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“You” e o lado obscuro do romantismo – Clarice Lippmann

“You” é uma série original Netflix, dirigida por Sera Gamble e Greg Berlanti, espécie de thriller voltada para o público jovem, cujo foco narrativo é o nocivo relacionamento do personagem principal e seu par romântico. Joe Goldberg, o suposto estereótipo do “cara legal”, procura em Guinevere Beck o escape perfeito para realizar suas idealizações amorosas, nascidas de suas frustrações prévias e de seus distúrbios particulares.

Sem entrar em alguns pormenores que prejudicam a trama, como momentos de incongruência dos personagens, levando o roteiro para conclusões previsíveis, o valor da série “You” é a crítica que ela traz intrínseca a própria história que conta. O relatodo quão perversa, controversa e doentia pode ser a nossa concepção tradicional do amor romântico.Especialmente no espectro heteronormativo, quando é pressuposta uma fantasia de vulnerabilidade feminina.

Isso porque o romance entre os personagens principais, Joe e Beck, o mote da trama, só existe porque Joe é o que se define como um “stalker”: um perseguidor, um sujeito obcecado pela pessoa (ou melhor, objeto) que persegue. Para possui-la, rompe inúmeras barreiras morais, chegando a atos extremos de violência.

A ideia central não é particularmente criativa, porém a abordagem psicológica e atual que a série traz tem seus méritos. Estamos mais desprotegidos em uma sociedade que se alimenta de exposições, incentivadas pelas atuais tecnologias: nas redes sociais é possível encontrar informações sobre a rotina de qualquer um.Tais ferramentas, ainda que possibilitem que demonstremos ao mundo detalhes de nossa vida pessoal, também são mecanismos para que sejam criadas máscaras sociais, perspectivas superficiais e falsas sobre si ou sobre os outros. Tudo dependendo da intenção de quem publica – e de quem vê.

Além das atualizações modernas trazidas, é digno de reflexão o questionamento levantado em, talvez, um dos melhores momentos do texto do roteiro: quando se procura um “Príncipe Encantado”, se encontra também um “Barba Azul”.

Para quem não sabe, o mito do Barba Azul conta a história de um nobre viúvo que já tinha se casado muitas vezes, mas suas esposas desapareceram sem vestígios. Ao se casar novamente com a heroína da história, esta descobre que, em um quarto obscuro de seu castelo, estavam guardados em uma coleção macabra os cadáveres de suas falecidas esposas.

Por uma linha parecida ao conto, pouco a pouco vemos na série a verdade sobre Joe, demonstrando como o “Príncipe Encantado” se revela o “Barba Azul”: ao fazer propositalmente o estereótipo do “cara legal”, Joe aparenta ser um rapaz culto, inteligente, astuto, observador, simpático e interessado. Por trás dessa aparência, é também na verdade alguém com frustrações mal resolvidas, obsessivo, traumatizado por abusos físicos e mentais, com baixa capacidade de empatia, narcisista, egocêntrico, possessivo, manipulador e impulsivo. Além de bastante sádico, oculta um passado violento com a ex-namorada que nunca esqueceu.

Ao longo do roteiro, Joe conquista seu par romântico supostamente lhe dando tudo o que ela poderia querer: a engana com a falsa sensação de segurança,ocupando uma figura não realmente de companheiro, mas autoritária. Mostra-se dedicado – mas esconde sua obsessão –, finge-se paciente, tudo para lhe prover um romance de “conto de fadas”, enquanto vai se livrando de interferências externas. Tira do caminho de Beck outros homens interessados na personagem, a afasta de seus amigos, deseu contato com a família.
Um ponto principal é que Joe é capaz disso por ter compreendido os traumas e fragilidades emocionais da namorada, depois de observa-la cuidadosa e criminosamente. Manipula a personagem, portanto, sem dificuldades, violando sua privacidade, intimidade e até mesmo integridade física e mental. Aos poucos, escolhe se mostrar como a única salvaguarda de Beck, e, ao invés de assumir o papel de companheiro, disfarçadamente se torna seu “necessário” guardião – na verdade, um captor.

E é justamente na irrealidade desse pedestal que o horror começa a ficar aparente para Beck: aos poucos a segurança provida por Joe se revela controle, a dedicação se expõe como sentimento de posse; e, por trás de cada ato calculado para conquistar sua confiança e torna-la dependente de si, é exposta a crueldade da manipulação para moldar a namorada-troféu à sua própria fantasia.

O que “You” traz de reflexão e grave crítica, portanto, é como podemos entender errado sinais de alerta. Nem todos os homens são sociopatas em busca de presas, mas enquanto certos atos de controle, manipulação e posse forem aceitos socialmente ou até mesmo procurados por nós, mulheres, como demonstrações de carinho, não estaremos tão fortalecidas contra comportamentos predatórios.
É preciso parar de encarar como romântica a companhia masculina colocada em um pedestal, como se a dedicação exclusiva de um homem a uma mulher fosse um ponto fundamental para nossa realização pessoal. A beleza, satisfação e realização em um relacionamento está na parceria, nas trocas com igualdade, e não na veneração doentia de um dos polos.

Quando existe amor, existe respeito à individualidade. Existe afeto por quem a pessoa é, e não quem se pode ser. A relação funciona lado a lado, em equiparação e com confiança. Deseja-se e se respeita a liberdade do outro.

Tornar-se a posse de alguém não é o mesmo que receber afeto. Ser venerada como uma projeção alheia não é o mesmo que ser aceita. Ser idealizada não é o mesmo que ser amada. E muitas, como Beck, infelizmente só descobrem tudo isso quando já é tarde demais.

Para elas, o estrago está feito, e, às vezes, já podem estar trancadas no quarto de seu ex-príncipe; satisfeito por separa-la do mundo, enfim o galante príncipe se revela um Barba Azul. E encontrar a chave para fugir dele pode ser muito difícil.

Quando se sonha em ser uma donzela em perigo salva por um príncipe para ser levada para um castelo, podemos estar, na verdade, sonhando com uma prisão. Não se esqueçam de que castelos também têm masmorras profundas.

A lição que fica da série “You” é: tenham cuidado com os príncipes encantados que podem estar por aí. No castelo, pode haver um porão repleto de rastros ensanguentados de outras mulheres – e um lugar esperando por você.

Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Roteirista, advogada formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.

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