life!
Thou visor’d, vast, unspeakable show and lesson!
– Walt Whitman, em “Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX” [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngüe – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
§
A um ser estranho
Estranho ser que passas! não sabes com que ansiedade ponho
meus olhos em ti,
bem podes ser aquêle que eu andava buscando ou aquela que
eu andava buscando
(isso me ocorre como num sonho),
algures certamente eu já vivi contigo uma vida de alegrias,
tudo é lembrado ao passarmos um pelo outro, fluidos,
afeiçoados, castos, amadurecidos,
cresceste junto comigo, foste menino comigo ou menina comigo,
comi contigo e dormi contigo, teu corpo não se fêz exclusivo
nem meu corpo ficou meu exclusivo,
tu dás a mim o prazer de teus olhos, rosto, carne, ao cruzarmos,
tomas-me a barba, o peito, as mãos, em troca,
eu não estou para falar contigo, mas para pensar em ti quando
me sento sozinho ou quando à noite desperto sozinho,
estou à espera, não duvido de que estou para encontrar-te outra vez,
com isso estou por ver que não te perco.
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To a stranger
Passing stranger! you do not know how longingly I look upon you,
You must be he I was seeking, or she I was seeking, (it comes to me
as of a dream,)
I have somewhere surely lived a life of joy with you,
All is recall’d as we flit by each other, fluid, affectionate,
chaste, matured,
You grew up with me, were a boy with me or a girl with me,
I ate with you and slept with you, your body has become
not yours only nor left my body mine only,
You give me the pleasure of your eyes, face, flesh, as we pass,
you take of my beard, breast, hands, in return,
I am not to speak to you, I am to think of you when I sit alone
or wake at night alone,
I am to wait, I do not doubt I am to meet you again,
I am to see to it that I do not lose you.
– Walt Whitman, em “Folhas de Relva”. [seleção e tradução Geir Campos; ilustrações Darcy Penteado]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964; 2002.
§
Aos que Falharam
Aos que falharam, grandes na aspiração,
aos soldados sem nome caídos na vanguarda do combate,
aos calmos e esforçados engenheiros, aos pilotos nos barcos,
aos super-ardorosos viajantes,
a tão sublimes cantos e pinturas sem reconhecimento
– eu gostaria de erguer um momento coberto de louros
alto, bem alto, acima dos demais:
A todos os truncados antes do tempo,
arrebatados por algum estranho espírito de fogo,
tocados por morte prematura.
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To Those Who’ve Fail’d. (1)
To those who’ve fail’d in aspirations vast,
To unnamed soldiers, fall’n in front, on the lead,
To calm, devoted engineers, to over ardent
travellers, to pilots on their ships,
To many a song and picture without parturition,
I’d rear a laurel cover’d monument
High, high above the rest—to all cut off before
their time,
Possess’d by some great spirit of fire
Quenched by an early death.
– Walt Whitman, em “Folhas de Relva”. [seleção e tradução Geir Campos; ilustrações Darcy Penteado]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964; 2002.
Notes:
(1). Reprinted in the “Sands at Seventy” annex to Leaves of Grass (1888). Whitman made a number of changes to the poem for its printing in “Sands at Seventy,” including making “aspirations” singular in the first line; inserting the word “lofty” and changing “parturition” to “recognition” in the fourth line; and replacing “great” with “strange” in the final line. The punctuation also differs in places.
§
A última invocação
Enfim, suavemente,
Das paredes da casa poderosamente defendida,
Da prisão de fortes fechaduras, da segurança de portas bem fechadas,
Que eu seja levado.
Que eu me esgueire sem ruído;
Com a chave da doçura abrindo os fechos — num leve sussurro
Escancarando as portas, Ó Alma.
Suavemente — sem impaciência
(Tão forte é a tua garra, ó carne mortal.
Tão forte a tua garra, Amor).
.
The last invocation
AT the last, tenderly,
From the walls of the powerful fortress’d house,
From the clasp of the knitted locks, from the keep of the well-closed doors,
Let me be wafted.
Let me glide noiselessly;
With the key of softness unlock the locks—with a whisper,
Set ope the doors O soul.
Tenderly—be not impatient,
(Strong is your hold O mortal flesh,
Strong is your hold O love).
– Walt Whitman, em “Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche”. [antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena]. Porto: Edições Asa, 2001.
§
Quando ouvi o douto astrónomo
Quando ouvi o douto astrónomo,
Quando em colunas me apresentaram as provas e os números,
Quando me mostraram as listas e os diagramas
para somar, dividir e medir,
Quando ouvi o astrónomo discorrer com muitos aplausos na sala,
Quando cedo me senti inexplicavelmente cansado e doente,
Até me levantar e fugir e caminhar sozinho,
No húmido e místico ar nocturno, olhando de vez em quando,
E em perfeito silêncio as estrelas.
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The Learn’d Astronomer
The Learn’d Astronomer
When I heard the learn’d astronomer,
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me,
When I was shown the charts and diagrams, to add, divide, and measure them,
When I sitting heard the astronomer where he lectured with much applause in the lecture-room,
How soon unaccountable I became tired and sick,
Till rising and gliding out I wander’d off by myself,
In the mystical moist night-air, and from time to time,
Look’d up in perfect silence at the stars.
– Walt Whitman, em “Folhas de Erva”. [seleção e tradução José Agostinho Baptista]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
§
BIOGRAFIA
Walter “Walt” Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 – Camden, 26 de março de 1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o “pai do verso livre”. Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução americana, como Maiakovsky seria o grande poeta da Revolução russa.
Walt Whitman, descendente de ingleses e holandeses, nasceu em West Hills, na cidade de Huntington, no estado de Nova Iorque. Quando tinha quatro anos de idade, sua família mudou-se para Brooklyn, onde este frequentou até aos onze anos uma escola oficial, trabalhando depois como aprendiz numa tipografia.
Em 1835 trabalhou como impressor em Nova York no verão do ano seguinte começou a ensinar em East Norwich, Long Island. Entre 1836-1838 deu aulas e de 1838 a 1839 editou o semanário Long Islander, em Huntington. Voltou ao ensino depois de participar como jornalista na campanha presidencial de Van Buren (1840-41).
Em Maio de 1841 regressou a Nova York, onde trabalhou novamente como impressor.
Entre 1842-1844 editou um jornal diário, Aurora, e o Evening Tatler. Regressou a Nova York em 1845, e durante um ano escreveu para o Long Island Star, tornando-se em seguida editor do Daily Eagle de Brooklyn, lugar que ocupou de 1846 a 1848.
Em Fevereiro desse ano partiu com o irmão Jeff para Nova Orleans, onde trabalhou no Crescent. Deixou Nova Orleans em maio do mesmo ano, regressando a Nova York.
Editou o Freeman, do Brooklyn entre 1848-1849 e no ano seguinte montou uma tipografia e uma papelaria.
No início de julho de 1855 publicou a primeira edição de Leaves of Grass, impressa na Rome Brothers com os custos de impressão arcados pelo próprio Whitman. Os versos deste livro eram livres, longos e brancos, imitando os ritmos da fala.
A primeira edição da obra mais importante da sua carreira, não mencionava o nome do autor, e continha apenas 12 poemas e um prefácio.
A obra poética de Whitman centra-se na coletânea Leaves of Grass, dado que ao longo de sua vida o escritor se dedicou a rever e completar aquele livro, que teve oito edições durante a vida do poeta.
No verão seguinte foi publicada a segunda edição de Leaves of Grass (1856), ostentando na capa o nome do seu autor. O livro foi recebido com entusiasmo por alguns críticos, mas mal recebido pela maioria, o que, contudo, não impediu Whitman de continuar a trabalhar em novos poemas para aquela coletânea.
A segunda edição de Leaves of Grass era composta por 32 poemas, intitulados e numerados. Entre eles encontrava-se Poem of Walt Whitman, an American, o poema que haveria de se chamar Song of Myself (Canto de Mim Mesmo).
Entre a Primavera de 1857 e o Verão de 1859 Whitman editou o Times do Brooklyn, sendo publicada em 1860, em Boston, a terceira edição da sua obra. Contudo, a editora foi à falência em 1861 e a edição, que continha 154 poemas, foi pirateada.
Entre 1863-1864 trabalhou para o Exército em Washington, DC, servindo entretanto como voluntário em hospitais militares. Regressou a Nova York doente e com marcas de envelhecimento prematuro causadas pela experiência da guerra civil.
Trabalhou posteriormente como funcionário do Departamento do Interior (1865) e publicou em maio desse ano o livro Drum-Taps, que continha 53 poemas sobre a guerra civil e a experiência do autor nos hospitais militares. No mesmo ano foi despedido pelo Secretário James Harlan, por este ter considerado Leaves of Grass indecente.
Em 1867 foi publicada a quarta edição de Leaves of Grass, com 8 novos poemas. No ano seguinte saiu em Londres uma seleção de poemas de Michael Rossetti, intitulada Poems by Walt Whitman.
A quinta edição de Leaves of Grass (1870-1871) teve uma segunda tiragem que incluía Passage to India e mais 71 poemas, alguns dos quais inéditos.
Depois de publicar Democratic Vistas, Whitman viajou para Hannover, New Hampshire. Corria o ano de 1872. Na Faculdade de Dartmouth leu As a Song Bird on Pinions Free, posteriormente publicado com um prefácio. Em janeiro de 1873, Whitman sofreu uma paralisia parcial e, após o falecimento de sua mãe, o escritor deixou Washington para se fixar em Camden, New Jersey com o irmão George.
Em 1876 surgiu a sexta edição de Leaves of Grass, publicada em dois volumes. Em agosto de 1880, Whitman reviu as provas da sétima edição de “Leaves of Grass, que sob ameaças do Promotor Público teve de suspender a distribuição do livro.
A edição só foi retomada dois anos mais tarde por Rees Welsh e depois por David McKay. Incluía 20 poemas inéditos e os títulos definitivos e uma ordem dos poemas revista. Em 1882 foi ainda publicado o livro Specimen Days and Collect.
Os últimos anos de vida de Whitman foram marcados pela pobreza, atenuada apenas pela ajuda de amigos e admiradores americanos e europeus.
Em 1884, Whitman adquiriu uma casa em Camden, New Jersey. Quatro anos depois, sofreu um novo ataque de paralisia e viu publicados 62 novos poemas sob o título November Boughs (1888). Ainda nesse ano foi publicado Complete Poems and Prose of Walt Whitman.
A oitava edição de Leaves of Grass apareceu em 1889, e no ano seguinte o escritor começou a preparar a sua nona edição, publicada em 1892.
Whitman morreu no dia 26 de Março de 1892 e foi sepultado em Camden, New Jersey.
Cinco anos depois foi publicada em Boston a décima edição de Leaves of Grass (1897), a que se juntaram os poemas póstumos Old Age Echoes”
Nos seus poemas, Walt Whitman elevou a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral em termos pouco convencionais. Na sua obra Leaves of Grass, Whitman exprime em poemas visionários um certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa.
Profundamente identificado com os ideais democráticos da nação americana, Whitman não deixou de celebrar o futuro da América.
Introduziu uma nova subjetividade na concepção poética e fez da sua poesia um hino à vida. A técnica inovadora dos seus poemas, nos quais a ideia de totalidade se traduziu no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o lirismo moderno, incluindo o poeta e ensaísta português Fernando Pessoa***.
Fonte: Valinor
:: Calamo. Walt Whitman. [tradução Eric Mitchell Sabinson]. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2017.
:: Folhas de relva. (em sua versão definitiva, a “do leito de morte”).. [tradução Gentil Saraiva Jr.]. Edição do tradutor, 2017.
:: Folhas de Relva-Edição do Leito de Morte | Deathbed Edition ‘1892’). Walt Whitman. [tradução Bruno Gambarotto]. São Paulo: Editora Hedra, 2011.
:: Folhas de Relva | Leaves of Grass. Walt Whitman. [tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes]. Edição bilíngue. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.
:: Folhas de relva. Walt Whitman. [tradução Luciano Alves Meira]. São Paulo: Martin Claret, 2005.
:: Folhas da relva. Walt Whitman (excertos).. [seleção e tradução Ramsés Ramos]. Edição bilíngue. Brasília: Plano/ Oficina Editorial da UnB, 2001.
:: A canção de mim mesmo. Walt Whitman. [tradução André Cardoso]. Edição bilíngue. São Paulo: Alumni |Imago editora, 2000.
:: Folhas das Folhas de Relva. Walt Whitman. [seleção e tradução Geir Campos; introdução de Paulo Leminski]. Clássico de Bolso / São Paulo: Folha de São Paulo; Rio de Janeiro: Ediouro, 1990
:: Folhas das Folhas de Relva. Walt Whitman. [seleção e tradução Geir Campos; introdução de Paulo Leminski]. Coleção Universidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1986?.
:: Walt Whitman: Profeta da Liberdade. [tradução Irineu Monteiro]. São Paulo: Martin Claret, 1984.
:: Folhas das Folhas de Relva. Walt Whitman. [seleção e tradução Geir Campos; introdução de Paulo Leminski]. Walt Whitman. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
:: Folhas de Relva. Walt Whitman. [seleção e tradução Geir Campos; ilustrações Darcy Penteado]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964; reedição 2002.
:: Três poemas de Walt Whitman. [tradução Luís da Câmara Cascudo]. Coleção Concórdia. Recife/PE: Imprensa Oficial de Recife, 1957; 2ª ed., Coleção Mossoroense. Mossoró: ESAM, série B, n. 1.137, 1992.
:: Sinfonia da vida. Walt Whitman. [tradução Messias Pereira Donato]. 1956; 2ª ed., revista e atualizada. Belo Horizonte: RTM, 2011.
:: Cantos de Whitman. [tradução Oswaldino Marques; introdução Annibal M. Machado]. Coleção Rubaiyat. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
:: Saudação ao mundo e outros poemas. Walt Whitman. [prólogo e tradução Mário Dias Ferreira dos Santos]. São Paulo: Editora Flama, 1944.
Em Antologias
:: Gênio: os 100 escritores mais criativos da história da literatura. Harold Bloom. [tradução José Roberto O’Shea]. Rio Janeiro: Objetiva, 2003.
:: Antologia da Nova Poesia Norte-americana. [seleção e tradução Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1992.
:: Poesia erótica em tradução. [seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
:: Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX. [organização e tradução de José Lino Grünewald] Edição bilíngue – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
:: Folhetim: poemas traduzidos (antologia).. [organização e tradução Nelson Ascher; apresentação Matinas Suzuki Jr]. Folha de São Paulo, 1987.
:: Antologia o livro de ouro da Poesia dos Estados Unidos. [organização e prólogo Oswaldino Marques; tradução vários]. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.
:: Poetas norte-americanos: antologia bilíngue. [tradução e nota introdutória Paulo Vizioli. Rio de Janeiro: Lidador, 1976.
:: Poemas da Liberdade: uma antologia poética de Dante a Brecht. [tradução e prefácio Edmundo Moniz; ‘orelhas’ Carlos Heitor Cony]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
:: Poesia dos Estados Unidos. [organização e prólogo Oswaldino Marques; tradução vários]. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966.
Biografia
DEUTSCH, Ba-bette. Walt Whitman. (biografia).. [tradução Brenno Silveira; com ‘poemas de Whitman’. tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos]. São Paulo: Martins. 1965.
ZWEIG, Paul. Walt Whitman. a formação do poeta. (biografia crítica).. tradução Ângela Melim, trazendo poemas e excertos em tradução de Eduardo Francisco Alves]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
Mais sobre traduções
**BOTTMANN, Denise. Walt Whitman no Brasil. in: blog não gosto de plágio, 15.5.2012. Disponível no link. (acessado em 13.4.2018)
:: Visões Democráticas. Walt Whitman. [tradução, introdução e notas Jaime Becerra da Costa]. Guimarães: Edições Opera Omnia, 2011.
:: Folhas de Erva. Walt Whitman. [tradução Maria de Lourdes Guimarães]. Edição bilíngue. Lisboa: Relógio d’Água, 2010.
:: Cálamo. Walt Whitman. [tradução José Agostinho Baptista]. Coleção Gato Maltês. Edição bilíngue. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993.
:: Canto de Mim Mesmo. Walt Whitman. [tradução José Agostinho Baptista]. Coleção Documenta Poética. Edição bilíngue. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
:: Folhas de Erva. Walt Whitman. [seleção, tradução José Agostinho Baptista]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) x Walt Whitman
:: Saudação a Walt Whitman – Canto de Mim Mesmo. [Apresentação Jerónimo Pizarro]. Lisboa: Guerra & Paz, 2017.
Fortuna crítica | algumas referências
BARROSO, Ivo. A voz oceânica de Walt Whitman. in: Gaveta do Ivo, 8.7.2011. Disponível no link. (acessado em 13.4.2018).
BOTTMANN, Denise. O quinteto da renascença americana no Brasil. Cadernos de Tradução, v. 35, jan.-jun. 2015, Florianópolis, p. 191-211. Disponível no link. (acessado 13.4.2018)
BRANDÃO, Antonia Marisa Rodrigues. Whitman, Caeiro e Campos: diálogo de poéticas. Kalíope, São Paulo, ano 7, n. 14, p. jul./dez., 2011.
COSTA, Elisa Maria Carrancho Sá. A América, a universalidade e a espiritualidade na poesia da Reconstrução de Walt Whitman. (Dissertação Mestrado em Estudos Anglo-Americanos). Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2001. Disponível no link. (acessado 13.4.2018)
FONSECA, Edson Nery da. Walt Whitman traduzido e comentado por Cascudo. O Galo, Natal, ano X, n. 11, p. 11-13, dez. 1998.
GAMBAROTTO, Bruno. Walt Whitman: e a formação da poesia norte-americana (1855-1867).. (Dissertação Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). Universidade de São Paulo, USP, 2006. Disponível no link. e – link. (acessado em 13.8.2018).
SARAIVA Jr., Gentil. Re-creating Walt Whitaman’s Leaves of grass into portuguese. (Tese Doutorado em Letras). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, 2008. Disponível no link. (acessado em 13.8.2018).
SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN
Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze…
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objectos de fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser…
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.
Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evoé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora… Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!
Nunca posso ler os teus versos a fio… Há ali sentir de mais…
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça p’ra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.
Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma…
Passo sem explicações…
Se for preciso meto dentro as portas…
Sim — eu franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui p’ra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!
Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir…
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito…
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana… Ninguém tem nada com isso…
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De me (…)
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
E tudo para te cantar, para te saudar e (…)
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
E (…)
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na alma…
Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente… Não faz diferença…
Vamos lá prá frente
Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma…
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
Pum! pum! pum! pum! pum!
Agora, sim, partamos, vá lá prá frente, pum!
Pum
Pum
Heia…heia…heia…heia…heia…
Desencadeio-me como uma trovoada
Em pulos da alma a ti,
Com bandas militares à frente […] a saudar-te…
Com um […] contigo e uma fúria de berros e saltos
Estardalhaço a gritar-te
E dou-te todos os vivas a mim e a ti e a Deus
E o universo anda à roda de nós como um carrocel com música dentro dos nossos crânios,
E tendo luzes essenciais na minha epiderme anterior
Eu, louco de […] sibilar ébrio de máquinas,
Tu célebre, tu temerário, tu o Walt — e o […],
Tu a [sensualidade porto?]
Eu a sensualidade com […]
Tu a inteligência (…)
.
11-6-1915
Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 24a.
1ª versão inc.: Poesias de Álvaro de Campos . Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.
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© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexandre da Silva
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