Zygmunt Bauman, sociólogo polonês foi um avaliador crítico da pós-modernidade
Reflexões sobre as condições do mundo da “modernidade líquida”, os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que tratou, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman foi uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. “Hoje em dia”, lamentou, “os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções… invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que ‘não há alternativa'”.
As transformações das últimas décadas têm produzido um processo de ruptura das principais referências do projeto político da modernidade. Esta ruptura ocorre tanto em relação aos vínculos políticos que fundamentam a ideia de comunidade como também no que se refere ao conjunto de avanços presentes nas principais garantias proporcionadas pelo Estado de Bem-Estar Social.
(5 de janeiro 2011)
Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre
O “Estado social” é hoje insustentável; mas por um motivo que nada tem a ver com a especificidade do caráter “social” do Estado, e sim com o enfraquecimento generalizado do Estado como “agência”. Repito o que já disse muitas vezes – esse é, afinal, o cerne de todos os problemas que os remanescentes do “Estado de bem-estar social” precisam enfrentar.
Nossos ancestrais preocupavam-se com (e debatiam sobre) “o que deve ser feito”; nós nos preocupamos (embora dificilmente cheguemos a debater, já que o tema parece não ter futuro) com “quem vai fazê-lo”, uma questão sobre a qual nossos ancestrais jamais discutiram, pois estavam de acordo – “o Estado, é claro”! Uma vez conquistado o Estado, faremos tudo que considerarmos necessário – o Estado, essa união de poder (ou seja, a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) com a política (ou seja, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas), é tudo de que precisamos para transformar o verbo em carne, não importa a palavra utilizada. Bem, essa resposta não parece mais tão evidente.
Os políticos não nos deixam em dúvida, ecoando monotonamente as palavras de Margaret Thatcher: “NHA” (“Não há alternativa”). Quer dizer: fazemos nossas escolhas em condições que não escolhemos. Quanto a esse último aspecto, pelo menos, estou inclinado a concordar, embora por motivos um tanto diferentes. As condições “não são as que eles escolheram”, no sentido de que os políticos aceitam placidamente essas condições e continuam determinados a não tentar outras opções: “NHA” é uma profecia autorrealizadora, ou melhor, o lustro de uma prática adotada de boa vontade e conduzida com zelo.
O Estado é “capitalista”, como Habermas apontou trinta anos atrás, escrevendo numa época em que a sociedade de produtores definhava, à medida que luta para garantir um encontro regular e efetivo entre capital e trabalho (ou seja, que envolve capital comprando trabalho). Para que esse encontro tenha êxito, o capital deve ser capaz de pagar o preço do trabalho, e o trabalho deve estar em boa forma o suficiente para atrair o capital. Portanto, podemos dizer, o “Estado social” é visto como indispensável para a sobrevivência “tanto pela esquerda quanto pela direita”. Porém, não é mais assim.
Hoje, na sociedade dos consumidores, o Estado é “capitalista” porque propicia o encontro entre mercadoria e consumidor (como foi mostrado pela reação universal dos governos ao colapso dos bancos/créditos; centenas de bilhões foram encontrados nos próprios cofres que a opinião governamental considerava carentes dos poucos milhões necessários para preservar os serviços sociais). Para esse propósito, o “Estado social” é irrelevante; por conseguinte, o problema de sua emancipação e da reclassificação de seus resíduos numa questão de “lei e ordem”, e não numa questão social, está “além de esquerda e direita”.
Com ou sem globalização, será que podemos prosseguir indefinidamente avaliando o aumento da felicidade pelo aumento do PIB, sem mencionar que espalhamos esse hábito para o resto do mundo e elevamos seus níveis de consumo até um ponto considerado indispensável nos países mais ricos? Deve-se considerar o impacto do consumismo sobre a sustentabilidade de nosso lar comum, o planeta Terra. Agora sabemos muito bem que os recursos do planeta têm limites e não podem ser ampliados ao infinito. Também sabemos que os limitados recursos da Terra são modestos demais para acomodar o aumento dos níveis de consumo no mundo inteiro aos padrões atingidos nas partes mais ricas – os próprios padrões pelos quais o resto do mundo tende a avaliar seus sonhos e expectativas, suas ambições e requisitos na era das infovias. (De acordo com alguns cálculos, tal feito exigiria que os recursos do planeta fossem multiplicados por cinco; cinco planetas seriam necessários, em vez do único de que dispomos.)
No entanto, a invasão e a anexação do reino da moral pelos mercados de consumo fizeram com que ele se sobrecarregasse de funções adicionais que só pode desempenhar empurrando os níveis de consumo ainda mais para cima. Essa é a principal razão pela qual o “crescimento zero”, tal como medido pelo PIB – a estatística referente à quantidade de dinheiro que troca de mãos nas transações de compra e venda –, é visto como algo próximo de uma catástrofe não apenas econômica, mas também social e política. É graças, em grande parte, a essas funções extras – que não se vinculam ao consumo nem por sua natureza nem por uma “afinidade natural” – que a perspectiva de se estabelecer um limite ao aumento do consumo, para não dizer reduzi-lo a um ponto ecologicamente sustentável, parece ao mesmo tempo nebulosa e repulsiva; e que nenhuma força política “responsável” (leia-se: nenhum partido que tenha os olhos grudados nas próximas eleições) a incluiria em sua agenda política. Pode-se imaginar que a “comodificação” das responsabilidades éticas, os principais instrumentos e matérias-primas do convívio humano, combinada com a decadência gradual mas incessante de toda as formas alternativas, fora do mercado, é um obstáculo muito mais formidável à contenção e moderação dos apetites consumistas que as exigências inegociáveis da sobrevivência biológica e social.
Na verdade, se o grau de consumo determinado pela sobrevivência biológica e social é por natureza inflexível, fixo, e portanto relativamente estável, os níveis exigidos para atender às outras necessidades cuja satisfação é prometida, esperada e exigida em função do consumo são, uma vez mais pela natureza dessas necessidades, crescentes e orientados para cima; a satisfação dessas novas necessidades não depende da manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de seu aumento. Consumidores que se voltam para o mercado de produtos buscando satisfazer seus impulsos morais e cumprir seus deveres de autoidentificação (leia-se: “autocomodificação”) veem-se obrigados a procurar diferenciais em termos de valor e volume; então, esse tipo de “demanda de consumo” é um fator predominante e irresistível no impulso para cima.
Assim como a responsabilidade ética pelo outro não tolera limites, o consumo, investido da tarefa de desafogar e satisfazer impulsos morais, resiste a qualquer espécie de restrição que se imponha à sua expansão. Subordinados à economia consumista, de modo irônico, os impulsos morais e as responsabilidades éticas são transformados num terrível obstáculo quando a humanidade se vê em confronto com aquela que é incontestavelmente a mais formidável ameaça à sua sobrevivência: uma ameaça que só pode ser enfrentada mediante um volume talvez sem precedentes de autorrestrição voluntária e disposição para o autossacrifício.
Uma vez acionada e mantida em movimento pela energia moral, a economia consumista só tem o céu como limite. Para ser eficaz na tarefa que assumiu, não se pode permitir a redução da velocidade, muito menos fazer uma pausa e ficar parado. Em consequência, deve-se estabelecer o pressuposto – de modo contrafactual, se não em tantas palavras, ao menos tacitamente – da durabilidade ilimitada do planeta e da infinidade de seus recursos. Desde o início da era consumista, ampliar o tamanho do pão era apresentado como remédio óbvio, na verdade um profilático infalível, contra os conflitos e disputas em torno da redistribuição desse quinhão. Eficaz ou não em suspender as hostilidades, essa estratégia devia presumir a existência de uma quantidade infinita de farinha e fermento.
Agora nos aproximamos do momento em que a falsidade desse pressuposto e os perigos de se aferrar a ele têm chance de se ver expostos. Talvez seja esse o momento de a responsabilidade moral se redirecionar para sua vocação básica: a garantia da sobrevivência mútua. Entre todas as condições necessárias para esse redirecionamento, a principal parece ser a “decomodificação” do impulso moral.
A hora da verdade pode estar mais próxima do que poderíamos imaginar quando contemplamos as prateleiras superlotadas dos hipermercados, os sites cheios de pop-ups comerciais, os corais de especialistas em autoaperfeiçoamento e os consultores especializados em como fazer amigos e influenciar pessoas. A questão é como anteceder ou impedir sua vinda com um momento de autodespertar. Uma tarefa que não é fácil, com certeza: seria necessário nada menos que toda a humanidade, com sua dignidade e seu bem-estar, assim como a sobrevivência do planeta, seu lar comum, fosse abraçada pelo universo das obrigações morais.
Zygmunt Bauman – “Isto não é um diário”. [tradução Carlos Alberto Medeiros]. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2012.
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