Quem vigia os vigilantes? Esse certamente é a grande pergunta que atravessa a bíblia dos quadrinhos: Watchmen (1986-1987) de Alan Moore (roteiro) e Dave Gibbons (ilustração), cuja adaptação cinematográfica foi lançada em 2009. Certamente um dos grandes méritos dessa obra prima do mundo pop se deve à belíssima desconstrução do arquétipo do herói e o questionamento da fé cega (auto) investida naqueles que se dizem guardiões da lei e da ordem.
Em tempos de livrarias abarrotadas com biografias de juízes/juízas e obras sobre o (suposto) estabelecimento do Poder Judiciário como a mais alta instância da moralidade da sociedade brasileira, sempre me pergunto: “quem vigia o Poder Judiciário?” Quem vigia aquele que no regime democrático brasileiro é institucionalmente, por definição, a principal garantia do respeito aos direitos humanos? Quem vigia, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF), a que é atribuída a guarda da Constituição (vide art. 102 da CF)?
Assim como os (as) vigilantes dos quadrinhos, os (as) juízes (juízas) não foram escolhidos pelo voto popular. Se os (as) primeiros (as) ascenderam à essa posição por algum chamado interno de justiça ou o despertar de um super-poder que impossibilitou qualquer outro caminho que não fosse a grandeza heróica, os (as) outros (as) chegaram lá pelas vias do concurso público, ou ainda prestígio público – que é o que acontece, por exemplo, com os (as) Ministros (as) dos Tribunais Superiores que são nomeados (as) e aprovados (as). Ambas as vias supostamente democráticas, sob a falácia da meritocracia, mas extremamente excludentes para os que não dispõem de capital intelectual ou social para tanto – para falar com Bourdieu. Não é difícil entender como, por esses mecanismos, a estrutura do Judiciário reproduz o mesmo perfil elitista que encontramos em todos os espaços de poder dos que estão à frente da sociedade brasileira. Diferentemente do que acontece com o Legislativo e Executivo, nesse caso não há mandato, não há campanha, não há reeleição. O Judiciário, assim como os (as) integrantes do Watchmen não estariam interessados (apenas) nos aplausos da humanidade, mas na obediência à Lei… segundo suas interpretações, é claro. Se no regime democrático a lei é reflexo da soberania popular, mas interpretada e regulada pelo Judiciário, quem o vigia para garantir sua subserviência à ela? O Legislativo? O Executivo? Seria o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Mas a grande composição deste órgão não é predominante de membros do Judiciário? Quando se trata da questão de quem vigia os vigilantes, caímos num raciocínio tautológico que evidencia que são pouco efetivas as tentativas de controle horizontal quando desde a origem os vigilantes são representativos de apenas uma parte da soberania mais ampla que precisariam observar e resguardar.
Enquanto em Watchmen a máscara, para alguns heróis – Comediante, Rorschach e Coruja – serve como uma garantia de uma atuação efetiva e de proteção, a organização do Poder Judiciário brasileiro, modelo importado dos Estados Unidos, se traveste das garantias de funcionamento (art. 95 da CF): vitalicidade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. Vejo blindagens e imunidades extremamente necessárias para evitar a subordinação dos (as) magistrados (as) aos poderes políticos, aos partidos políticos e outras organizações, mas e a contrapartida? Onde estão as responsabilidades dos (das) vigilantes?
Com o Projeto de Lei 280/2015, que discorre sobre abuso de autoridade, a discussão sobre a responsabilidade dos (as) juízes (as) voltou com força no cenário político brasileiro. Entretanto, independente da conclusão que se chegue sobre esse projeto de lei, se é necessário ou não, se é acertado ou não, fato é que hoje no Brasil há um isolacionismo fundado na absolutização da independência[1]. Enquanto na Espanha, em 2012, o Tribunal Superior condenou um magistrado à perda do cargo e inabilitação para função pública pelo período de 11 anos, em razão de abuso consistente na determinação de escutas ilegais no caso Gürtel, que envolvia dirigentes do Partido Popular, em Valência, e seus advogados, no Brasil, na esfera administrativa há a possibilidade de aposentaria compulsória com vencimentos integrais, na esfera civil, a responsabilidade pessoal permanece regressiva (artigos 39 do CPC e 37, § 6º, da CF) e na esfera criminal, não há tipos penais próprios – destaque que os elencados na lei de abuso de autoridade vigente são, na prática, de muito difícil enquadramento.
Pelo visto, na organização do Poder Judiciário brasileiro, assim como em Watchmen, os vigilantes são vigiados por si mesmos. Os vigilantes são limitados apenas pela vinculação à legislação, à Constituição, a qual é interpretada construtivamente por eles mesmos (as). Mas o que separa interpretação, criação e legislação eu também não sei. Mais conversa que empurramos com a barriga para outra coluna…
[1] Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Who Watches the Watchmen?” A Comparative Study on Judicial Responsibility. The American Journal of Comparative Law Vol. 31, No. 1 (Winter, 1983), pp. 1-62
* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.
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